Frei Vitório pede mais indignação profética
08/03/2019
São Paulo (SP) – Frei Vitorio Mazzuco, o quinto entrevistado da série de entrevistas sobre a Campanha da Fraternidade, afirma que os franciscanos precisam ser a voz dos sem voz e, para isso, precisam conhecer a realidade social. “O melhor modo de fazermos política é termos os olhos e a sensibilidade abertos para conhecer e pisar o chão da realidade”, assegura. Na entrevista, Frei Vitorio fala também sobre a Carta aos Governantes dos povos, escrita por São Francisco e a intervenção no conflito entre o bispo e o prefeito de Assis. “A política de Francisco é a política da reconstrução da boa convivência”, recorda o frade.
A Campanha da Fraternidade deste ano tem como tema “Fraternidade e Políticas Públicas”. Para ajudar na compreensão do tema, a Província Franciscana da Imaculada Conceição, através da Frente de Evangelização da Comunicação, produziu uma série de entrevistas abordando diversos aspectos das Políticas Públicas e suas áreas de atuação. As primeiras entrevistas já estão disponíveis em nosso site e também no formato podcast, no Soundcloud.
Acompanhe a entrevista de Frei Vitorio concedida a Frei Gustavo Medella.
Site Franciscanos – De que maneira as ações de São Francisco podem inspirar a participação política dos cristãos e franciscanos hoje?
Frei Vitorio Mazzuco – Temos que partir do significado grego da palavra política. “Politikós” significa arranjo existencial para o bem comum. Para falar do tema, ninguém melhor do que São Francisco, ainda no século XIII, e que depois influenciou a Ordem até os dias de hoje. Francisco é um grande inspirador político quando falamos do bem comum. Ele sempre pensou a verdade, a justiça e a partilha a partir da fraternidade, ou seja, a política de Francisco é a política da reconstrução da boa convivência. Ele leva a sério a grande inspiração que ele teve em 1205, a partir da escuta da convocação e do diálogo com o crucifixo em São Damião: “Francisco vai e reconstrói a minha casa”. Adaptando-se aos nossos tempos, podemos dizer: “Francisco vai e reconstrói a nossa Casa Comum”. E Francisco sempre pensou a dimensão comum de toda atuação humana. Ele não trabalhou sozinho, mas esteve em comunhão com os necessitados do seu tempo. Sua inspiração vem depois que ele abraça o leproso no caminho. Ele vai pedir esmola em função de dividir esta esmola; a vida dele sempre foi uma partilha e uma preocupação com o bem das pessoas, o bem de todos. Francisco é, sim, um inspirador político a partir do momento em que a verdadeira política é expressão maior da caridade, do amor e da preocupação com a beleza e dignidade do humano, da convivência com todas as criaturas e seres.
Site Franciscanos – São Francisco escreveu uma carta aos governantes. Fale um pouco deste importante escrito de São Francisco.
Frei Vitorio Mazzuco – Esta carta, um tanto desconhecida hoje, é muito atual. Francisco volta do Oriente em 1219 e escreve esta Carta aos Governantes dos povos. Sabemos que ela é direcionada aos governantes do Ocidente. Ele fica impressionado ao ver como os muezins, os sacerdotes muçulmanos, convocavam o povo para o momento de prece. Ele realmente achava que a oração, o espírito comum, a adoração do dia, podia criar a paz, a harmonia e instaurar a justiça. Pelo modo como ele começa a carta, podemos identificar os destinatários. Ele não fala de marajás, de paxás, de sultão, mas fala de potestades, cônsules, juízes, governantes de toda Terra. Portanto, ele está falando diretamente aos governantes do Ocidente. O mais importante é que ele se apresenta também como Frei Francisco e se coloca como servo, simples, que deseja saúde e paz, despojando-se do poder, da autoridade e se apresentando como irmão. O mais interessante é que ele vai criar algumas considerações. A primeira delas é que todo governante costuma ser o dono da lei, da justiça, aquele que vai zelar pelas normas e, às vezes, faz julgamentos. Ele começa dizendo que ninguém é eterno, que a morte pode se aproximar de cada um. Então, ele pede que, no meio das decisões, não se esqueçam do Senhor. “Aqueles que se afastarem do Senhor serão julgados por Ele”, dizia. Os especialistas em leis não podem esquecer que serão julgados pelo Senhor. A estes governantes, que sempre fazem obras e leis para viverem uma imortalidade e não serem esquecidos, São Francisco diz: vocês podem ser destinados ao esquecimento, porque quando a morte vier, vocês também serão julgados. E ele fala: quanto mais sábios e