Semana Teológica: Diálogo e Fraternidade Universal a partir da “Fratelli Tutti”
20/10/2021
Petrópolis (RJ) – O segundo dia da XXII edição da Semana Teológica teve como palestrantes Frei James Luiz Girardi e Maria Clara Bingemer. A partir do tema central do evento “Fratelli Tutti: Sobre a fraternidade e a amizade Social – Caminhos e desafios para a fraternidade universal”, os palestrantes falaram respectivamente sobre os seguintes temas: “Diálogo: Caminho para construir a fraternidade e a amizade social” e “Fraternidade Universal a partir da Fratelli Tutti”. O evento acontece de forma on-line e é organizado pelo Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis (ITF) em parceria com a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), e nesta quarta-feira (20/10), reuniu mais de 200 participantes.
Após a oração inicial preparada pelos Frades do Tempo da Teologia de Petrópolis (RJ), o professor e religioso franciscano, Frei James Luiz Girardi iniciou sua explanação afirmando que a Fratelli Tutti é um documento que não se esgota em pouco tempo. “Podemos fazer várias abordagens e muitos estão se debruçando sobre está Encíclica”, introduziu.
Frei James informou que sua apresentação se daria na perspectiva do diálogo como um dos possíveis caminhos para a construção da fraternidade e explicou que a palavra diálogo, muito usada pelo Papa Francisco, aparece mais de 50 vezes na Encíclica Fratelli Tutti, sem contar as outras tantas palavras correlatas como: aproximar-se, expressar-se, ouvir-se, olhar-se, conhecer-se, esforçar-se por entender-se, dentre outras.
Para Frei James, o diálogo é algo imprescindível para o atual momento histórico. Numa sociedade em que a pluralidade é fato e não um desafio passageiro, mais do que necessário é preciso criar estilos de vida que possibilitem o encontro. “A atual sociedade é múltipla e diversa. Devemos como operários da convivência ir tecendo a teia que possibilite o que a Encíclica Fratelli Tutti nos aponta: A Fraternidade e amizade Social. O diálogo aqui é entendido como uma construção, um processo, uma verdadeira artesania”, frisou.
Segundo o franciscano, a palavra diálogo não aparece no texto da Encíclica apenas como uma ideia, um conceito, mas como uma prática, uma forma de vida, sem a qual não é possível a fraternidade e a amizade social. “Já na introdução da Encíclica o Papa Francisco deixa claro e nos situa aonde quer chegar”, lembrou.
“O diálogo com todas as pessoas de boa vontade é premissa indispensável para este momento. Trazer o tema do diálogo hoje, tendo em conta toda a situação de não diálogo que nos encontramos é não somente necessário como urgente. Uma das expressões que o Papa Francisco muito usa em seus escritos e pronunciamentos, é de que, devemos construir pontes e não muros. As pontes unem, possibilitam o encontro, os muros dividem, separam”, observou.
Citando o parágrafo 211 da Encíclica Fratelli Tutti, disse: ‘Em uma sociedade pluralista, o diálogo é o caminho mais adequado para se chegar a reconhecer aquilo que sempre deve ser afirmado e respeitado e que ultrapassa o consenso ocasional’. “Portanto ao fazermos uma leitura da Encíclica a partir desta ótica dialógica, queremos, compreender que o diálogo mais que um conceito é uma forma de vida, compreende-lo como um processo, um caminho, uma tarefa humana a ser realizada”, acrescentou.
Frei James que atualmente trabalha na Paróquia São Francisco de Assis, na Baixada Fluminense, fez um estudo mais aprofundado do capítulo II e VI da Encíclica, sem deixar é claro, de ter uma visão sobre todo o texto da Encíclica e apresentou a relevância do diálogo para as questões atuais.
UM ESTRANHO NO CAMINHO
Segundo o palestrante, o segundo capítulo da Encíclica tendo por título “Um estranho no caminho”, traz a parábola do bom Samaritano (Lc 10,25-37), mas a palavra diálogo não aparece em nenhum momento de forma explícita. “Porém, vai nos orientar para uma pedagogia do encontro com os diferentes, e isto nada mais é do que abertura e diálogo para construir relações de vida e vida baseadas no amor”, explicou.
