Notícias - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

“Sou um velho feliz!”

30/06/2020

Entrevistas

A alegria da gratidão dissolveu possíveis lamentos ou murmurações por desconfortos passados. Sou um velho feliz! E serei ainda muito mais feliz, com certeza!”. Essa sinceridade e espontaneidade é de Frei José Ariovaldo, celebrando 50 anos de vida religiosa franciscana e 75 anos de uma história que começou em Canoinhas (SC), no dia 1º de janeiro de 1945. Até se tornar um dos grandes liturgistas do Brasil, superou desafios dores e angústias, como diz, mas também alegrias e sucessos vividos.

Ordenado presbítero no dia 30 de dezembro de 1973, se doutorou em Liturgia pelo Pontificio Ateneo S. Anselmo (1981), em Roma. Professor no ITF desde 1981, quando retornou de Roma; foi também professor no Instituto Teológico de Juiz de Fora, na Pós-graduação da Faculdade de Teologia N. Sra. da Assunção, em SP, mais tarde membro do Centro de Liturgia “Dom Clemente Isnard”, ligado ao Instituto Pio XI (UNISAL – São Paulo), deu aulas também na Pontifícia Universidade Antonianum de Roma.

Foi membro fundador da Associação dos Liturgistas do Brasil (ASLI), da qual foi o primeiro presidente. Enquanto conferencista, viajou o Brasil de Norte a Sul, do Leste ao Oeste, para levar o aprofundamento litúrgico a fim de que houvesse uma renovação da prática celebrativa das comunidades. Prestou inúmeras assessorias em dioceses, paróquias, congregações e ordens religiosas. Contribuiu em diversos cursos, seminários, congressos, semanas de liturgia. Foi membro da Comissão Episcopal para a liturgia da CNBB, fazendo parte por muitos anos da equipe de reflexão da linha 4 (dimensão litúrgica da CNBB) e membro da Comissão para Acabamento da Basílica Nacional de Aparecida.

Conheça um pouco mais Frei José nesta entrevista a Moacir Beggo.

Site FranciscanosEm que momento de sua vida se sentiu atraído pelo carisma franciscano?

Frei José Ariovaldo – Tenho certa dificuldade em definir exatamente o “momento” em que me senti atraído pelo carisma franciscano. Diria que a atração foi processual. Foi despertando aos poucos e evoluindo mais e mais com o “andar da carroça” do meu viver. Creio que começou, embora de forma tênue e superficial, lá no tempo de minha infância pelo contato, embora distante, com os frades de nossa Província em Canoinhas (SC), minha terra natal, bem como, mais diretamente, com as Irmãs Franciscanas de Maria Auxiliadora, em cujo colégio fui alfabetizado e catequizado. O jeito carinhoso e amável de ser das Irmãs me marcou muito. Cultivava no meu corpo de criança certa admiração e encantamento também pela cor marrom do hábito, tanto dos frades como das freiras. Lembro-me de quando, aos 14 anos (em 1959), manifestei o desejo e a decisão de “ser padre” (era assim que se pensava na época!). Não faltou quem me propusesse a possibilidade de ser padre jesuíta, redentorista ou diocesano, ao que pronta e firmemente reagi: “Não! Padre de batina preta não quero ser!”

Site Franciscanos – Então foi essa a motivação que o trouxe para a Ordem dos Frades Menores?

