Frei Odorico Decker “A música é minha missão”
23/08/2019
Érika Augusto
Aos 90 anos, Frei Odorico Decker é conhecido por estar sempre acompanhado de sua gaita. No Convento São Francisco, em São Paulo, ele participa das celebrações no meio da assembleia. Quando solicitado, toca para o povo alguma melodia. Para ele, esta é sua missão de vida. “Recebi o dom de Deus de tocar este instrumento”, afirma. Além da música, Frei Odorico tem outros dons, como a fotografia. Foi através desta arte que o frade registrou sua passagem missionária em Angola, onde viveu nove anos, durante o período da guerra.
Site Franciscanos – Fale um pouco de sua vida
Frei Odorico – Chamo-me Pedro Decker, de nascimento. Nasci em Antônio Carlos (SC), mas fui registrado no município de Biguaçu. Somos 15 irmãos, 7 mulheres e 8 homens. Sou o 12º. Hoje, somos quatro irmãos vivos. Um com 99 anos, minha irmã com 92, eu com 90 e outro com 88. Entre eles, tive duas irmãs que se tornaram religiosas, na Congregação da Divina Providência, ambas já falecidas. Quando era criança, com um ou dois anos, fiquei muito doente, com pneumonia. Com muito custo, sobrevivi! Algo que marcou minha infância foi receber a Primeira Eucaristia, aos nove anos. Rezo até hoje, quando comungo: “Primeiro e sempre eterno amor”. Gostava muito de admirar o presépio. O Natal era a festa máxima para mim! A partir dos oito anos fui estudar na escola alemã. Aprendi a ler e escrever em alemão. Hoje não sei mais.
Site Franciscanos – E quando surgiu sua vocação?
Frei Odorico – Minha vocação surgiu na infância. Era bastante piedoso. Imaginava como devia ser bonita a vida do padre dentro da batina. Fiquei meditando aquilo. Aos 15 anos, comecei a perceber este desejo e dizia que seria religioso. As pessoas também percebiam e falavam isso para mim. Aos 18 anos, em 1948, fui servir o Exército no Rio de Janeiro (RJ). Durante este ano, perdi meu pai. Ele faleceu no dia 25 de agosto, Dia do Soldado. Nunca mais pude vê-lo. Depois de um ano, quando voltei, fiquei mais um ano e meio em casa. Por ocasião da festa de Bom Jesus, a mais importante na região, fui comprar meu primeiro terno. Ele era marrom. Fui à capital sozinho, comprei a fazenda marrom e fiz o terno. Foi com ele que ingressei na vida religiosa franciscana. Em 1950, em Rodeio (SC) durante a vestição, quando recebi o hábito, tiraram meu paletó e jogaram longe. Colocaram o hábito, depois me puseram o cíngulo. Na mesma hora, falei: “É para sempre!”. E foi assim! Hoje, estou com 69 anos de vida religiosa!
Site Franciscanos – E como foi o início de sua vida religiosa franciscana?
Frei Odorico – Em Rodeio, minha felicidade era ser sacristão. Sentia que estava no céu por trabalhar dentro da igreja, enfeitando os altares, plantando as flores para o altar. Fiquei muito feliz por ser sacristão. Depois fomos para Rio Negro (PR). Lá era enfermeiro dos irmãos, mesmo sem ter formação na área. Em 1954, voltei para Rodeio, para fazer o noviciado. Lá fiz os instrumentos para a roça de toda a paróquia, num aparelho manual de ferro, no carvão.
Depois da Primeira Profissão, fui transferido para Guaratinguetá como cozinheiro. Foi minha primeira viagem de avião. Lá havia 80 seminaristas fazendo o primário. De Guará fui para Agudos, em 1957, como cozinheiro também. Lá havia 400 seminaristas. Eu e outros frades cuidávamos da cozinha. Na época, não gostei do ambiente e rezei pedindo para sair de lá. Em um mês, o guardião me chamou e disse que precisavam de alguém em Curitiba (PR) para cuidar de um frade. Cuidei dele durante um ano. Depois fui transferido para Canoinhas (SC), em 1958, onde fiquei quatro anos. Lá era sacristão e cuidava da casa. Depois, voltei para Rio Negro, para trabalhar na cozinha. Em 1969, fui transferido para o Convento São Francisco, em São Paulo (SP), para fazer trabalhos comuns e ser cozinheiro.
Site Franciscanos – E quando surgiu o desejo de ser missionário?
