Provocações de Mauro Lopes aos comunicadores
10/11/2015
Moacir Beggo e Érika Augusto (fotos)
Mais do que deixar pistas, o jornalista Mauro Lopes, convidado por Frei Gustavo Medella para assessorar o 3º Encontro da Frente de Evangelização da Comunicação, deixou muitas provocações aos 40 profissionais de comunicação que participam deste primeiro dia (10/11) do encontro na Fraternidade São Boaventura, em Rondinha (PR).
Para refletir sobre o tema “Comunicação a serviço de uma Igreja em saída”, Frei Medella, que é o coordenador da Frente de Comunicação da Província da Imaculada Conceição, convidou Lopes para falar do Pontificado do Papa Francisco e, dentro desse contexto da Igreja atual, indicar pistas para que ajudem a comunicação provincial ser mais eficiente e ter uma ação de mais qualidade na direção do que propõe o nosso querido Papa Francisco.
Lopes, que é também ministro da Palavra numa comunidade em Paraisópolis, partiu de três momentos fortes do Pontificado do Papa Francisco para fundamentar sua palestra: a Encílica “Laudato Sí”, o pronunciamento que fez em Santa Cruz De La Sierra – a “Galileia dos tempos atuais” – no segundo encontro dos movimentos populares organizado pelo Vaticano (o primeiro foi em Roma), e a fala, que é fundamental para entender o Papado de Francisco, à Cúria Romana no Natal de 2014. Neste discurso está a sua visão em relação à Igreja, e, portanto, a visão crítica que ele projeta à Igreja.
Partindo deste momento vivido pela Igreja hoje, Lopes perguntou: “Em que medida o trabalho de comunicação que cada um faz dialoga com este projeto – projeto, sim, porque está sempre em processo – de Igreja do Papa Francisco, que não é um projeto dele, mas é a retomada do processo evangélico da Igreja de Jesus Cristo?”.
Segundo o jornalista, o cristianismo é reinocêntrico. “O centro da nossa vida é, portanto, a caminhada para o Reino. Assim como Jesus, os cristãos olham – ou deveriam olhar – para tudo a partir de uma lógica reinocêntrica. O que contribui para a chegada do Reino (tempo e lugar de paz e amor, isento de sofrimento, de fome e de misérias) é parte deste percurso. Tudo o que afasta o Reino é traição a este caminho. Pedro Casaldáglia, um dos maiores líderes da Igreja, perseguido implacavelmente durante anos pela hierarquia romana e pela ditadura, e hoje doente de Parkinson em São Félix do Araguaia, é um dos que tornou esta visão essencial do cristianismo em prosa e poesia”.
A questão-chave para pensar a comunicação
“Houve uma leitura, ao longo da história da Igreja, da experiência monástica como ‘fuga do mundo’. Mas a caminhada reinocêntrica não é uma caminhada que foge do mundo, mas acontece no mundo e é orientada para que o mundo seja uma antecipação do reino. Esta é a essência da revolução franciscana. Francisco traz essa dimensão de que o reino acontece agora. O reino não é algo para depois da morte. Ele acontece agora, neste mundo: no nosso fazer, no nosso cotidiano, no processo relacional, que em função deste projeto se estabelece”, continuou.
“O Papa vai dizer logo na abertura da Encílica que ‘nada neste mundo nos é indiferente’. O reinocentrismo faz com que Francisco não aborde a religião como algo reservado às sacristias, seminários e altares, mas como uma relação do ser humano com ele mesmo, com o próximo, com o planeta, com o universo e finalmente com Deus. O reino é a experiência relacional que nos une e conforta neste processo relacional e essa é uma questão-chave para pensar a comunicação”, disse Lopes.
Segundo ele, há duas maneiras de conceber o ser humano basicamente. “Uma maneira vai estar presente na filosofia grega, a partir de Platão e Aristóteles, com este núcleo existencial que me conforma para o bem ou para o mal. Não é essa a formulação que a Bíblia vai nos oferecer e que o cristianismo vai estabelecer: o homem não é definido pela sua essência. O homem é definido pelo seu processo relacional. O que define quem nós somos é a biografia relacional que nos vamos estabelecer. É esse caminho relacional, isso é o reino”, frisou.