Frei José Ariovaldo – Remotamente, muito remotamente, creio que sim. Foi o chute inicial. Mas, como eu disse, com o “andar da carroça”, depois, ela foi se ressignificando mais e mais por outras mais consistentes. O que me motivou mesmo, depois de longo processo de amadurecimento, passando pela experiência de sete anos de seminário, bem como de noviciado e primeira profissão no dia 03.02.1969, e de todo tempo de estudos filosófico-teológicos, foi a conclusiva descoberta – desafiante descoberta! – do ser franciscano como constante e teimosa busca do “não ser dono de nada, nem da vida” e, consequentemente, viver uma vida fraterna e pacífica com tudo e com todos. Deus é o Senhor e Pai, e nós, com todas as criaturas, somos todos irmãos e irmãs. Foi o exercício de conversão permanente que Francisco fez, a seu modo, à luz da provocação do Evangelho de Jesus Cristo. E pensa que foi fácil? Não foi não! Ele mesmo se via o pior pecador, um mísero vermezinho. Foi-lhe impossível? Também não, pois sentia e cultivava uma misteriosa Presença: A viva presença do Senhor em sua própria carne e na carne dos irmãos, sobretudo os mais pobres, os leprosos, bem como em toda a Natureza, a dar-lhe alegria e suporte na teimosa tentativa de amansar seu lobo interior. Essa foi a descoberta que fiz e que me motivou a viver na Ordem. Lembro-me da minha profissão solene, no dia 04.08.1972. Prostrado ao chão, no momento da Ladainha de Todos os Santos, sussurrei no meu íntimo: “De nada sou dono. Entrego-me totalmente a ti, Senhor, para viver em Fraternidade. E é com este propósito franciscano que vou continuar a me trabalhar”. É uma motivação que me fez sofrer, pois sempre de novo me percebi pecador, isto é, muito senhor e pouco servo. No fundo, também me cobrava muito por isso! Tive que trabalhar em mim também esta questão, o que, enfim, graças a Deus, me fez perceber e sentir em mim, mais e mais, uma misteriosa, amorosa, compreensiva e confortadora força, que me levava a jamais desistir da luta na busca de autossuperação. É a tal presença do Senhor em minha carne, do Senhor que fez de nossos corpos o seu espaço sagrado. Lembro-me ainda da experiência que vivi no meu ano jubilar, ano passado, 2019. Vi que dentro de mim aninhou-se, de repente, um intenso e profundo sentimento de gratidão, muita gratidão! Fazendo um balanço dos meus 50 anos de vida religiosa franciscana, lembrando os desafios enfrentados, dores e angústias que passei e, por outro lado, revendo tantas alegrias e sucessos vividos na convivência com os confrades e com o povo de Deus em geral, nos estudos, nos trabalhos pastorais e acadêmicos, nos contatos com tantas pessoas em cursos e assessorias, nas produções escritas, vejo nitidamente como Deus “cuidou” de mim! Resultado: Aqui dentro de mim, Ariovaldo, agora é quase só gratidão, e tão intensa que, inclusive, hoje não tenho praticamente nada do que lamentar de eventuais desventuras passadas. A alegria da gratidão dissolveu possíveis lamentos ou murmurações por desconfortos passados. Sou um velho feliz! E serei ainda muito mais feliz, com certeza!

Site Franciscanos – Fale um pouco de sua família, de sua vida.

Frei José Ariovaldo – Pois é! Tanta coisa pra contar! De alguma coisa já falei há pouco. Vou trazer alguns detalhes a mais, dos inícios. Nasci no dia 1o de janeiro de 1945, num lugarejo do interior do município de Canoinhas (SC), chamado Sereia. Portanto, estou agora com 75 anos. Vivi minha infância no interior. Meus pais eram agricultores. Sou o mais velho de uma família numerosa de 12 filhos. Depois de certo tempo, moramos a uma distância de uns 8 quilômetros da cidade. Família muito religiosa, todos costumávamos ir à missa aos domingos, às vezes a pé, às vezes de carroça. A reza do terço, todas as noites após a janta, era sagrada, mesmo cansados da labuta da roça. Papai era muito devoto de Nossa Senhora Aparecida. E aí me lembro de um fato interessante, quando meu pai comprou um rádio. Era um SEMP a pilha. Isso lá por 1953/54. Certa feita, papai e eu ouvíamos um programa da Rádio Aparecida, em que um missionário redentorista conclamava os jovens para serem missionários. Eu devia ter uns 8 ou 9 anos de idade. Terminado o programa, papai olhou para mim, deu um leve sorriso e, como que a brincar, me provocou: “E daí, não quer ir, ser missionário?”. Fiquei quieto, um jeito surpreso. Não respondi nada. Mas aquilo calou fundo. Pensativo, fui “cozinhando”, daí em diante, dentro em mim, a possibilidade de um dia ser “padre missionário”. E sem dizer nada a ninguém! Aquilo sempre me inquietava. E tinha que decidir. Enfim, lá pelo mês de agosto/setembro de 1959, num belo dia, à noite, já com 14 anos, sentado e pensativo à beira do fogão, antes da janta, tomei a decisão. Falei pra mim: “É hoje! Hoje vou revelar meu segredo. Vou falar do que estou querendo mesmo da vida!”. Dito e feito! À mesa, família toda jantando, diante do papai falei: “Pai, tenho uma coisa pra dizer. Quero ir para o seminário. Quero ser padre. Será que posso?”