Sobre os Samaritanos, Frei James explicou que são povos que habitavam o reino de Israel ao norte e não eram acolhidos e nem bem vistos pelos judeus da Judeia, ou seja, os que eram do Reino de Judá ao Sul, se consideravam os puros. “O simples contato com um destes samaritanos os tornava impuros”, lembrou. “Mas devemos ressaltar que da parte dos samaritanos também havia uma hostilidade recíproca. Uma animosidade de ambas as partes”, disse.
“Os Samaritanos eram considerados estranhos do ponto de vista religioso, viviam uma mistura de religiões. Eram considerados estranhos do ponto de vista étnico, eram formados por vários povos vindos de muitos lugares e eram também considerados estranhos do ponto de vista político. A palavra Samaritano, muitas vezes era usada como xingamento. Então, o Samaritano é antes de tudo um estranho. Está passando num lugar “estranho”, encontra-se com o outro “estranho” a ele. Mas este “estranho”, o Samaritano, é o que vê realmente”, discorreu.
Para Frei James, o olhar do Samaritano é um olhar diferente. Um olhar que se compadece se deixa tocar pelo caído. Ele vê bem, vê com o coração. Vê o abandonado. Para ele não existe mais a diferença de habitante da Judéia e habitante da Samaria, há o caído. “Ele supera estas diferenças abrindo um novo caminho, o caminho do encontro que supera o ódio nacional que há tanto tempo está enraizado. Ele foi capaz de “construir” a fraternidade e a amizade social”, expressou, acrescentando: “O Samaritano torna-se um paradigma do diálogo. Diálogo que se deu na solidariedade”.
O docente revelou que é diante do caído que se decide optar ou não pelo diálogo. “É diante dos descartados, desancorados existenciais, os perdidos em busca de sentido, os que habitam as mais diversas periferias existenciais. As pessoas são sempre marcadas por suas diferenças. Acolher uma pessoa é acolher também sua diferença, sua singularidade”, evidenciou. Segundo o frade, a saída está no diálogo sincero e honesto e não convencional, por pura diplomacia.
Na sequência, Frei James ofereceu oito pontos para um salutar diálogo, a saber: 1- Confessar a própria ignorância das convicções do outro; 2- Diálogo que vai se transformando em conhecimento mútuo, em respeito, em cuidado, em amor; 3- Interromper o ciclo de defesa das próprias convicções. Dialogar só pra defender: ou querer convencer o outro; 4- Diálogo que deve ser construído por todas as partes envolvidas. É um constante encontro das diferenças. E o que sempre deve ser evitado é dialogar somente para defender suas próprias convicções; 5-Evitar a destruição das diferenças em buscar aquilo que é comum de forma apressada; 6- Diálogo que evita a anulação do outro e também o relativismo, diálogo que se sabe sempre em construção e sabe ser autocrítico; 7- Trabalhar uma hierarquização de importância das diferenças. Há verdades mais importantes, mais centrais, mais universais; 8- Promover alianças e engajamentos éticos comuns de interesse social.
“Que esse percurso seja feito com espírito auto crítico de empatia e de abertura para o aperfeiçoamento das convicções, a gente sempre pode melhorar”, afirmou.
DIÁLOGO E AMIZADE SOCIAL
Sobre o sexto capítulo da Encíclica, que tem como título “Diálogo e Amizade Social”, Frei James apresentou uma sequência de verbos que têm relação muito próxima com o verbo dialogar, a saber: olhar, ouvir, conhecer, entender, aproximar, expressar. Esse verbos, disse o palestrante, servem para explicar que o diálogo permite que nos encontremos e nos ajudemos mutuamente e consequentemente ajudar o mundo a construir a fraternidade e a amizade social.
“Este capítulo vem acrescentar e confirmar minha hipótese de que o diálogo é um processo, algo artesanal e que precisa sim ser sempre recomeçado. Se alguns fogem da realidade e outros a enfrentam de forma destrutiva, há sempre uma opção possível, o diálogo’, reiterou. “Embora hoje presenciemos com muita força, troca de opiniões exaltadas nas redes sociais, cada um se acirrando em posições nem sempre confiáveis e que são disseminadas pelas redes sociais, cremos que o diálogo não é algo polêmico, controverso”.
