Intolerância e violência: Estátuas indígenas são jogadas no Rio Tibre
22/10/2019
Dois homens, durante a madrugada, roubaram de Santa Maria em Traspontina, a paróquia romana mais próxima da Basílica de São Pedro, na Via della Conciliazione, três estátuas de madeira pertencentes à exposição dedicada ao Sínodo sobre a Amazônia para depois jogá-las na rio Tibre.
A razão para o gesto – documentado por um vídeo no YouTube gravado pelos próprios autores, intitulado “Pachamama idols thrown into the Tiber river!” – é uma “reparação” para os supostos danos causados a Jesus e à Igreja pelas três estátuas que retratam uma mulher nua e grávida, de traços indígenas, de joelhos, com a barriga vermelha para simbolizar a vida que carrega no colo.
Um dos homens, de camisa azul listrada, enquanto o outro gravava com seu smartphone o vídeo que se tornou viral, entrou nos altares laterais da paróquia – onde estavam colocados outros símbolos da “cuenca amazônica”, como remos, panos, fotografias miniaturas de canoas e papagaios – e, furtivamente, levou para fora as três esculturas segurando-as firmemente contra o peito. Em alguns segundos, chegou à famosa ponte de Castel Sant’Angelo, de onde jogou as estátuas no rio com um gesto seco e arrogante.
Como se isso não bastasse, por volta das 10h30, dois outros homens (provavelmente os mesmos do vídeo) retornaram a Traspontina para concluir a obra, roubando a estátua maior e afogando-a no Tibre para assim “salvar” a Igreja e o mundo. Os dois foram prontamente parados e denunciados à polícia pelo padre Antonio Soffiantini, responsável pela exibição da associação “Casa Comum”, que permanecerá aberta até a conclusão dos trabalhos sinodais. “Ficamos sabendo do roubo desta manhã através das mídias sociais, ficamos atentos e notamos imediatamente que outros dois sujeitos estavam tentando roubar a estátua maior. Alertamos a polícia e eu próprio os denunciei”, explica o padre ao Vatican Insider.
A associação “Casa Comum”, ligada à Repam, a rede pan-amazônica de bispos, religiosos e leigos que contribuiu para a organização do Sínodo, agora pede ajuda à Polícia para vigiar os últimos dias da reunião e impedir que outros imitem o gesto.
A criar quase uma psicose contra essa escultura que parece retratar a “Pachamama”, a mãe terra, cuja sacralidade está enraizada nas culturas amazônicas, ou uma Nossa Senhora de traços indígenas, foram sites e blogs de viés conservador. Desde o início da assembleia no Vaticano, esses canais “denunciaram” a conotação (em sua opinião) blasfema da imagem de madeira que, em 4 de outubro passado, havia sido levada aos Jardins do Vaticano para a cerimônia presidida pelo Papa com um grupo de indígenas às vésperas da abertura do Sínodo.
Os mesmos locais também espalharam informações tendenciosas sobre celebrações idólatras na paróquia de Traspontina, durante as quais os índios teriam se prostrado diante da efígie, embora essas fossem autorizados e sempre presenciadas pelo pároco.
Nessas mesmas páginas, agora se podem encontrar títulos alegres (“Justiça é feita”) que elogiam o gesto dos dois “católicos corajosos”. Também é relançado o vídeo do que foi um roubo, conforme definido pelo Prefeito do Dicastério da Comunicação, Paolo Ruffini, que durante o briefing diário na Sala de Imprensa sobre o trabalho do Sínodo – perguntado a respeito – disse: “É um roubo que fala por si”. “Acredito que roubar algo de um lugar e jogá-lo fora é uma bravata. Já repetimos várias vezes que aquelas estátuas representavam a vida, a terra, a fertilidade. O gesto contradiz o espírito de diálogo que deveria animar todos”.
Já nos briefings anteriores, Ruffini havia se expressado sobre a questão da estátua, respondendo às perguntas insistentes de um site estadunidense – que no ano passado se destacara pelos contínuos ataques ao Papa Francisco -, que promoveu a cruzada contra as esculturas “de significado misterioso”, chegando a pedir “uma intervenção com autoridade” por parte da Santa Sé. Em particular, se solicitava um esclarecimento sobre o fato de que seria uma representação pagã ou uma representação inapropriada de Nossa Senhora.
“Sabemos que algumas coisas na história podem ter diferentes interpretações – disse Ruffini -, mesmo nas igrejas você pode encontrar coisas que vêm do passado, mas acredito que a estátua representasse banalmente a vida, e pronto, enquanto procurar símbolos de paganismo é ver o mal onde não mal não existe”.
Palavras que Ruffini reafirmou mesmo nos dias seguintes, mas que parecem não ter sido suficientes para a blogosfera conservadora que levou adiante a sua campanha. Muito menos para os dois autores daquela que foi muito mais que uma “travessura”. Além disso, realizada na Igreja.
A reportagem é de Salvatore Cernuzio, publicada por La Stampa, 21-10-2019. A tradução é de Luisa Rabolini (http://www.ihu.unisinos.br).
São João Newman e as estátuas jogadas no rio Tibre
Andrea Tornielli, do Vatican News, lembra que o roubo e o ato de jogar no rio Tibre as três estátuas de madeira que representavam mulheres indígenas grávidas, constituem um triste episódio, que fala por si só. Impressiona algumas das reações a este gesto violento e intolerante: “foi feita justiça”, foi a manchete entusiasmada de um site italiano, depois que as imagens do roubo gravadas pelos autores foram publicadas nas redes sociais. Em nome da tradição e da doutrina jogou-se fora, com desprezo, uma efígie da maternidade e da sacralidade da vida. Um símbolo tradicional para os povos indígenas que representa a ligação com a nossa “mãe terra”, assim definida por São Francisco de Assis no seu Cântico das Criaturas.
Ouça e compartilhe!
Aos novos iconoclastas, passados do ódio lançado nas redes sociais à ação, poderia ser útil reler o que afirmou um dos novos santos canonizados poucos dias atrás, o cardeal João Newman. Na sua obra Essay on the Development of Christian Doctrine, publicada em 1878, a propósito da adoção por parte da Igreja de elementos pagãos, o santo escrevia: “O emprego de templos, e estes dedicados a certos santos, e enfeitados em ocasiões com ramos de árvores; incenso, lâmpadas e velas; promessas para cura de doenças; água benta; asilos; dias santos e estações, uso de calendários, procissões, bênçãos dos campos, vestimentas sacerdotais, a tonsura, o anel nos casamentos, o virar-se para o Oriente, imagens numa data ulterior, talvez o cantochão e o Kyrie Eleison, são todos de origem pagã e santificados pela sua adoção na Igreja”.