Site Franciscanos – E como a família recebeu a notícia?

Frei José Ariovaldo – Todos foram tomados de surpresa. Profundo silêncio momentâneo tomou conta do entorno à mesa. “Ser padre, o José?!…”, era com certeza o silencioso refrão de susto e surpresa. Mas ninguém se opôs. Mamãe exultou com uma breve exclamação de alegria: “Meu filho!” Papai deve ter tido arrepios na alma e no corpo. Mas aquele natural sentimento humano de “perda” do filho mais velho, na hora, com certeza, fora sublimado por outro maior, ou seja, pelo religioso sentimento de “entrega”. “Sem problema, meu filho. Vai ser difícil para nós. Mas se é essa a tua vocação, seja como Deus quer. Pode ir, sim. De nossa parte, damos todo apoio possível. Vamos dar um jeito”, comentou papai. O medo imaginário de papai era, com certeza, como custear os estudos, pois éramos uma família pobre. Logo na semana seguinte, papai me levou para uma conversa com os freis na paróquia. Encontramos o pároco, Frei Cristóvão Horn, que, devido ao meu longo tempo sem estudar mais – tinha completado o primário havia já três anos –, questionou sobre minha aptidão intelectual para o seminário. No entanto, a decisão sobre mim não cabia a ele, mas ao Frei Samuel Both que, no momento se encontrava em visita às comunidades do interior. Passou-se um mês, e lá fui eu conversar pessoalmente com Frei Samuel, aquele frade alto, grandão, enorme. Uma bondade de pessoa! Pela simplicidade, bem afinada a quem do interior, da roça, me deixou muito à vontade para falar de minha decisão tomada. Mais outro mês passou e, então, ele me fez um teste oral de conhecimentos de fé e religião. Terceiro mês passado, Frei Samuel me comunicou a aprovação para o ingresso no seminário, entregando-me ao mesmo tempo a listagem do enxoval a ser providenciado. O susto de papai foi grande. Não o demonstrou abertamente. Mas pela expressão facial dava para notar sua preocupação. Imagino o esforço dele para ter que comprar tudo aquilo: roupa de cama, toalha de banho e de rosto, sapato, chinelo, meias, camisas, paletó, calças, cuecas, pijamas, sabonete, pasta e escova de dente etc. Alta despesa para um pequeno agricultor com família numerosa. Mas, com muito sacrifício, conseguiu.

Em fevereiro de 1960, despedi-me de meus pais e irmãos para uma viagem que, hoje, já dura 60 anos. Foi um momento de muitas lágrimas por parte de mamãe e papai, num misto de alegria pela missão que eu haveria de assumir, e de tristeza pela saudade que já estavam a sentir. Quanto a mim, saí de cabeça erguida, disposto ao que der e vier. Acompanhado de Frei Samuel, com outros garotos viajei para o Seminário São João Batista, em Luzerna (SC). Primeira vez que viajava de ônibus (Canoinhas e Porto União) e primeira vez de trem (de Porto União a Luzerna). Em Luzerna permaneci só um ano, preparando-me para o Ginásio no Seminário São Luís de Tolosa, em Rio Negro (PR), onde estudei dois anos (1961-1962). De Rio Negro, fui encaminhado depois para o Seminário Santo Antônio de Agudos (SP), onde, após o término do Ginásio em 1964, cursei os três anos de Científico (1965-1967). Mantive permanente contato com a família, mediante cartas que trocávamos e, sobretudo, pelo tempo de férias de final de ano com ela, sobretudo ajudando nos trabalhos de agricultura. Lá por 1964, papai passava por dificuldades econômicas. Frei Onésimo Dreyer, reitor do Seminário de Agudos, entendendo a situação, generoso e compassivo, conseguiu-me da Alemanha um padrinho na pessoa do Sr. Heinrich Lang e família, que assumiu os custos das mensalidades do Seminário. Ficamos imensamente gratos a Deus pela família Lang e o querido Frei Onésimo, por quem oramos sempre.

Site Franciscanos – Você é feliz como frade menor?