Para Mauro, se fosse essência, o homem poderia viver isolado numa ilha. “Não existe homem isolado numa ilha. Mesmo lá os nossos irmãos cartuchos, que são eremitas e vivem cada um na sua casinha isolado, reúnem-se nas horas litúrgicas para um momento da oração, para estabelecer todo esse processo relacional”.
“Os pais e mães têm essa percepção, mesmo que não tenham esse conhecimento. Quando os pais têm enorme preocupação com a companhia dos filhos, é porque sabem que essas companhias é que vão moldar os seus filhos. São as nossas companhias que moldam quem nós somos. Esta teia relacional vai formando o que nós somos. Por isso, o processo de oração é fundamental, por uma série de coisas, mas porque o processo faz com que esse processo relacional esteja fundamentado por esta relação com Deus”, acrescentou.
A jornada como comunicadores
Segundo o palestrante, a caminhada para o Reino acontece neste mundo. “Não é apenas ajoelhar no banco da igreja, mesmo que seja fundamental, mas é amassar barro cotidianamente no processo relacional que fazemos a caminhada para o reino, individualmente, como comunidade, e como Igreja”, detalhou.
Lopes contou que não teve o privilégio de conhecer o frade capuchinho Frei Prudente Nery, mas que quando leu um texto seu, se encantou por ele. “Não o conheci. Não tive esse privilégio, mas me encantei por ele quando li um texto, ‘A vida consagrada à luz do mistério trinitário’, publicado na revista ‘Convergência'”, revelou. Ele diz assim:
“É inegável: há, no mundo de nossas experiências, muitas palavras, pesadas como chumbo, que nos abatem e magoam; outras, afiadas como navalha, que nos rasgam a alma e outras tantas que apenas nos incomodam pelo seu vazio de sentido, apesar de toda turbulência verbal. Há coisas que nada nos dizem. Há paisagens áridas, encontros fúteis e relações que ligam nada a coisa alguma…”
Para Mauro, isso é parte do que o mundo nos oferece. “Quem conhece o mundo a partir da tela de televisão sabe que é um mundo pautado por isso. Em São Paulo, é incrível como as pessoas chegam a não sair de casa porque veem esses programas policiais e acham que se saírem vão ser mortas. Eu ando em Paraisópolis há anos e nunca aconteceu nada. Claro que pode acontecer, como em qualquer cidade ou qualquer lugar. Essa é uma oferta que o mundo nos faz. Mas Frei Prudente também diz:
“Mas há também, neste mundo, alguns instantes, raros certamente, em que, descerrando quase o véu de seu inviolável mistério, nos visita o absoluto sentido de todas as coisas. O instante e o lugar onde isto se der ser-nos-ão para sempre preciosos, como um pedaço do céu, um reino de felicidades, por ter sido o lugar do encontro do que, apaixonadamente, tanto buscávamos”.
Mauro explica que é como colocar gasolina no motor do carro. “É esse momento de a gasolina ser colocada que nos faz rodar para esperar o próximo encontro”. Ele exemplificou com os momentos de aridez que viveu Madre Teresa de Calcutá, só revelados nas cartas ao seu diretor espiritual. “A gente via aquela mulher pequenininha rezando bastante e não tínhamos ideia do sofrimento dela. Ela passou décadas alimentada por esse encontro que teve lá na juventude e depois foi ter apenas lá no final da vida”, disse.
Continua Frei Prudente: “E aí saberemos: o mundo não é apenas o irremediável aí de nosso ser, ele é também o lugar dos primeiros acenos e encontros de um eterno amor. Este mundo nunca deixará de ser finito, banal, profano e, em si mesmo, desimportante… tenda precária, imprópria e indigna para aquele que imaginamos nas alturas inalcançáveis ou nas profundezas impenetráveis, mas o único lugar em que agora é possível a Deus, ainda que humildemente retraído estar junto dos homens e aos homens estarem perto de Deus”.
