Frei André fala dos 14 anos como missionário em Angola
14/02/2022
Nos quase quatorze anos de permanência na Missão da Província da Imaculada em Angola, Frei André Gurzynski acumulou muita história de vida.
Neste domingo, 13 de fevereiro, Frei André Gurzynski encerrou uma etapa dos 40 anos de sua vida religiosa franciscana. Ele retornou da Fundação Imaculada Mãe de Deus de Angola (FIMDA), onde foi durante quase quatorze anos missionário na Fundação Imaculada Mãe de Deus de Angola (FIMDA).
Frei André faz um resumo dessa experiência missionária para o site Franciscanos e fala com carinho dos oito anos que ajudou a construir a casa que abrigou primeiro os postulantes da Missão e depois se tornou casa dos noviços. Ele também conta como teve paciência para não deixar que uma cobra, que entrou em sua calça, causasse uma tragédia.
Frei André nasceu em Canoinhas, SC, em 27 de novembro de 1962. Vestiu o hábito franciscano no Noviciado de Rodeio em 20 de janeiro de 1981 e fez a profissão solene em 2 de agosto de 1985, tornando-se irmão leigo.
Em 1987, Fez estágio pastoral em Duque de Caxias, no bairro de Campos Eliseos. Foi transferido em 1992 para Coronel Freitas e, em 1996, para Porto União (SC). Em 1997, veio para a Sede Provincial, em São Paulo, como tesoureiro da Província e vice-secretário do Secretariado de Evangelização; em 2000 ficou responsável pelas Obras Sociais da Província, função que desempenhou até 2003 no Serviço Franciscano de Solidariedade (Sefras).
Em 2006 partiu em missão para Malange, em Angola. Em 2008, em Kibala, passou a ser coordenador da Fraternidade e ecônomo, vice-mestre dos postulantes em 2010. Em 2013 foi eleito Conselheiro da FIMDA, coordenador da Fraternidade Santo Antônio em Kibala e vice-mestre. Em 2016 ficou responsável pelos projetos sociais e animador do serviço de Justiça, Paz e Integridade da Criação (JPIC) da Fundação. Em 2018, foi nomeado guardião da Fraternidade São Damião em Malange e animador da JPIC.
“Hoje, destinamos ao nosso confrade Frei André Gurzynski a gratidão franciscana, pois ele, por quase 14 anos, dedicou sua vida e sua história para que, em nome de todos os seus confrades, fosse presença franciscana em nossa missão. Certamente, o rosto franciscano em Angola traz consigo a expressão de um carisma marcado pelos dons e obras que o Senhor concedeu e permitiu que Frei André lá transmitisse e realizasse”, agradece Frei Robson Luiz Scudela, coordenador da Frente das Missões.
“Obrigado, Frei André, pelo seu testemunho e dedicação realizados em nome dos seus confrades que, enquanto em outros serviços, estiveram sempre unidos a você e a todos os demais confrades que lá estão e que agora, também em seu nome, continuam a missão que o senhor a nós confiou. Que o Espírito do Senhor e o seu santo modo de operar estejam consigo nesta nova missão que você assume na Fraternidade Santo Antônio, em Agudos. Juntos, construamos também lá os sonhos”, desejou Frei Robson, que é também Definidor da Província.
Acompanhe alguns temas do depoimento de Frei André:
A ESPERA POR UM VISTO
Devido a problemas locais enfrentados pelo Serviço de Migrações e Estrangeiros de Angola naqueles dias, o Visto para entrada no país demorou 18 (dezoito) meses para sair. Alguns desistiram. Permaneci ainda seis meses em São Paulo, trabalhando no SEFRAS, sobretudo no Recifran e na Educafro. Em julho de 2007 fui para o Seminário Frei Galvão (Postulantado), em Guaratinguetá, SP. Fiquei lá por mais um ano.
PREPARAÇÃO PARA A MISSÃO
Frei Atílio Battistuz e eu, transferidos para lá na mesma época, juntamente com o Sr. Adávio (leigo da OFS, então voluntário no SEFRAS, que aceitou meu convite para ir nos ajudar em terras angolanas), aproveitamos o tempo para melhor nos capacitarmos para a Missão. Fizemos o curso de um mês oferecido pela CNBB em Brasília para a formação de Missionários Ad Gentes e seguimos à risca o programa indicado pelo Centro de Medicina do Viajante do Hospital Emílio Ribas, de São Paulo, para quem vai viajar para a África.