Frei José Ariovaldo – O tempo de Seminário foi maravilho. Foi um tempo rico que, pela formação humana, espiritual e intelectual dada, contribuiu intensamente para minha posterior vida de frade feliz. Tantos detalhes de experiências lindas vividas e de desafios enfrentados! Daria um livro!

Depois veio o tempo de Noviciado (1968), conduzido pelo querido Frei Basílio Prim, um santo frade que primava pela retidão de vida. Tempo inesquecível, pelas primeiras experiências de vida fraterna, de oração pessoal e comunitária intensa e, por que não, pelos momentos de crise e decisões a serem tomadas. Por exemplo, foi aí que tive que dar uma ressignificada à minha decisão vocacional, ou seja, antes de ser padre tinha que trabalhar para ser frade menor. Uma experiência que me marcou também: Vivi uma crise de fé no tocante à existência de Deus. Incomodava-me e me angustiava a ausência de uma compreensão pessoal de Deus que me preenchesse. Até que, num belo dia, ao ler a Primeira Carta de São João, deparei-me com uma definição de Deus que me marcou para o resto da vida, ou seja, que “Deus é amor” (1Jo 4,8). Virou, mais tarde, até lema do meu ministério ordenado!

O tempo de estudos filosófico-teológicos, em Petrópolis (1969-1974), foi também riquíssimo, trazendo-me enorme crescimento humano, espiritual, intelectual, em que, inclusive o tema “Deus é amor” foi sendo ressignificado e aprofundado. O intenso exercício do pensar filosófico através das aulas, seminários de Filosofia e leituras, as aulas de Psicologia, o apurado contato com a Sagrada Escritura pelo estudo da exegese bíblica, o intenso contato com o pensamento teológico para os tempos atuais, o contado com a História da Igreja, o mergulho nos Escritos de São Francisco, o exemplo de vida dos confrades mais velhos, os contatos com as comunidades eclesiais nas pastorais de final de semana, e tudo isso em meio a naturais crises, conflitos e dificuldades a serem superados, veio me contribuir para o ser frade menor feliz.

Depois veio o tempo de estudos em Roma (1974-1981), especializando-me naquela que, junto à compreensão de Deus como Amor, virou minha paixão, a divina Liturgia. Descobrir o maravilhoso sentido da divina Liturgia, bem como partilhá-lo depois como professor, assessor, escritor, contribuiu em muito para a minha felicidade como frade menor.

Enfim, respondendo à pergunta se sou feliz como frade menor, posso dizer que sim, e muito! Como já aludi antes, sou feliz, sobretudo, pela experiência de imensa gratidão que senti no ano passado, por ocasião do meu jubileu de ouro na Ordem. Gratidão pelo quanto Deus cuidou de mim, me amou, nestes anos todos, feitos de alegria e tristeza, saúde e doença, dando-me a graça da teimosia na caminhada sempre em busca de conversão. Gratidão inclusive terapêutica que, com o passar dos anos recentes, graças a Deus, veio me purificando de eventuais mágoas e amarguras por sofrimentos passados. Até poesias passei a compor, de 2013 para cá. Numa delas, com o título “Deo gratias”, de 14.04.2018, concluo assim: “Não mais me sinto nem senhor do dono que me vejo ser, sou um vazio bem cheio só de pura gratidão”.

Site Franciscanos – Como ser um bom frade? Quais os desafios da vida em fraternidade?

Frei José Ariovaldo – São Francisco continua sendo o nosso melhor facilitador para ser um bom frade. Claro, antes dele, temos nosso Mestre Jesus Cristo. Ele, no momento dramático do Getsêmani (cf. Mt 26,36-46), alerta os seus discípulos para algo que, a meu ver, é de suma importância na vida: A vigilância. “Vigiai e orai para não cairdes em tentação”, nos alerta (Mt 26,41). Mas, atenção: Vigiar, no meu entender, não significa “se policiar”, neuroticamente ficar “se cobrando”. Vigiar tem a ver com pôr-se em sereno e permanente estado de atenção, de observação plena sobre o que a gente está a sentir e pensar. Se você se habitua a estar neste estado, mais facilmente você percebe quando é o seu ego que está querendo pôr-se no comando, pronto a derrubar você num clima de medo, ansiedade, culpa, controle, ódio, agressividade etc… A oração de Jesus no Getsêmani, “Pai, se for possível, afasta de mim este cálice, contudo não se faça como eu quero, mas como tu queres” (v. 39), expressa bem o seu estado de vigilância que o leva a flagrar o “eu” querendo estar no comando para mergulhá-lo no desespero total. Ele mesmo, naquele crítico momento, faz o exercício desta vigilância e, assim, superando a tentação do “eu”, atira-se confiante à vontade do Pai.