“A nossa jornada como homens, mulheres, como comunicadores, comunidade, Ordem, Igreja, é a jornada de buscar esses momentos de encontro. De propiciar e vivermos esses momentos, sobretudo vivermos esses momentos de encontro. Se nós somos definidos pela relação que estabelecemos, então nós somos definidos pelo que nós somos e pelo ambiente que está criado por nós”, emendou Mauro.
O jornalista lembrou que no final dos anos 80, começo dos anos 90, falava-se muito em aura. “Ela tem uma razão de ser. Cada um de nós, em função desse processo relacional, cria um ambiente. Então, você encontra uma pessoa e diz: ‘Nossa que pessoa do bem; ou nossa que pessoa amarga’. Esse ambiente vai permeando as relações, e naturalmente vaza para o nosso trabalho”, disse.
E mais uma vez ele provocou: “Se a nossa atividade, como comunicadores, consegue criar esse ambiente, ela é uma atividade que nos coloca no caminho do reino”.
O núcleo da Igreja
E é por isso que Francisco vai fazer um movimento radical no seu Papado e coloca a Igreja numa trajetória no núcleo de onde nunca deveria ter saído.
Por isso, o olhar de Francisco para o mundo se traduz numa leitura radicalmente anticapitalista, de crítica ao império do dinheiro, da exploração e dominação dos homens e do planeta, tal como Jesus o formulou originalmente. Causou escândalo entre os conservadores a afirmação de Francisco no encontro dos movimentos populares na Bolívia, quando ele qualificou o dinheiro como o “esterco do diabo”. Mas, como a operação midiática global é sempre reduzir e simplificar para caber numa foto legenda, não se leu a afirmação toda do Papa, que é muito mais violenta que a expressão: “E por trás de tanto sofrimento, tanta morte e destruição, sente-se o cheiro daquilo que Basílio de Cesareia chamava ‘o esterco do diabo’: reina a ambição desenfreada de dinheiro. O serviço ao bem comum fica em segundo plano. Quando o capital se torna um ídolo e dirige as opções dos seres humanos, quando a avidez do dinheiro domina todo o sistema socioeconômico, arruína a sociedade, condena o homem, transforma-o em escravo, destrói a fraternidade inter-humana, faz lutar povo contra povo e até, como vemos, põe em risco esta nossa casa comum.”
O Papa aqui (como em toda a sua pregação) nada mais fez que atualizar o ensinamento de Jesus Cristo: “Ninguém pode servir a dois senhores. Com efeito, se odiará um e amará o outro, ou se apegará ao primeiro e desprezará o segundo. Não se pode servir a Deus e ao Dinheiro” (Mt 6,24). É patente, em diversas passagens dos Evangelhos, a clarividência de Jesus quanto ao fato de que ou o dinheiro media as relações humanas, e neste caso prevalece o interesse egocentrado de cada um, ou Deus, o Amor, é este mediador, o que abre a possibilidade de relações de solidariedade e partilha. Francisco vocaliza esta percepção original do cristianismo.
Este caminho não se faz na avenida principal. Cristo não escolheu Roma, nem Jerusalém. Sua jornada foi nas aldeias perdidas da Galileia, uma região pobre e esquecida. É esta compreensão que fez o Papa escolher como um dos centros de sua mensagem o tema das “periferias existenciais”. Jesus não procurou o centro – manteve-se nas margens. Sabia que se ocupasse o centro seria tragado e moído pela lógica do sistema. Mas, paradoxalmente, mantendo-se à margem, ocupou e ocupa o centro da história da humanidade. É o que faz Francisco. Sua escolha é estar entre os mais pobres, os deserdados. Não é à toa que ele escolheu a Bolívia, uma Galileia na dimensão do planeta, para algumas das afirmações cruciais de seu papado. O discurso de Francisco no encontro dos movimentos populares tem cheiro de Sermão da Montanha, especialmente o trecho das bem-aventuranças (Mt 5, 1-12).
“Qual é o lugar que vocês escolhem para os veículos de comunicação de vocês, para a comunicação de vocês, para a mensagem que vão levar e, sobretudo, para as relações que vocês estabelecem?”, perguntou Mauro.
Mauro propôs uma leitura da “Laudato Sí” e, a partir dessa leitura, pensar um processo comunicacional dos franciscanos a partir de 4 chaves de leitura:
1ª A centralidade dos pobres
2ª A crítica radical que o Papa faz ao antropocentrismo.