EXPECTATIVAS X CHOQUE DE REALIDADE
Após o Capítulo Provincial de 2006, Frei Augusto Koenig, de saudosa memória, então Ministro Provincial, me perguntou se, depois de ter estruturado o SEFRAS aqui no Brasil, aceitaria fazer algo semelhante em Angola. Aceitei. Recebi transferência “para organizar as obras sociais da FIMDA (Fundação Imaculada Mãe de Deus de Angola)”. Contudo, para trabalhar na Missão em terras estrangeiras, em outra realidade e cultura, é necessário capacidade de renúncia e espírito de adaptação para fazer não o que pretendemos, mas o que é necessário naquele momento.
Ao apresentar a transferência na primeira reunião do Conselho da FIMDA que participei, os frades do Conselho falaram: “Você veio a Angola para fazer o que está escrito na transferência ou para fazer o que necessitamos que você faça”? Respondi: “Vim para fazer o que está dito na transferência. Mas se isso não é possível no momento, estou disposto a fazer o que for necessário”.
Como conclusão me disseram: “Então você pode ficar”! Depois de alguns meses trabalhando nos projetos sociais em Viana, fui enviado para Malanje para assumir, por pouco mais de dois meses, a direção do Pavilhão de Artes e Ofícios de Cangandala, até a chegada de Frei Ivair, designado para esta função.
KIBALA, QUASE OITO ANOS
Devido à transferência de Frei Laerte, de Kibala para o Palanca, em dezembro de 2008, fui transferido para Kibala, na Província do Kwanza Sul, onde fiquei por quase oito anos como encarregado da construção do Postulantado Santo Antônio, hoje elevado à condição de Noviciado.
A fraternidade havia sido reaberta em maio daquele ano por Frei Valdir Nunes Ribeiro, Frei Laerte de Farias dos Santos e pelo Sr. Adávio, leigo voluntário, depois de dez anos abandonada (de 1998 a 2008) devido à guerra. Kibala foi o local da Missão que mais me marcou, me ensinou e onde, a meu ver, mais pude contribuir.
Havia então apenas alguns esqueletos da construção iniciada pelo agora ex-frade Adilson Adão Geremia antes do abandono em 1998. Frei Laerte havia feito progressos na construção da casa provisória dos frades (casa dos contentores), na limpeza do terreno e sobretudo na cobertura da casa definitiva dos frades. Novamente os desafios eram enormes. Kibala, cidade pequena cidade, distante da capital da Província, Sumbe, cidade também pequena e com recursos limitados. Quase tudo deveria ser adquirido em Luanda, há mais de 300 Km de distância. O único veículo disponível era uma carrinha (camioneta) Nissan, que havia sido o primeiro veículo adquirido pelos frades ao chegarem em Angola no ano de 1990. Estava parada há bom tempo e foi “ressuscitada” para que Kibala pudesse ter algum meio de transporte.
DESAFIOS NA CONSTRUÇÃO DA CASA DE KIBALA
Os frades optaram por construir eles próprios, com ajuda de trabalhadores locais. Contratar uma empresa construtora sairia cinco vezes mais caro, segundo orçamentos feitos. Isso já estava estabelecido antes da minha chegada. Eu entendia muito pouco de construção e tive que aprender “na marra” para ensinar aos trabalhadores locais, que tinham prática somente com a construção tradicional com blocos de adobe (barro).
Pensando em selecionar os mais capacitados, procuramos o Curso Profissionalizante local. Pedimos para nos indicarem os profissionais que já trabalhavam de pedreiros antes e que haviam terminado o curso profissionalizante de pedreiro com duração de seis meses. O trabalho conosco seria uma espécie de estágio de aperfeiçoamento da prática profissional. Trabalho remunerado, claro!
As dificuldades não foram poucas: no curso não aprenderam trabalhar com (nem conheciam) ferramentas básicas para uma boa construção, como mangueira de nível e prumo, por exemplo.
Na construção com adobes isso não era utilizado! Respeitar rigorosamente nível, prumo, esquadro, cuidar da limpeza e qualidade da obra, das ferramentas, etc. não fazia parte da prática profissional que tinham. Diversos trabalhadores consideraram isso rigorismo exagerado e não se adaptaram. Formar uma equipe que funcionasse a contento demorou e foi fruto de grande esforço e desgaste.
Como já citei, as compras, tanto para o sustento da fraternidade quanto para a construção, eram feitas geralmente em Luanda, o que demandava viagens frequentes e dias de ausência.
Ao retornar, diversas vezes encontrava coisas mal feitas na construção. Às vezes era possível refazer ou contornar, outras não.