São Francisco também, com certeza, procurava viver este estado de permanente vigilância e, nesta vigilância, ia se superando, entregando-se à vontade do Pai. Provavelmente, o fazia com muita dificuldade e dor, pois sempre de novo percebia o quanto seu “eu” o perturbava no projeto de seguimento do Mestre Jesus. Isso se percebe pelo quanto ele se via seguidamente um vermezinho pecador e, ao mesmo tempo, sumamente amado por Deus.

No meu entender, pela minha experiência pessoal atual, a estas alturas da vida, um excelente caminho para ser um bom frade é este do exercício permanente de estar alerta em relação aos sentimentos e pensamentos que vão aparecendo, ao que os nossos irmãos budistas chamam também de permanente estado de presença ou de meditação em qualquer tipo de ação, inclusive na ação de ficar com o corpo imóvel e a mente meditando.

Este “trabalho” com a gente mesmo, no meu entender, tem repercussão positiva para a vida em fraternidade. Pois, por ele, chega-se a um ponto em que a gente já não julga mais os outros, mas apenas convive com todos de maneira humilde, simples, gratuita, alegre, compassiva e compreensiva. Cria-se um feliz clima de harmonia entre os irmãos. É o desafio que temos pela frente, sobretudo neste tempo em que, pelo consumismo da época, somos facilmente “distraídos”, alienados de nós mesmos, desconectados de nossa alma.

Site Franciscanos – O senhor acha que os frades estão aproveitando bem a evidência do carisma franciscano que o Papa Francisco sempre faz questão de colocar em pauta?

Frei José Ariovaldo – Papa Francisco é uma bênção para nós, frades, nestes desafiantes tempos em que vivemos. Ele, resgatando o espírito do Vaticano II de volta à Fonte originária cristã, na pessoa de Jesus Cristo – o que nosso Pai São Francisco buscou também fazer no seu tempo –, constitui para nós um enorme estímulo para a vivência do Evangelho hoje. Tenho impressão que os frades estão se dedicando a viver o carisma franciscano lembrado pelo Papa. Não é fácil, devido a padrões egoicos (do ego) que, como parasitas agarrados em nossos corpos, nos dificultam a dar o salto para “viver o Espírito do Senhor e seu santo modo de operar” (RB X,9). Mas não é impossível. Há uma preocupação e empenho de muitos frades no sentido de arriscar o salto…

Site Franciscanos – Como você apresentaria a Ordem dos Frades Menores a um jovem hoje?

Frei José Ariovaldo – Antes de tudo, pediria para o jovem buscar conhecer São Francisco, através da leitura de biografias do Poverello e seus escritos. Então sim, a partir daí, em conexão o São Francisco aos poucos conhecido e descoberto, lhe mostraria como a Ordem é organizada e como o carisma está sendo vivido hoje: Vida em Fraternidade, Vida de oração e contemplação, Ação evangelizadora.

Site Franciscanos – O senhor disse que se especializou em Liturgia em Roma. O que é Liturgia?

Frei José Ariovaldo – Uma coisa é a Liturgia como ciência, a saber, a pesquisa e estudo sobre a Liturgia como tal. Mas, o que é esta “Liturgia como tal”? Como já disse antes, a descoberta do seu sentido teológico é que me fez dela um grande apaixonado. Já digo por quê.

No meu inconsciente, ligado também de um inconsciente coletivo, sempre tinha eu, codificado, padronizado, um conceito de Liturgia tipo “complexo de ritos eclesiásticos, ritual”, como se podia ver em antigos dicionários para escolas médias. Nosso exímio professor e mestre em Liturgia no ITF, Frei Alberto Beckhäuser, me abriu os horizontes de compreensão da Liturgia como Mistério do culto da Igreja. Tinha a ver com o mistério de Deus a agir no culto da Igreja.

Em Roma, as aulas de teologia da Liturgia ministradas pelo saudoso professor Salvatore Marsili me possibilitaram um insight que me marcou para sempre e, a partir daí, como costumo dizer, a Liturgia para mim “virou uma cachaça”.