3ª O deslocamento da Igreja do centro para a periferia (da cátedra para a roda=diálogo) (a gente nunca vê Jesus pontificando. Ele está sempre conversando em roda. Os evangelhos são diáologos o tempo todo)
4ª Qual é o contexto da elaboração da Laudato Sí?
AS QUATRO CHAVES DE LEITURA – ÍNTEGRA
A centralidade dos pobres
O título, a abertura e a “inspiração poética” da encíclica são tomadas emprestadas por Francisco daquele que se tornou o primeiro Francisco, o de Assis. O título, Laudato Si, Louvado Sejas, é o bordão de uma das mais conhecidas obras do “pobrezinho de Assis”, o Cântico das Criaturas.
Logo no tópico 1, o Papa, num gesto sem precedentes, como que convoca à congregação das visões da Terra como irmã e mãe, reunindo espiritualidades de quadrantes distintos, convergidas séculos atrás pelo outro Francisco: “Laudato sí, mi’ Signore – Louvado sejas, meu Senhor, cantava São Francisco de Assis. Neste gracioso cântico, recordava-nos que a nossa casa comum se pode comparar ora a uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços: ‘Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras’” (1). Como não escutar aqui eco dos Andes peruanos e bolivianos, dos sertões da Argentina e do Chile onde se reverencia a Mãe (Mama) Terra (Pacha), a Pachamama quechua, sustentadora da vida, da fertilidade, da alegria?
A seguir, no segundo tópico, Francisco enterra a abordagem do planeta como objeto de uso e o elege como casa comum, de todos, e coloca os pobres no centro da questão ecológica ao afirmar a própria Terra como uma pobre por excelência: “Entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada” (2).
Ao longo de seu texto, Francisco menciona os pobres quase quarenta vezes, tornando-os o centro de sua reflexão sobre o planeta, recuperando a elaboração original da Igreja, abandonada ao longo de séculos. Não é uma novidade em se tratando do Papa, que vem afirmando esta centralidade desde o início, em fevereiro de 2013. A Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (A alegria do Evangelho), seu primeiro texto mais abrangente e profundo, de novembro daquele ano, mergulhava neste mar de sentido que se elabora a partir de Jesus, da vida e da poética de São Francisco e do melhor da tradição da Igreja e que se consagrou, no Concílio Vaticano II, numa expressão que, com os ventos conservadores que gelam corações e mentes, tornou-se um escândalo: opção preferencial pelos pobres. Escolha pelo cuidado com aquele ou aquela que é frágil, que está posto à margem, que sofre com a dominação e a opressão do sistema.
Na Encíclica, Francisco apoia-se em sua exortação de quase três anos atrás: “Nas condições atuais da sociedade mundial, onde há tantas desigualdades e são cada vez mais numerosas as pessoas descartadas, privadas dos direitos humanos fundamentais, o princípio do bem comum torna-se imediatamente, como consequência lógica e inevitável, um apelo à solidariedade e uma opção preferencial pelos mais pobres. Esta opção implica tirar as consequências do destino comum dos bens da terra, mas – como procurei mostrar na exortação apostólica Evangelii Gaudium – exige acima de tudo contemplar a imensa dignidade do pobre à luz das mais profundas convicções de fé. Basta observar a realidade para compreender que, hoje, esta opção é uma exigência ética fundamental para a efetiva realização do bem comum.” (158)
A absoluta centralidade dos pobres foi reafirmada de maneira ainda mais radical no discurso de Francisco no encerramento do II Encontro Mundial dos Movimentos Populares, em La Paz, quando o Papa afirma-os como os únicos protagonistas possíveis da mudança: “Atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, nas vossas mãos, na vossa capacidade de vos organizar e promover alternativas criativas na busca diária dos “3 T” (trabalho, teto, terra), e também na vossa participação como protagonistas nos grandes processos de mudança nacionais, regionais e mundiais. Não se acanhem!”
