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William Pereira fala sobre os “Os Sete pecados capitais à luz da psicanálise”

14/05/2021

Entrevistas, Notícias

Imagem: Arquivo Pessoal

O autor de “Os Sete pecados capitais à luz da psicanálise”, William Cesar Castilho Pereira é o entrevistado de Frei Gustavo Medella no programa “Manhã Franciscana” e, nesta conversa, ele aborda o tema do pecado, da culpa, do sofrimento mental, da relação confessionário e consultório. “O pecado não é pessoal nem tampouco social. O pecado é, na verdade, uma ofensa a Deus porque este outro é imagem e semelhança de Deus”, diz ele.  

 Mineiro, William estudou Psicologia e é doutor pela UFRJ. Psicólogo clínico, atuou por várias décadas como professor da PUC-Minas. Foi docente da Faculdade dos Jesuítas (Faje) e assessor em trabalhos comunitários e analista institucional, assessor da Arquidiocese de Belo Horizonte e do Conselho Episcopal Latino-americano (Celam), em Bogotá, Colômbia.

 Além deste lançamento, é autor dos seguintes livres pela Editora Vozes: “Dinâmica de grupos populares”, “Uma escola no fundo do quintal”, “Associação de pais e mestres”, “Nas trilhas do trabalho comunitário e social: teoria, método e prática”, “Formação religiosa em questão e Sofrimento psíquico dos presbíteros: dor institucional”. Pela Editora Imago, escreveu: “O adoecer psíquico do subproletariado”, e pela Editora Lutador: “Análise institucional na vida religiosa consagrada”.

 Aproveite a oportunidade de conhecer mais sobre o tema na Live com o autor da Editora Vozes, no dia 19 de maio, às 19h30, pelo canal do youtube.com/editoravozes.

 Acompanhe a entrevista

Frei Gustavo – Gostaria de pedir a você, primeiro, que nos ajudasse a entender a diferença que existe entre aquilo que chamamos de doença psíquica e o sofrimento mental.

 William – A doença mental e o conceito de sofrimento psíquico são concepções teóricas, referências que tentam explicar a dor da incompletude do ser humano. Todos os dois conceitos, um da psiquiatria, a doença mental, e o segundo, o sofrimento psíquico, mais da área da psicologia, da psicanálise, falam que o ser humano é constituído de uma falta, de um vazio. E nesse vazio, nessa falta, aparecem sintomas tanto físicos, neurológicos como psicossocial. E uma vertente, que é a psiquiatria, construiu uma forma de lidar com essa dor, vamos dizer assim. E a psicologia e a psicanálise construíram uma outra referência teórica para entender essa dor que o ser humano carrega. A gente poderia chamá-la, essa dor, de angústia ou de tristeza, como Evágrio, o monge do deserto, cunhou pela primeira vez, ou a melancolia. Tudo isso são sinônimos que perpassam até chegar a entender um pouco essa dor, essa angústia. Então, a doença mental, ela, como eu disse apoiada pela psiquiatria, vai construir diagnósticos e as alterações neurológicas, como por exemplo, a mudança de humor e quadros de melancolia, etc. Já a concepção de sofrimento psíquico está vinculada mais fortemente a essa angústia, essa falta. Vai caminhar na direção de dar a esse sujeito um espaço da fala e é por isso que os consultórios psíquicos ou psicanalíticos são lugares de você falar dessa sua dor, não tanto de buscar um diagnóstico.

E de que forma o conceito de doença psíquica, também o conceito de sofrimento mental, eles estão ligados com a ideia dos pecados capitais?