Liturgia: trata-se de um vocábulo grego. Seu sentido mais originário grego tem a ver com “prestação de serviço comunitário”. Qualquer tipo de ação, operação, serviço de alguém, que venha beneficiar uma pessoa ou coletividade, os gregos chamavam de liturgia. Assim sendo, olhando para a Santíssima Trindade (Pai e Filho e Espírito Santo), cheguei à conclusão que esse Deus Trindade, o melhor servidor da humanidade, é aquele que realiza a melhor liturgia. Assim sendo, Liturgia é o próprio modo de Deus ser e agir qual servidor da humanidade. O mais perfeito. É o mesmo que dizer: “Deus é amor” (1Jo 4,8)! Por isso, quando eu disse que “Deus cuidou de mim”, eu posso chamar esse amoroso cuidado dele de divina Liturgia.

Pois bem, toda essa divina Liturgia se torna célebre – é celebrada! –, atualizada, de muitos modos: Pela Natureza que nos cerca, pelas práticas de serviços fraternos, pela vida vivida segundo o Evangelho e, por fim, por nossas ações rituais memoriais da divina Liturgia, a fim de vivê-la melhor no dia a dia. Portanto, não se trata apenas de executar ritos religiosos. Trata-se de uma vivência da divina Liturgia presente em todas as nossas ações, sejam elas rituais, sejam elas relacionadas a práticas concretas, a serviços fraternos. Ver a Liturgia nessa perspectiva faz a diferença no próprio modo de celebrá-la, que se torna eminentemente evangelizador.

Site Franciscanos – Como o senhor vê hoje o crescimento a posturas rígidas e ultraconservadoras contra o Concílio Vaticano II, que faz de jovens desinformados da história, da teologia da Igreja e da sua Liturgia, uma presa fácil?

Frei José Ariovaldo – O problema é que, coletivamente, sobretudo no Ocidente, estamos inconscientemente ainda muito padronizados, codificados, segundo um conceito de Liturgia como mera execução de rituais religiosos… Isso vem de longa data e se cristalizou de tal maneira no corpo coletivo, na cultura católica, que se chama isso de verdadeira “tradição” da Igreja. Nascemos e crescemos dentro desta cultura, e nossos corpos – sem percebermos – acabam sendo programados com este modo de pensar, dito cristão. Creio que vai levar um bocado de tempo para se rever e desconstruir essa secular “tradição” conceitual da mente humana para, aos poucos, os cristãos se re-conectarem com a Fonte que é o liturgo Jesus Cristo. Haja paciência!…

Site Franciscanos – Os sonhos acalentados por muitas décadas de uma liturgia acolhedora e participativa, tendo como sujeito a assembleia do povo santo, consolidada pela reforma e renovação conciliar e enunciada na Sacrosanctum Concilium, correm perigo depois de 50 anos em terras brasileiras?

Frei José Ariovaldo – Não diria que correm perigo, mas constituem um permanente apelo evangelizador no sentido de superar a compreensão da Liturgia celebrada como mera execução de ritos religiosos, como já disse antes. A Liturgia celebrada é um momento de experiência pessoal e comunitária de fé cristã pela escuta da Palavra e participação no sacramento, que necessariamente se desdobra depois, no dia a dia, como vivência prática do amor, da justiça, da paz, do respeito à vida, em todos os âmbitos das relações humanas e com a Natureza. Não foi o que aconteceu em séculos passados, por exemplo, no Brasil colônia e toda a América Latina. Muitos católicos “fervorosos” participavam dos rituais religiosos, mas na prática matavam os índios, invadiam suas terras, roubavam o ouro, escravizavam e torturavam os negros, depredavam as florestas, e assim por diante. Alguma coisa estava errada nestes rituais, pois não humanizavam seus participantes!