A crítica do antropocentrismo moderno
O Papa faz na Encíclica uma crítica ácida do antropocentrismo moderno que acabou por deslocar o ser humano do centro, pois o colocou acima de tudo – até dele mesmo, afirmando “a razão técnica acima da realidade” (115), ou seja: o duplo dinheiro + tecnologia assumiu o coração do mundo desenhado pelos sistemas dominantes. Na verdade, houve uma operação no interior do capitalismo na qual o antropocentrismo moderno lançou o homem às margens e, ao colocar a tecnologia e o dinheiro no centro, recentralizou o homem, mas não todos, apenas os que dominam a tecnologia, o poder o dinheiro (o homus economicus). Esta consciência aguda fez com que o Papa, na Bolívia, qualificasse o capitalismo de “ditadura sutil”.
Na encíclica, Francisco põe o dedo na ferida e não isenta a Igreja de sua responsabilidade: “Nos tempos modernos, verificou-se um notável excesso antropocêntrico, que hoje, com outra roupagem, continua a minar toda a referência a algo de comum e qualquer tentativa de reforçar os laços sociais. (…) Uma apresentação inadequada da antropologia cristã acabou por promover uma concepção errada da relação do ser humano com o mundo. Muitas vezes foi transmitido um sonho prometeico de domínio sobre o mundo, que provocou a impressão de que o cuidado da natureza fosse atividade de fracos. Mas a interpretação correta do conceito de ser humano como senhor do universo é entendê-lo no sentido de administrador responsável” (116). Ou seja, o homem é mais o cuidador do jardim que o seu dono. Este é um dos cernes da encíclica ao apontar o “cuidado com a casa comum” como principal atividade da humanidade na relação com o planeta.
Este novo olhar para o homem e sua relação com o planeta (a criação, para nós cristãos), fez com que o Papa apresentasse, na encíclica a visão de uma Ecologia Integral. Todo o capítulo 4 da Laudato Sí é dedicado a esta articulação: “Dado que tudo está intimamente relacionado e que os problemas atuais requerem um olhar que tenha em conta todos os aspectos da crise mundial, proponho que nos detenhamos agora a refletir sobre os diferentes elementos duma ecologia integral, que inclua claramente as dimensões humanas e sociais.” (137)
A ideia de uma ecologia integral abrangente e generosa é, na visão de Leonardo Boff, uma das principais fontes de Francisco: “Não há verdadeira ecologia, de expressão nenhuma, seja ambiental, social, mental e seja integral, caso não resgate a humanidade humilhada dos milhões de empobrecidos de nossa história, naqueles nos quais a Terra como mãe é mais agredida e ofendida. O Papa Francisco comparece como zeloso cuidador da Casa Comum. Mostra-se extremamente coerente com a marca registrada da Igreja da libertação latino-americana com sua correspondente teologia que é a opção preferencial pelos pobres, contra a pobreza e a favor da justiça social e de sua libertação. O oposto da pobreza não é a riqueza. É a justiça social de proporções estruturais e mundiais. A forma mais adequada para enfrentar esta pobreza é a ecologia integral que articula ‘tanto o grito da Terra quanto o grito do pobre’(n.49)”, escreveu o teólogo em seu blog dia 05 de julho.
A ideia de uma ecologia integral reabre o tempo para um novo antropocentrismo no qual o homem está no centro a partir de uma teia de relações consigo próprio, com Deus, com o próximo, o planeta e o universo, numa dinâmica de luz e mistério. Isto implica uma mudança radical de perspectiva, o que na Igreja qualifica-se de conversão: “Recordemos o modelo de São Francisco de Assis, para propor uma sã relação com a criação como dimensão da conversão integral da pessoa. Isto exige também reconhecer os próprios erros, pecados, vícios ou negligências, e arrepender-se de coração, mudar a partir de dentro” (218). Esta ideia de uma conversão que reconcilia o homem consigo próprio e com o universo está presente na formulação original de Jesus e foi captada de maneira bela por São Paulo, na sua Cara aos Colossenses (Cl 5, 19-20): “Porque Deus, a Plenitude total, quis n’Ele habitar, para, por meio d’Ele, reconciliar consigo todas as coisas, tanto as terrestres como as celestes, estabelecendo a paz pelo seu sangue derramado na cruz” – o catolicismo romanos, que durante séculos pretendeu ser o centro do universo, em Francisco retoma a trajetória original para ser expressão de diálogo.