Frei Odorico – Quando era jovem, meu pai me disse que tinha o desejo de adotar uma criança negra, mas nunca conseguiu realizar. Guardei aquilo no coração, como Nossa Senhora. Um dia, no refeitório do Convento São Francisco, diante do Ministro Provincial, que era o Frei Estêvão Ottenbreit, e dos Definidores, disse: “Quero ir para Angola”. E eles me enviaram em missão. Fui em 1991 e fiquei nove anos. Fiquei em Malange e depois em Quibala, por dois anos. Fiz parte da segunda turma que foi para lá. Em Angola era cozinheiro, fotógrafo, cuidava da casa, da igreja. Voltei no ano 2000 para me tratar, pois estava muito doente.
Site Franciscanos – E como foi este período na Missão?
Frei Odorico – Em todos os anos que fiquei, havia a guerra. Era muito penoso. Estávamos sempre vivendo o sentimento de estar entre a vida e a morte. Tínhamos que nos esconder quando ouvíamos as bombas caindo na vizinhança. Um dia, uma bomba caiu perto da igreja dos frades e destruiu uma parte da construção. Em outra ocasião, caiu dentro de nossa casa. Ela quebrou as janelas e os destroços caíram no refeitório. Arrumei o telhado, com as telhas que ganhamos do bispo. Não havia luz elétrica e tínhamos que buscar a água na fonte. Trazia em baldes com 20 litros em cada mão. Depois, subia na escada para colocar dentro da caixa d’água. Na fonte que pegávamos a água, as mulheres tomavam banho. Como eu era religioso e conhecido na região, elas permitiam que eu fosse lá para pegar água. Enquanto elas enchiam os baldes, eu cantava a música “Carinhoso”, de Pixinguinha. Eles têm muito cuidado com o corpo. As mulheres – mesmo quando tomavam banho na fonte – sempre estavam cobertas. Como havia a guerra, não havia outras religiões. Nos domingos e dias de festa faltava lugar na igreja. Todos com muita alegria, vigor e respeito. Chorei muito com eles, por causa da beleza e da pureza da manifestação de fé do povo angolano. As mulheres com crianças nas costas, dançando, levando alimentos para o ofertório. Era muito bonito! E eu estava sempre no meio do povo.
Site Franciscanos – E quais eram suas tarefas em Angola?
Frei Odorico – Além da cozinha, cuidava da roça, da horta, fazia as celebrações na ausência do padre, acompanhava a Legião de Maria, visitava os doentes. Não sabia fazer o funji, prato típico de lá, feito de farinha de mandioca. Na fraternidade, fazia a comida comum. Com os angolanos sinto-me em casa, tenho um sentimento de pertença. Quando estava em Malange, vieram os 14 primeiros aspirantes. Eles moravam conosco, isso foi muito bom. As pessoas duvidavam que fôssemos conseguir. Havia muitas pessoas deficientes, eu gostava de carregá-los, ir nas aldeias, fazer a Celebração da Palavra, levar Eucaristia aos enfermos, tocar gaita para o povo.
Site Franciscanos – E quando surgiu o gosto pela fotografia?
Frei Odorico – Comecei a fotografar em 1958. Tinha uma inclinação para a fotografia. Era meu hobby, algo que me fazia muito bem. Sempre fui muito tímido, então, de propósito, comecei a fotografar para me aproximar das pessoas. Fui aprendendo aos poucos, fazendo cursos, procurando as melhores máquinas fotográficas. Era tudo manual. Não sei usar máquina digital nem celular. Tinha as melhores máquinas, quase todas importadas. Tinha uma de origem alemã que pesava 1 kg. Quanto mais pesada a câmera, mais nítida era a imagem, pois o peso fazia estabilizar a cena. Em Angola, registrava, sobretudo, coisas ligadas às artes, cultura e costumes.
Site Franciscanos – E quando a música entrou em sua vida?