Site Franciscanos – Comente, por favor, a frase da poetisa e pensadora Adélia Prado: “Missa é como um poema, não suporta enfeite nenhum”

Frei José Ariovaldo – Tenho imensa admiração por esta nossa irmã poetisa, da Ordem Franciscana Secular, Adélia Prado. Compus até uma poesia em sua homenagem. Chama-se “Preito à poetisa”. A frase, dita por ela em Aparecida, no dia 29.11.2007 – se não me engano –, numa palestra sobre “a linguagem poética e linguagem religiosa”, para os participantes de um festival musical e cultural chamado “Vozes da Igreja”, fala muito e é provocadora. Na ocasião, com um tom de humor e lamento, referindo-se a certas missas por aí, ela disse: “Olha, gente, tem algumas celebrações que a gente sai da igreja com vontade de procurar um lugar para rezar”. O problema é que, por não se entender que a missa é expressão enxuta e simples daquilo que é essencial da vida da Igreja – poesia pura, portanto –, sempre houve e há ainda uma tendência muito acentuada de inventar coisa nova e entulhá-la de “enfeites”, movimentações alegóricas, ruídos de muitas palavras e sons, músicas e cantos barulhentos sem gosto artístico, com letras que não têm nada a ver etc. Adélia Prado então enfatiza: “A missa é a coisa mais absurdamente poética que existe. É o absolutamente novo sempre. É Cristo se encarnando, tendo a sua Paixão, morrendo e ressuscitando. Nós não temos de botar mais nada em cima disso, é só isso”. Já notou que, nas missas, muitas vezes, quase só “nós” ou “eu” que falamos do começo ao fim? Pouco espaço sobra para Deus falar. Só nós, nós, nós… eu, eu, eu… Daí a importância do silêncio, ou seja, do calar-se, como linguagem eminentemente poética. Há uma forma silenciosa de proclamar a Palavra, cantar canto litúrgico, tocar um instrumento, pronunciar uma oração, fazer uma homilia etc. Trata-se de fazer tudo isso, mas na permanente audição de Deus. Como diz a poetisa: “A palavra foi inventada para ser calada. É só depois que se cala que a gente ouve. A beleza de uma celebração e de qualquer coisa, a beleza da arte, é puro silêncio e pura audição”. E continua: “Parece que há um horror ao vazio. Não se pode parar um minuto… Não há silêncio. Não havendo silêncio, não há audição. Eu não ouço a palavra, porque eu não ouço o mistério, e eu estou celebrando o mistério”.

Site Franciscanos – É recomendável que se prepare a equipe da Liturgia da Palavra com antecedência?

Frei José Ariovaldo – Com certeza, porque a Palavra na celebração não são palavras apenas, mas o Cristo vivo, Palavra do Pai, se comunicando com os membros do seu Corpo mediante o livro, os códigos verbais (palavras), o espaço da sua proclamação (o ambão) e, sobretudo, pelo leitor(a) que a proclama. Então, qual a missão da equipe celebração da divina Liturgia? É a de possibilitar que a assembleia litúrgica, toda ela, se transforme num espaço aberto, bem aberto, de audição da Presença do Cristo-Palavra… Depende de como (com que espírito) os agentes (o livro, as palavras, o ambão, os leitores e outros ministros e ministras) se apresentam e são apresentados. Ora, para que tal experiência do mistério aconteça na celebração, é fundamental que a equipe de Liturgia se prepare, não só do ponto de vista técnico, mas, sobretudo, do ponto de vista espiritual.

Site Franciscanos – Muitas vezes, tem-se a impressão que um presidente da Celebração litúrgica, e mesmo equipes de Liturgia, está na frente dando seu showzinho particular e roubando ao povo o direito à Palavra e ao canto. O que o senhor opina sobre isso?

Frei José Ariovaldo – Ligando com o que há pouco ouvíamos da poetisa Adélia Prado, há que se educar para uma forma silenciosa de agir na Celebração. Atuar em qualquer ministério numa assembleia litúrgica exige vigilância e muita ascese. Pessoalmente me esforço por fazer sempre comigo o exercício de vigilância sobre o meu ego. Pois, se cochilo, vacilo e meu “eu” toma o comando e – pronto! – corro o risco de fazer muito barulho, de tornar-me um showman, e a voz do mistério fica abafada.

Site Franciscanos – O que o senhor traria como preocupação hoje, após 37 anos de publicação de sua tese de doutorado, “O Movimento Litúrgico no Brasil – Estudo Histórico”?