mais poderosos vocês tiverem sidos neste mundo, mais vocês sofrerão. Ele aconselha que deixem de lado preocupações apenas com o mundo e recebam, criem e trabalhem na memória do Senhor. Então, assim como ele viu no Oriente que os muezins convocavam o povo à adoração do Senhor, ele pede que, no Ocidente, faça-se uma adoração pública e Eucarística em tempo determinado. É uma devoção ao Santíssimo Corpo e Santíssimo Sangue do Senhor, que pedia para que fosse anunciada por algum sinal, por um pregoeiro, por sinos, ou de algum modo, ao povo para render graças ao Senhor. Ele pede que isso seja uma lei que parte dos governantes, dizendo que se não fizer isso, eles também vão prestar contas. A presença do Corpo e Sangue do Senhor mostra que o mundo não é salvo apenas na dimensão do Espírito. Quando um povo se une na fé, ele se fortalece. É isso que ele pede aos governantes de todos os povos. É uma carta inédita, fantástica, que merece um grande aprofundamento.
Site Franciscanos – De que forma Francisco agiu para conciliar o bispo e o prefeito de Assis?
Frei Vitorio Mazzuco – O prefeito de Assis, o sindaco, como eles chamavam, e o bispo são duas autoridades referenciais na cidade. Eles entraram em conflito, certamente dentro da dimensão do poder. Para resolver a situação, São Francisco, em primeiro lugar, convoca-os ao diálogo. Não há como conseguir a harmonia se não for pelo diálogo a partir da força e da liderança de cada um. O segundo aspecto é promover o perdão entre os dois. Ele exige que eles se perdoem. No latim medieval, perdão significa perdono, ou seja, através dos dons. Por isso, o bispo tem que entregar ao prefeito aquilo que é dele: os dons que ele tem como uma autoridade eclesiástica. Por sua vez, o prefeito tem que doar ao bispo e à municipalidade os dons que ele tem como uma autoridade civil. Quando um lado cede, a paz acontece. Francisco, então, é o mediador desta situação, para que eles se encontrem, abracem-se, estabeleçam a paz, porque se há conflito entre os governantes, isso atinge o povo e a sociedade. A insegurança daqueles que governam e que causam ódio e raiva por causa de suas ideologias, avareza, ambição e exaltação do poder, influi na paz. A paz de Assis vem quando Francisco estabelece a reconciliação entre o prefeito e o bispo Guido.
Site Franciscanos – O que se espera de um franciscano diante do tema da política?
Frei Vitorio Mazzuco – Os franciscanos têm que ser decisivos e estar junto com o povo. Política é estar junto com o povo. Para nós, a fraternidade é o arranjo existencial, o modo de percebermos a necessidade do outro. Francisco foi alguém que esteve sempre muito próximo do povo. Ele era um itinerante. Não dá para conhecer as necessidades se você não vai onde o povo está. Hoje, o que se espera de um franciscano é presença, proximidade, sensibilidade e conhecimento como Francisco pede diante do crucifixo. O melhor modo de fazermos política é termos os olhos e a sensibilidade abertos para conhecer e pisar o chão da realidade, aproximarmo-nos do povo. Perceber as suas necessidades, ir lá onde existe uma dificuldade e um problema a ser resolvido. Em seguida, falar. Francisco sempre disse as coisas com determinação e segurança. Temos que anunciar, temos que ter uma indignação profética – que não é raivosa. Ela é convicta de que tem que haver uma solução. Temos que ser a voz daqueles que não têm possibilidade de tomar partido, de reivindicar, de falar. Assim como Francisco era o arauto do Grande Rei, ele sabia que era também um arauto dos valores da justiça, da paz, do evangelho. Quando assumimos os valores da justiça, da paz, da integridade da criação, estamos assumindo o Evangelho. Isso também é uma postura política. Para nós, o tema da política tem que ser um grande encontro entre fé e política. Daquilo que acredito, falo e faço. A nossa palavra tem que ser uma palavra transformadora. Sobretudo, temos que aprender com Francisco: ir ao ermo, ao lugar da reflexão, da realidade, da conjuntura. Francisco nunca ficou dentro dos eremitérios. Ele saiu dali para perceber onde necessitavam da sua presença. É isso que temos que fazer. Prepararmo-nos no recolhimento da profundidade pessoal para sairmos bem para o social. Esse é o modo que nós devemos estar diante das Políticas Públicas. O tema da CF deste ano é uma grande convocação. Podemos criar uma verdadeira transformação sem deixar de perder a nossa profundidade pessoal. Francisco foi sempre este binômio entre a interioridade e a realidade.