 William – Por incrível que pareça, a ideia de doença mental ou de sofrimento psíquico é uma abordagem da modernidade, que foi buscar lá em 500 e pouco, depois de Cristo, quando um monge do deserto, eremita, Evágrio do Ponto, cunhou pela primeira vez estes oito sofrimentos que invadiam a alma humana no momento em que essas pessoas buscavam profundamente uma experiência de Deus. Então, o Evágrio percebeu, tanto dentro dele como dos colegas monges, essa inquietude, essa dor, esse sofrimento, produzido exatamente por esse vazio. Mais tarde, o Papa Gregório Magno retoma as ideias de Evágrio e transforma esses oito pecados em sete. Eu diria que toda a Idade Média, a Igreja conviveu com essa escuta dos penitentes que procuravam um consolo, uma ajuda, mas a psiquiatria e a psicologia acabaram roubando essa chave de leitura e racionalizando essa experiência de fé num grupo de diagnósticos que a gente chama de CID, que é o Código Internacional de Doenças Mentais ou mesmo nas patologias que a psicologia e a psicanálise construíram. Só a título de exemplo, a vaidade hoje nós chamamos isso de distúrbio narcisista. A avareza, que é uma questão do dinheiro, não deixa de ser a atitude de um neurótico obsessivo como um exímio colecionador de objetos e de dinheiro visando a posse compulsiva para não ter que lidar com esse vazio e essa angústia. Então, é muito curioso essa associação dos sete pecados capitais com aquilo que a psiquiatria criou no século 19, e depois no século 20, e, sobretudo, a psicologia e a psicanálise com Freud. Eu diria que o pecado é o primeiro conceito que a gente poderia entender, escrito, repassado historicamente, que invade o mundo da arte: as pinturas, a arquitetura; invade também outras profissões: o direito, os meios de comunicação, a educação na sala de aula, os professores falam de códigos morais. Então, a Igreja deu à luz, vamos dizer assim, a esses grandes elementos que traduzem a dor da nossa alma.

E no seu livro, você reflete sobre a relação entre consultório e o confessionário. Qual seria o papel de cada um deles, enquanto um lugar de promoção ou de facilitação do equilíbrio humano?

 William – São dois lugares. Um é muito antigo, de séculos, que é o confessionário. O consultório é muito recente, não tem talvez um século e esses dois espaços são espaços muito singulares, onde o ser humano procura, primeiramente ser escutado, acolhido. Pode ser que a motivação primeira seja a culpa como um perigo de ser abandonado pelo outro diante de sua falha. A culpa, na verdade, é uma experiência possível de abandono. Então, ir a um confessionário talvez seja um gesto de reconciliar essa angústia e esse medo do abandono, tanto de Deus como do outro. Eu diria que também no consultório psicanalítico, a pessoa é levada por essa motivação de reconciliação de si, devido a uma falha, a uma queda, frente a uma idealização que ele traçou na vida e depois desse alívio, provavelmente, o consultório psicanalítico seria uma maneira de entrar mais fundo na sua história da infância, da pré-adolescência, para compreender esses deslizes e esses tropeços e essas buscas de gozo. O que eu chamo de gozo? Seria uma forma que o ser humano tem de transgredir, de passar por cima de certos limites. Então, tanto o pecado não deixa de ser uma busca de gozo como também no consultório psicanalítico o sujeito vai rever as suas formas de gozo. Ora, a vida seria muito sem graça se não tivesse pecado, se não tivesse essas experiências de gozo. Mas, provavelmente, o sujeito, cada vez mais falando da sua história, ele se responsabiliza mais, ele não sente motivado por razões muito inconscientes, involuntárias, que trazem inclusive punições, autoagressões. Provavelmente um sujeito analisado, ou um sujeito reconciliado com Deus. O pecado ou a falha é uma falha mais suave e mais responsável, e não tanto aflitiva e tão angustiante.

Que relação nós podemos fazer entre pecado e desejo?