Frei José Ariovaldo – A partir do século 19 desenvolveram-se na Europa grandes centros de pesquisa e descoberta no âmbito da Sagrada Escritura, Patrística, Arqueologia cristã e, sobretudo, das fontes litúrgicas antigas (Sacramentários, Missais, Pontificais, Rituais etc.). Com tais pesquisas foi se tomando consciência cada vez mais aguçada sobre o quanto a compreensão de Liturgia e suas práticas celebrativas se distanciaram das Fontes mais originárias de vivência cristã. Daí surgiu na Europa – a partir de 1909 – um influente movimento de reforma da Liturgia dentro da Igreja. O movimento desembocou no Concílio Vaticano II com a Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia, que apresentou as bases teológicas e orientações pastorais para uma reforma da Liturgia e consequente renovação da vida litúrgica da Igreja. O movimento chegou aqui no Brasil e, a partir de 1933 criou corpo para valer por influência dos monges beneditinos, alguns bispos, vários padres e as lideranças leigas da Ação Católica. Pesquisei-o em sua evolução até o anúncio do Concílio pelo Papa João XXIII em janeiro de 1959. Uma das coisas que me chamaram atenção foi o feroz estranhamento que alguns segmentos conservadores da Igreja Católica, mais ligados às devoções marianas, manifestaram frente esta busca pela reforma da Liturgia. Houve muitos conflitos, pois era uma coisa nova que aparecia. Os promotores da reforma litúrgica eram acusados de hereges, e até de comunistas pelo fato de, a partir da Liturgia, incentivar a experiência de vida comunitária e participativa na Liturgia. É que os conservadores traziam dentro deles padrões religiosos devocionais acentuadamente individualistas, provindos da Idade Média, e que o resgate do sentido próprio de Liturgia, bebido das fontes patrísticas e das fontes litúrgicas antigas, questionava. O que me incomoda é que, não obstante o movimento litúrgico e, depois, os 47 anos já passados de reforma litúrgica pós-conciliar, tais padrões religiosos conservadores não foram equilibrados, muito menos sanados, no inconsciente coletivo de fortes segmentos da Igreja. Mas tenho a impressão que a própria sociedade, aos poucos, daqui para frente vai se encarregando de questionar e desconstruir tais padrões e, ao mesmo tempo, ajudar a construir vivências autenticamente cristãs da sagrada Liturgia.

Site Franciscanos – Quais são os desafios para o estudo de liturgia hoje e o que pode contribuir para o homem pós-moderno?

Frei José Ariovaldo – Eu ressaltaria três desafios. 1) Que o estudo da Liturgia seja feito a partir da Liturgia mesma, representada pelos textos dos livros litúrgicos, cujo conteúdo esteja em conexão, é claro, com as realidades concretas atuais do mundo, da sociedade e da Igreja. “Padre, deixe a Liturgia falar”, advertia certa vez uma religiosa sensível ao espírito da Liturgia, ao padre que vinha fazer o show dele e inventar coisas novas, dando assim a entender que a Liturgia mesma, o mistério celebrado, ficava em segundo plano. 2) Penso que tal metodologia de estudo e vivência da Liturgia deva também contribuir para amansar os ferozes lobos, egoicos, agarrados nos corpos dos conservadores, aguerridos no combate ao emergir do Novo, do diferente dos padrões mentais meramente humanos de entender e viver a divina Liturgia. É o que o Papa Francisco vem tentando fazer, mas com muita dificuldade, até mesmo recebendo ameaça. Eles, inclusive, são economicamente muito poderosos. De nossa parte, precisamos também estar conscientes de que assim é, a saber: Que existe um inconsciente coletivo ritualístico católico tão arraigado e rígido – como os “religiosos” no tempo de Jesus! – que, mesmo diante da evidência do Novo, não arredam pé e são agressivos. Importante perceber isso e, como Jesus, no fim dizer: “Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34). 3) No estudo da Liturgia, principalmente para quem assume algum ministério, temos o desafio de criar o hábito da vigilância sobre o que o corpo sente e o que a mente arquiteta. O ego pode ser esperto e sabotador e, se não nos habituarmos ao estado de presença, vacilamos, caímos e nos transformamos em celebrantes, não do mistério, mas dele, do nosso “eu”, ávido de aplausos, confetes e/ou de controle e dominação sobre os outros. E aqui, enfim, valeria a pena trazer a palavra da poetisa Adélia Prado: “A liturgia celebra o quê? O mistério. E que mistério é esse? É mistério de uma criatura que reverencia e se prostra diante do Criador. É o humano diante do divino. Não há como colocar esse procedimento num nível de coisas banais ou comuns”.