O deslocamento da Igreja para a periferia
A visão imperial da Igreja cultivada por séculos fez com que a instituição roubasse para si a centralidade do cristianismo e passasse a se entender como hierarquia. Ou seja, ao longo de séculos, cristalizou-se a visão de que a Igreja seria sua hierarquia, Papa, cardeais, bispos, padres. Apenas no Concílio Vaticano II, no início dos anos 1960, sob a liderança de outro Papa alegre e amoroso, João XXIII, é que a ideia foi combatida e assumiu-se o conceito de Igreja com Povo de Deus. Entretanto, nem sequer estava encerrado o Concílio, e a cúpula da Cúria Romana já combatia a nova visão, asfixiando-a no jogos de poder palacianos. O embate entre as duas visões de Igreja, analisado por Leonardo Boff em seu “Igreja, Carisma e Poder”, levaram-no, nos anos 1980, a ser censurado, condenado ao silêncio, suspenso nas atividades acadêmicas e editorias até que, em 1991, na iminência de novas sanções, ele desligou-se do sacerdócio, sem nunca ter saído da Igreja ou perdido a alma franciscana.
Francisco assumiu a visão do Concílio e, na encíclica, uma das expressões mais relevantes desta escolha está… nas notas de rodapé! Pode parecer irrelevante, mas as notas de rodapé, a bibliografia de um texto são sempre reveladoras das fontes e do percurso e, portanto, ajudam a saber o caminho do autor e iluminam a pergunta inicial deste artigo: até onde? Há dois artigos que chamam a atenção para este tema, do vaticanista John Allen Jr, publicado originalmente no jornal católico Crux e do teólogo americano Kevin Ahem, publicado no site America.
Os dois antecessores de Francisco, Bento XVI e João Paulo II, em suas encíclicas sociais referiram-se basicamente aos seus próprios ensinamentos ou de outros Papas, com algumas citações de santos/teólogos relevantes ou no dicastérios romanos (algo como os ministérios da Cúria Romana); não há registro de fontes não católicas. Na encíclica de Francisco, tudo mudou: 21 das 172 notas de rodapé são inéditas citações de documentos das conferências (e conselhos) episcopais de todo o mundo, o que materializa o pensamento de Francisco como bispo de Roma ao lado dos demais bispos do mundo e não como imperador do centro da cristandade, na visão conservadora. Algumas outras citações que são singulares, impensáveis até agora: o mestre sufi Ali Al-Khawwas (citação totalmente sem precedentes); o padre francês, cientista e místico Teilhard de Chardin, outro censurado e perseguido por anos a fio pela hierarquia católica e até hoje olhado com desconfiança pela Cúria: o filósofo protestante Paul Ricoeur; o teólogo da libertação Juan Carlos Scannone, professor do papa Francisco; o filósofo brasileiro Marcelo Perini; e a Carta da Terra, um documento de convergência, que envolveu mais de 100 mil pessoas de 46 pessoas e foi aprovado pela ONU em março de 2000.
A este deslocamento intelectual corresponde outro, o de arrancar a Igreja Católica de um caminho imperial, de soberba e arrogância, e recolocá-la numa trilha de humildade e comunhão com a humanidade, de volta às origens.
Uma expressão radical deste retorno foi um dos momentos de maior impacto no encontro da Bolívia, quando o Papa pediu desculpas pelos crimes cometidos pela Igreja contra os povos da América: “Aqui quero deter-me num tema importante. É que alguém poderá, com direito, dizer: ‘Quando o Papa fala de colonialismo, esquece-se de certas ações da Igreja’. Com pesar, digo: cometeram-se muitos e graves pecados contra os povos nativos da América, em nome de Deus. Reconheceram-no os meus antecessores, afirmou-o o CELAM e quero reafirmá-lo eu também. Como São João Paulo II, peço que a Igreja ‘se ajoelhe diante de Deus e implore o perdão para os pecados passados e presentes dos seus filhos’. E eu quero dizer-vos, quero ser muito claro, como foi São João Paulo II: Peço humildemente perdão, não só para as ofensas da própria Igreja, mas também para os crimes contra os povos nativos durante a chamada conquista da América”.