 William – Essa pergunta é muito importante, porque o pecado seria, em outras palavras, o limite, a lei. E não há desejo sem lei. E nem lei sem desejo. Então, nesse sentido, a sociedade criou pelo menos duas formas do sujeito lidar com a lei e com o desejo, com o pecado e o desejo. Uma é a experiência de sentimento de culpa, que desde pequenininho as crianças, os jovens, pré-adolescentes, recebem uma carga muito grande, moralista, muito rígida, muito idealizada, que incute dentro de nós um forte sentimento de culpa, como disse anteriormente, o sentimento de culpa é o medo de ser abandonado pelo pai, pela mãe. E isso muito antipedagógico, não é uma boa catequese, foi transferida para a vida religiosa, para o catolicismo e o protestantismo clássico. Pecar seria uma ofensa a Deus e consequentemente um sentimento de abandono, de desolação muito forte. E, obviamente, que nós acabamos associando figuras de pais e mães despóticos, autoritários, à figura de Deus. Isso não é muito correto para uma boa espiritualidade. O outro conceito é consciência de culpa, que é diferente de sentimento de culpa. A consciência de culpa são limites que eu tenho que absorver livremente enquanto cristão, enquanto cidadão em respeito ao outro. Então, na verdade, quem inventou a alteridade foi Jesus Cristo quando ele disse: amarás o seu próximo como a si mesmo. Então, esse limite de amar a si mesmo e ao outro, quando transgrido, eu estou infringindo dentro um código de leis que regem a sociedade, no nosso caso, a Constituição de 1988 e que a Igreja está alinhada a isso. Quando eu desrespeito uma fila de vacinação porque eu sou rico, eu estou cometendo um ato que nega o outro. Que é até oportuno falar nesse momento da pandemia que o SUS trouxe uma simetria, certa igualdade entre as pessoas. Então, quando eu desrespeito isso, eu estou realmente cometendo um ato que eu teria internalizado como consciência de culpa. Que é diferente de sentimento de culpa, que são os escrúpulos, o excesso muito moralista de autopunição, de até, inclusive, maltratar o próprio corpo. E isso é uma doença psíquica, enquanto que o outro não, é uma atitude livre de cidadania. Por isso que é importante, quem convive socialmente, lidar com a lei e o desejo.

E o pecado é algo que diz respeito apenas à individualidade de cada pessoa, ou existe também, quando falamos em pecado, um elemento social também aí?

 William – Eu sou psicólogo, não sou teólogo, mas acho completamente equivocado a gente entender que existe um pecado individual, pessoal, e um pecado social. O pecado não é individual e nem social. O pecado é uma transgressão a si mesmo e ao outro. E por que o cristianismo desenhou isso de uma forma magistral quando vários trechos do Evangelho e da carta de São João disse que tudo que a gente fizer ao outro, nós estamos ofendendo a Deus? Então, o pecado não é uma questão pessoal e nem tampouco social. Ela é fundamentalmente um ato contra o outro. Ou seja, um ato contra os princípios básicos de cidadania, dos direitos humanos, sociais, políticos e ambientais. Alguém pode dizer assim: “O William está ideologizando o pecado”. Não. Eu estou indo exatamente na fonte do Evangelho, quando está claríssimo que o outro é imagem e semelhança de Deus. Então, não existe nenhuma outra concepção que não seja essa. O pecado não é pessoal nem tampouco social. O pecado é, na verdade, uma ofensa a Deus porque este outro é imagem e semelhança de Deus.

Eu gostaria de saber, William, hoje em dia se diz muito que a sociedade não tem mais o sentido do pecado, que teria perdido o significado do pecado. Você concorda com essa afirmação?

 William – De maneira nenhuma. O pecado está cada vez mais em evidência. É lógico, como eu disse, nós diminuímos gradativamente a frequência a um confessionário, mas nós migramos todas as nossas dificuldades e nossas falhas para um gabinete de advogado. Talvez, no confessionário tratava uma dívida subjetiva na forma de uma culpa. E hoje, no gabinete de um advogado, eu tenho de pagar somas enormes de dinheiro. Então, na verdade, o pecado virou uma moeda em que você paga caro, não só em um gabinete de um advogado como num consultório médico através de várias formatações: enxaquecas, gastrite, dores de coluna, etc. Então, nós migramos do confessionário para diversas áreas profissionais que a modernidade inventou e criou. Tanto a área do Direito, como da Medicina, da Psiquiatria, da Psicologia, da educação etc. E hoje o pecado tem uma outra conotação, tem uma outra roupa. A gente poderia dizer aqui que ele está travestido. Primeiro, de uma forma hiperindividualizada. Você é único culpado de tudo. As instituições não pesam mais. Mas que é uma premissa falsa. E segundo hoje, o pecado vem revestido de uma negação. Eu nego que estou fazendo alguma coisa errada, que é muito pior do que na Idade Média que eu tinha consciência que estava fazendo alguma coisa errada.