Ouça a entrevista com Frei Vitorio Mazzuco:
Confira todas as entrevistas:
Tema e Lema da CF | Entrevistado: Dom Leonardo Ulrich Steiner
Bispo Auxiliar de Brasília e secretário-geral da CNBB.
Conceito de Políticas Públicas | Entrevistado: Robert Soares do Nascimento
Agente de Pastoral, compõe o Núcleo em Educação e Direitos Humanos da UNISAL (Centro Universitário Salesiano de São Paulo) e participa do Grupo de Trabalho de Justiça Restaurativa da Comarca de Americana (SP).
Política como exercício do bem comum | Entrevistado: Felix Fernando Siriani
Formado em Gestão de Políticas Públicas, especialista em Pedagogia Social, Pastoral Escolar e mestrando em Mudança Social e Políticas Públicas.
Doutrina Social da Igreja | Entrevistado: Prof. Dr. Fernando Altemeyer Junior
Chefe do Departamento de Ciência da Religião da PUC-SP.
As ações e ensinamentos de Jesus como inspiração para políticas em favor da cidadania |Entrevistado: Francisco Orofino
Leigo, professor de Teologia Bíblica em Nova Iguaçu (RJ) e assessor do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos) e do ISER Assessoria (Instituto de Estudos da Religião).
Os franciscanos e o engajamento político | Entrevistado: Frei Vitorio Mazzuco
Mestre em espiritualidade e coordenador da Pastoral Universitária da USF.
A importância dos Movimentos Sociais na busca do bem comum | Entrevistado: Dom Guilherme Werlang
Bispo da Diocese de Lages (SC) e presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Ação Social Transformadora da CNBB.
Políticas Públicas na área da saúde | Entrevistado: Fernando Pigatto
Presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e Representante da Confederação Nacional das Associações de Moradores (CONAM).
Políticas Públicas na segurança | Entrevistado: Ricardo Bedendo
Jornalista e Mestre em Ciências Sociais, integra o núcleo de Estudos de Violência e Direitos Humanos da Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Políticas Públicas e Assistência Social | Entrevistada: Rosangela Pezoti
Doutora em Serviço Social, responsável pelas áreas técnica e de articulação política do Sefras – Serviço Franciscano de Solidariedade.
Políticas Públicas em favor dos negros | Entrevistado: Frei David Raimundo Santos
Presidente da Educafro (Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes).
Importância da participação nos espaços de controle social | Entrevistada: Valdênia Paulino
Advogada, integra o Centro de Direitos Humanos de Sapopemba (SP)
Políticas Públicas em favor dos índios e dos povos originários | Entrevistado: Egon Heck
Assessor do secretariado do Conselho Indigenista Missionário – Cimi.
Políticas Públicas e Juventude | Entrevistada: Anna Luiza Salles Souto
Coordenadora da área de Democracia e Participação do Instituto Pólis.
Políticas Públicas e na área da educação | Entrevistado: Professor Dilnei Lorenzi
Pró-Reitor de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade São Francisco (USF).
Saúde e o bem comum | Entrevistado: Pe. Christian de Paul de Barchifontaine
Assessor Internacional dos Camilianos na Área da Saúde, Relações Públicas das Organizações Camilianas.
O exemplo concreto no Rio de Janeiro | Entrevistado: Adriano de Araújo
Sociólogo, coordenador do Fórum Grita Baixada.