De fato, João Paulo II havia pedido perdão, e não apenas pelos crimes na América, mas igualmente o havia feito pelo crime de apoio à escravidão dos povos na África, mas no contexto de um papado ainda mergulhado numa visão “eclesiocêntrica” (a Igreja no centro) e não reinocêntrica (a mensagem de Jesus do Reino de Deus no centro).
Outro pedido de desculpas do Papa Francisco aconteceu semanas atrás, em Turim, na Itália, e foi de uma contundência ímpar: “Por parte da Igreja Católica, eu lhes peço perdão pelas atitudes e os comportamentos não cristãos, até mesmo não humanos que, na história, tivemos contra vocês. Em nome do Senhor Jesus Cristo, perdoem-nos!”. Os não católicos talvez não tenham dimensão do que significa um papa apontar atos criminosos da Igreja e qualificá-los como não cristãos e mesmo não humanos. Significa enterrar o mito de que a Igreja é isenta de pecado, de falhas, que faz com que até hoje entre católicos qualquer crítica seja vista como dissenção, agressão. Até o papado de Francisco esta visão da infalibilidade e da “castidade” da Igreja era dogma oficial, ou oficialiesco, pois o assunto sempre foi empurrado para baixo dos tapetes dos palácios eclesiais.
Agora acabou. No caso, aqui, trata-se da odiosa perseguição aos valdenses, um movimento religioso liderado por Pedro Valdo, um comerciante de Lyon, em 1174. Seu crime? Mandou traduzir a Bíblia para a linguagem corrente e distribuiu-a às pessoas na cidade, num tempo em que era proibido circular o texto sagrado em qualquer língua que não fosse o latim e no qual a Bíblia era praticamente propriedade da hierarquia eclesial. No Concílio Vaticano II, em pleno século 20, a proibição do uso da língua vernácula e do uso da Bíblia pelos fiéis cairia de vez, depois de ir desmoronando por anos a fio. A ousadia de Valdo, que vendeu todos os seus bens e os distribuiu aos pobres, rendeu-lhe anos de perseguições, que se tornaram séculos, a seus seguidores.
Mas nada se compara ao emocionado pedido de desculpas a jovens vítimas de abuso sexual por parte do clero, numa missa privada na capela da Casa Santa Marta, em 7 de julho de 2014. Na ocasião, Francisco qualificou a onda de crimes cometidos por padres, bispos e cardeais, com acobertamento cúmplice de seus pares como “uma terrível obscuridade na vida da Igreja”.
Esta peregrinação rumo à humildade já podia ser intuída quando Bergoglio foi apresentado como Papa Francisco, em 19 de março de 2013. Ele apareceu ao povo num balcão do Vaticano de roupa branca, simples, com uma cruz de latão, e não de ouro. E, num gesto cujo simbolismo só hoje pode ser dimensionado, inclinou-se, reverente, para a multidão que o aclamava e imediatamente emudeceu. Rever o vídeo permite entender melhor o significado daquele dia, quando todos ainda estavam perplexos e desconfiados.
Mais uma vez, os não católicos talvez tenham dificuldade para avaliar a importância simbólica dos gestos do Papa, mas ele aparecer numa missa em Kosovo (em 6 e junho último) com a férula (bastão papal) remendado com fita crepe é algo inimaginável e que deixa os conservadores babando de ódio. Francisco, humildemente, sinaliza que sua autoridade nasce na mesma fonte de onde nascia a do outro Francisco e a de Jesus. A foto é impactante (ao lado):
Ir às “periferias existenciais” é, para a Igreja, ajoelhar-se diante da humanidade. Em 16 de maio, Francisco tuitou: “É melhor uma Igreja ferida, mas pela estrada, que uma Igreja doente porque fechada em si mesma.”
É no contexto desta Igreja ferida que se explica o evento Francisco
A encíclica e sua elaboração no contexto do papado de Francisco e dos movimentos no interior da Igreja – como o Papa está colocando a Igreja em rota de colisão com o capitalismo
Por fim, Laudato Sí e a trajetória do Papa devem ser vistas à luz do dos movimentos no interior da Igreja e do caminho de conversão do próprio Francisco.