CONSTRUÇÃO COM TIJOLO ECOLÓGICO
Uma das decisões mais acertadas foi construir a Casa dos Postulantes (hoje Casa dos Noviços) e a Capela, que iniciaríamos ‘de raiz” com a técnica dos BTC (Blocos de Terra Compactada), também conhecido como Tijolo Ecológico. Usa apenas terra do local da construção e uma pequena quantidade de cimento e água (fazer adobes, ao contrário, consome muita água!). Duas máquinas (prensas manuais) herdamos da IBIS, ONG dinamarquesa da qual éramos parceiros em diversas ações, que estava encerrando seus trabalhos em Kibala. Também foi da IBIS que recebemos treinamento para utilizar a nova técnica.
A casa definitiva dos frades e o bloco de serviços (refeitório, cozinha e despensa), que já haviam sido parcialmente construídos com blocos de cimento, foram concluídos com alvenaria convencional, como iniciados. Mas as varandas já foram construídas com BTC, dando harmonia e charme próprio ao conjunto da obra.
A CAPELA DE KIBALA
Ao pensar na construção da Capela do então Postulantado, Frei Estêvão Ottenbreit, que cuidava do financiamento das obras, propôs que construíssemos uma réplica da Porciúncula (capelinha de Assis, berço da Ordem Franciscana). Contudo, ponderamos que já havia uma fraternidade com este nome, a Fraternidade da Porciúncula, em Viana. Ali sim, ficaria bem tal réplica. Assim, nos propusemos a pensar em uma outra planta.
Eu nunca havia desenhado uma capela! Mas veio-me uma inspiração e fui desenvolvendo um desenho que culminou na capela que lá construímos. Considero mesmo uma inspiração divina, pelo que dou graças a Deus! Creio que, como eu, a maioria gostou do resultado. Deus seja louvado e bendito! Ficou com alguns traços da Capela de São Damião, em Assis, berço da Ordem das Irmãs Clarissas. Que esta capela inspire muitas e santas vocações genuinamente franciscanas!
EPISÓDIOS PITORESCOS
Certa feita, estando em Kibala em período de férias dos postulantes, com a presença dos trabalhadores da construção e de alguns frades estagiários, estudantes de filosofia, recebemos uma carrinha (pequeno caminhão) de estrume de boi enviada por uma fazenda da região. Havia então bastante capim nos arredores, que chegava à altura da cintura. Entrei no meio do capim para verificar se não havia pedras e paus que pudessem impedir a entrada da carrinha. Estava com calça comprida, de trabalho, e calçado com uma botina de couro.
rA carrinha estava ainda distante e os funcionários, junto com o então Frei Crisóstomo Pinto Ngala, hoje ex-frade, estavam vindo, também ainda há certa distância, para ajudar a descarregar.
O motorista era a primeira vez que vinha na nossa casa. Eu não o conhecia. De repente senti algo frio subindo na minha perna, por debaixo da calça. Só podia ser uma cobra! A sorte foi que fiquei bem calmo e parado. Afrouxei a cinta e fui baixando lentamente a calça. As pessoas pensaram que fiquei maluco! Baixando as calças na frente de pessoas estranhas! Pensaram que eram kissondes (formigas carnívoras) que são frequentes por lá. Até que a cobra tirou cabeça e olhou em volta. Assustada, enfiou a cabeça de volta, mas na outra perna da calça.
Ninguém teve coragem de se aproximar, apenas o motorista da carrinha. Há grande medo de cobra. Devido à falta de recursos de saúde, sobretudo de soro antiofídico, a grande maioria das pessoas picadas por cobras venenosas vão a óbito!
Quando o motorista se aproximou, pedi para ele tirar lentamente minhas botinas. Depois pedi para ele segurar a bainha da calça de um lado. Puxei muito lentamente a perna para não assustar a cobra. Fiz o mesmo com a outra perna, onde estava a cabeça da cobra. Pedi a proteção divina e mantive a calma, puxando muito lentamente a perna para fora da calça. O receio era de uma picada nos dedos do pé, mas felizmente saí ileso. Depois juntei a calça com a cobra dentro, levei para o meio do terreiro e os trabalhadores a mataram. Media mais de um metro, talvez um metro e quinze centímetros. Frei Crisóstomo fotografou, para comprovar a história.
Falaram que era um tipo de cobra que não pica facilmente, mas que quando pica, geralmente é fatal. Considero uma graça divina o fato de não ter sido picado nesta e em outras ocasiões. Senti pena da cobra: ela me poupou, mas nós não a poupamos! Para o louvor de Deus. Amém!