Frei Odorico – Eu “nasci musicando”. Eu mesmo fazia meus instrumentos. Pegava um bambu e fazia um violão; com folhas de abóbora e bambus criava flautas. Furava os buracos de acordo com as notas musicais e tocava com elas, só para fazer barulho. Meu irmão tinha uma gaita de boca e me emprestava para tocar na escola. Aos oito anos, toquei pela primeira vez numa apresentação da escola. Quando estava com 12 anos, minha irmã pediu para capinar a horta da casa dela e que me disse que se eu fizesse, o Menino Jesus me traria uma gaita. Eu fiz e ganhei uma gaitinha. Eu tinha bom ouvido, captava bem a melodia das músicas. Aprendi sozinho, sem ninguém me ensinar. Em 1970, quando estava em São Paulo, chegou um candidato à vida religiosa franciscana. Era o Frei Hans Stapel, da Fazenda da Esperança. Tratava-o muito bem, acolhi bem toda sua família. Um dia eles estavam com vontade de comer abacaxi e servi até eles ficarem saciados. Em agradecimento, ele falou que poderia pedir o que quisesse que a mãe dele traria da Alemanha. Pedi, então, uma gaita cromada da marca Hohner, que é a que uso até hoje. Não sabia tocar esta gaita e procurei um professor. Fiz oito meses de aula e aprendi o manejo da gaita. Fui tocando, meio errado e meio certo. Nunca parei. Mesmo errado, tocava até o fim a música. Quando voltei de Angola, fiz um ano e meio de aula. Mesmo assim, ainda não sei tudo. A gente aprende a trabalhar, trabalhando; aprende a cantar, cantando; aprende a tocar, tocando. Quem não toca não aprende. Hoje sou muito bom na gaita. O fôlego muda e, às vezes, fica difícil. Mas nunca desisti. Quanto mais público, melhor eu toco. Quando tem mais gente, sinto mais o peso da responsabilidade e a seriedade do que estou fazendo. Em Angola, toquei para 7 mil pessoas no Congresso Eucarístico. Escolhi o “Toque do Silêncio”.
Site Franciscanos – O sr. escreve também?
Frei Odorico – Escrevi dois livros: “Raízes vividas”, uma autobiografia; “África, meu amor”, sobre o período em Angola. Musicalmente, fiz uma melodia com a letra de um padre português sobre Santa Clara. No Brasil, essa partitura foi reconhecida como um dos cânticos clarianos. Mas antes de ser sobre Santa Clara, esta música tinha uma letra popular, baseada no linguajar dos angolanos durante a guerra. A pedido das Irmãs Clarissas, fizemos a mudança da letra. Para mim, as melodias são um dom de Deus.
Site Franciscanos – E por que escolheu a vida religiosa franciscana?
Frei Odorico – Escolhi a vida religiosa franciscana para me salvar. Desde a infância sonhava com São Francisco. Aos 9 anos estava doente, deitado na cama sozinho e, ao lado, a imagem de São Francisco abraçando Jesus na cruz. Eu não tirava o olho daquela imagem, desde criança. Depois, quando voltei do Rio de Janeiro após servir o Exército, fui levar meu irmão para se apresentar ao Serviço Militar. Ele entrou e fiquei do lado de fora. Enquanto esperava por ele, subi num morro que tinha lá perto e entrei como que em êxtase vendo São Francisco de Assis. Não sentia meus pés no chão. Quando já era frade, em Guaratinguetá, fui à Basílica Velha em Aparecida e lá aconteceu novamente este episódio intenso de oração. E, outra vez, no Rio de Janeiro, no Cristo Redentor. Para mim, estes episódios foram sinais da minha vocação.
Site Franciscanos – Quais são as suas devoções?
Frei Odorico – Minha primeira devoção é o Menino Jesus do Presépio. Depois, a Eucaristia e Santa Teresinha do Menino Jesus, pelo fato dela ser a Padroeira dos Missionários.
Site Franciscanos – No Convento São Francisco passam muitos jovens que desejam ser franciscanos. O que o sr. diz para eles?
Frei Odorico – Estou no meio deles sendo aquilo que eu sou. Quero ser aquilo que eu sou, só isso. Com toda minha experiência, tudo o que transparece de mim – o bom e o ruim – eles veem. A vocação é deles, eles que escolhem. A vocação é assim: você que direciona, tem que querer vencer. Não vamos achar ninguém santo e perfeito no início. Todos os frades procuram dar exemplo. Cada um tem que dar o máximo de exemplo possível, e cada um se esforça para isso. Sempre participo da Missa estando no meio do povo, para ser uma presença na assembleia. O povo gosta muito, sempre me cumprimenta. O importante é perseverar no bem. Para mim, é uma missão estar na Igreja, no meio do povo e tocando minha peça musical para eles. Outra coisa importante para mim é o silêncio. Quando um frade erra, temos que guardar o silêncio. Jesus e Nossa Senhora nos deixaram este exemplo. O que corrige é o silêncio! Sobre a fé, temos que perseverar. Ter fé não quer dizer que você sente tudo. Não ter fé não quer dizer que você não sente nada. Fé é você fazer. Dar exemplo através do trabalho, oração, obediência, caridade. Jesus diz que o mínimo que fizermos aos nossos irmãos, é a Ele que estamos fazendo. Para mim, isso é a salvação!