Para o palestrante, o que a Encíclica propõe é oferecer ao outro uma convicção íntima que se tem, mas ao mesmo tempo dar ao outro a oportunidade de apresentar as suas convicções. “É preciso construir juntos”, pediu. Citando o parágrafo 203 da Encíclica, disse: ‘O diálogo social autêntico inclui a capacidade de respeitar o ponto de vista do outro, admitindo a possibilidade de que nele contenha convicções ou interesses legítimos. A partir da própria identidade, o outro tem uma contribuição a fazer, e é desejável que aprofunde e exponha sua posição para que o debate público seja ainda mais completo’.
“Concretamente entendo esta afirmação do Papa Francisco como a necessidade de sentar juntos. Ter a capacidade de respeitar o ponto de vista do outro, propiciando espaço para a fraternidade e amizade social. Também se compreende que diálogo não significa relativismo. Se ele é um caminho a ser percorrido, um processo, ele não pode ser apressado para chegar a conclusões precipitadas como que querendo dirimir as diferenças buscando aquilo que é comum. Este procedimento acaba banalizando as diferenças, tornando-as indiferentes, dispensando o trabalho paciente do discernimento lúcido e respeitoso”, frisou.
“É fundamental que tenhamos consciência das dificuldades que hoje encontramos para gerar esses processos de encontro, mas precisamos estar abertos e criativos e descobrirmos caminhos de superação. A Fratelli Tutti em meu modo de entender, oferece um belo caminho, o caminho persistente do diálogo”, salientou.
E concluiu: “Que possamos criar sensibilidade por este estilo de vida que se aproxima, ouve, olha conhece e tenta entender o diferente e diante da realidade do eu e o tu, poder crescer para o “nós”. Um mundo aberto exige de nós irmos mais além, da própria família, ao grupo social que temos, da nossa teia de relações. Ir além para contribuir na construção de uma cultura do encontro, construindo pontes que nos levem de forma concreta viver hoje e no futuro uma melhor fraternidade e amizade social”.
FRATERNIDADE UNIVERSAL A PARTIR DA “FRATELLI TUTTI “
O segundo período da manhã contou com a participação da doutora em Teologia, Maria Clara Bingemer. Logo no início de sua explanação, a docente da PUC-Rio ressaltou que na Fratelli Tutti o Papa Francisco resgata os principais documentos e pronunciamentos de seu pontificado para falar da fraternidade humana. “É um projeto tão adiado e ao mesmo tempo tão urgente. Deixa claro desde o início do documento que a fraternidade que ele propõe é a fraternidade universal, como universal é a proposta do Deus de Jesus”, introduziu.
Segundo ela, o parágrafo 6 da Encíclica explica essa proposta, onde o Papa Francisco revela que a Fratelli Tutti não pretende resumir a doutrina sobre o amor fraterno, mas detêm-se na sua dimensão universal e na sua abertura a todos. Citando o Sumo Pontífice, disse: “Entrego esta encíclica social como humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras”.
Maria Clara afirmou que o Papa Francisco faz na sua Encíclica uma nova e inspirada síntese, onde a figura de Francisco de Assis continua sendo uma farol iluminador apontando o caminho, tal como foi na Laudato Si´. “A marca da universalidade está presente ao longo de todo o documento. A Encíclica traz uma inspiração ecumênica e mesmo inter-religiosa. E, assim como na Laudato Si’, Francisco na Fratelli Tutti, mais uma vez se inspira em São Francisco para dar essa mensagem extraordinária e bela”, destacou.
Segundo a palestrante, foi o Poverello de Assis que motivou o Bispo de Roma a escrever esta notável Encíclica dedicada a Fraternidade e Amizade Social. “Escreveu ‘todos os irmãos’, para se dirigir a todos os irmãos e irmãs e propor um modo de vida com sabor evangélico. São Francisco é aquele que se sentia irmão do sol, do mar, do vento e sabia que estava ainda mais unido aos que eram da sua carne, os seus semelhantes, especialmente com os pobres e abandonados deste mundo”, ressaltou.
A palestrante ressaltou que o Papa também se inspirou na atitude ecumênica de Francisco de Assis ao relembrar e valorizar a visita do santo ao Sultão no Egito, no auge das cruzadas, buscando o encontro e o diálogo e mostrando assim um coração sem limites, capaz de ir além das distâncias de origem, nacionalidade, cor ou religião. “Essa passagem da vida de São Francisco é extraordinária”, salientou.
Explicou ainda que o Papa, na redação da Laudato Si´, teve uma importante fonte de inspiração em seu irmão Bartolomeu – patriarca ortodoxo que propôs fortemente o cuidado da criação -, e que na Fratelli Tutti, sentiu-se especialmente estimulado pelo grande irmão Abd Al-Fattah, com quem já havia se encontrado em 2019 em Abu Dhabi, para lembrar que Deus criou todos os seres humanos iguais em direitos, deveres e dignidade e os chamou para viverem entre irmãos entre eles.
“É evidente desde as primeiras páginas da Fratelli Tutti a inspiração do diálogo, ecumenismo, de abertura ao diferente. É um documento escrito sobre o incentivo da colaboração anterior de uma irmão de outra religião, com quem já havia assinado um documento em Dubai, em favor da paz e da coexistência comum. Além disso, ao longo do documento a gente percebe toda a perspectiva de diálogo constante. Desde a tradição da Igreja católica, como Francisco de Assis, os padres da Igreja, papas antigos e recentes, com outras religiões e lideres cristãos de outras denominações, como de pensadores renomados, escritores, poetas e compositores”, disse.
Para Maria Clara, Francisco faz um diagnóstico mencionando os sonhos de integração da humanidade que já fracassaram ou que estão bastante ameaçados, e que estes seriam os passos para uma universalidade. Segundo ela, o papa conclui que a globalização conectou os indivíduos, mas não conseguiu realmente superar o individualismo e formar comunidades e fraternidades. Neste ambiente, onde a única aspiração é consumir sem limites, o Papa constata que a política perdeu sua caraterística de discussão sadia sobre projetos de longo prazo para o bem comum, e se tornou um punhado de estratégias menores que visam a destruição do outro para obter vantagens, posições que trarão benefícios apenas para alguns. “Isso vemos em nosso quotidiano, infelizmente”, lamentou.
Segundo ela, enquanto na Laudato Si’, o Papa propõe uma conversão ecológica que levasse todos a se entenderem como seres vivos que coexistem, vivem, convivem e cuidam de uma Casa Comum, agora ele se volta para a humanidade e deseja que ela compreenda que cuidar do mundo significa cuidar de si mesma. “É quando ele desenvolve um triste diagnóstico de uma cultura que é marcada pelo descarte, de objetos, de coisas, mas também de pessoas”, disse, explicando que algumas categorias de pessoas surgem como grandes vítimas deste processo de descarte e rejeição global, como os idosos, os portadores de deficiência física, pobres e os migrantes. “Essas pessoas são descartadas e eliminadas de todas as previsões e de todos os mapas, por não serem mais eficazes para a roda de uma sociedade baseada no sucesso e não na fertilidade. Êxito, não quer dizer fecundidade, são diferentes categorias”, acrescentou. “Há a necessidade de reconstruir a dignidade esquecida de nossos irmãos, os mais vulneráveis, esquecidos e excluídos”, pediu.
“Toda verdadeira experiência de solidariedade nasce debaixo, do subsolo da realidade, nasce a partir dos últimos, porque a única condição de recomeçar é sempre a partir debaixo. Isso é uma coisa tão simples na sua obviedade que nos perguntamos se de fato é assim mesmo. Se começamos de cima, muita gente fica de fora. Foi a constatação que os bispos em Medellín, em 1968 fizeram achando que iriam chegar a todos e não chegaram. O ponto de partida são os pobres, porque assim incluiremos a todos”, disse. Terminou sua explanação citando Charles de Foucauld, afirmando que ele gostaria de ser um irmão universal, mas que isso só aconteceu quando ele se identificou com os últimos da sociedade.
Assim como no 1º dia da Semana Teológica, o período da tarde foi reservado para comunicações e apresentações de artigos e trabalhos dos discentes, com diferentes temas e grupos temáticos. Neste dia 21 de outubro, 3º dia da Semana Teológica, os mais de 200 participantes vão refletir sobre os “Aspectos Pastorais da Fratelli Tutti”, com o professor Pe. Abimar Moraes e sobre a “Fraternidade nos escritos de São Francisco”, com Frei Vitório Mazzuco.
Frei Augusto Luiz Gabriel