A trajetória de Jorge Maria Bergoglio guarda espantosa semelhança com a do arcebispo de San Salvador, dom Oscar Romero. A beatificação de Romero, desde 23 de maio último, agora santo padroeiro dos pobres da América Latina, ficou obstruída por quase 20 anos pela Cúria Romana, até que o próprio Francisco desse ordem direta para a retomada do processo. Os católicos conservadores sempre viram em Romero um símbolo da Teologia da Libertação, a quem moveram perseguição sem tréguas desde os anos 70. O próprio arcebispo, sucessivamente ameaçado de morte pelos esquadrões paramilitares em El Salvador, foi praticamente abandonado por João Paulo II. Em 24 de março de 1980 foi assassinado por um atirador de elite do exército enquanto celebrava missa na capela de um hospital.
Romero, como Francisco, começou sua trajetória como um padre conservador. Namorava a elite salvadorenha e tinha uma relação autoritária com os leigos e, depois, com seus colegas padres, na medida em que foi ascendendo inicialmente na hierarquia.
Ler o depoimento reflexivo do Papa Francisco à revista jesuíta “La Civiltà Cattolica”, posteriormente publicada por uma rede de publicações da ordem e por “L’Osservatore Romano”, em setembro de 2013, é revelador deste percurso: “O meu governo como jesuíta no início tinha muitos defeitos. Estávamos num tempo difícil para a Companhia: tinha desaparecido uma inteira geração de jesuítas. Por isto, vi-me nomeado Provincial ainda muito jovem. Tinha 36 anos: uma loucura. Era preciso enfrentar situações difíceis e eu tomava as decisões de modo brusco e individualista. Sim, devo acrescentar, no entanto, uma coisa: quando entrego uma coisa a uma pessoa, confio totalmente nessa pessoa. Terá que cometer um erro verdadeiramente grande para que eu a repreenda. Mas, apesar disto, as pessoas acabam por se cansar do autoritarismo. O meu modo autoritário e rápido de tomar decisões levou-me a ter sérios problemas e a ser acusado de ser ultraconservador. Vivi um tempo de grande crise interior quando estava em Córdoba. Claro, não, não sou certamente como a Beata Imelda, mas nunca fui de direita. Foi o meu modo autoritário de tomar decisões que criou problemas”.
Por isso, a eleição de Bergoglio surpreendeu tanto e gerou expectativas desencontradas e uma onda inicial de desconfiança ao lado de esperanças que pareciam sem fundamento qualquer há dois anos e meio. Conheci no fim de 2014 um grupo de freiras que conviveram com Bergoglio no período que ele menciona na entrevista, quando era superior dos jesuítas (inicio/meados dos anos 1970). Elas queixaram-se amargamente da relação com ele, de seu autoritarismo e conservadorismo. Guardaram mágoas profundas. Relataram ter ouvido falar que ele havia suavizado ao longo dos anos, mas o que viveram na relação com ele fora tão dramático que nunca deram crédito às histórias. Quando viram na TV o anúncio de seu nome como Papa ficaram estupefatas e descrentes, certas de que seria um desastre para a Igreja. Somente ao fim do primeiro ano do papado de Bergoglio começaram a acreditar em sua conversão e conseguiram então escrever ao Papa uma carta de perdão.
Romero foi nomeado arcebispo pela confiança que inspirava na elite de seu país. Francisco foi eleito Papa talvez pela convicção da maioria dos cardeais de que seria necessário uma “mudança controlada” para salvar a Igreja da crise em que estava –e ainda está- metida.
Mas nenhum dos dois cumpriu o script previamente desenhado.
Um dos assentamentos básicos do cristianismo é que o caminho mais curto para subir é descer. Jesus falou explicitamente sobre isso a seus amigos: se você quer ser o primeiro, seja o último, seja servidor de todos (Mc 9,35). Quem não entender que a humildade, o serviço humilde aos demais é basilar no cristianismo não entendeu nada. Com Romero aconteceu algo que agora se repete ao vivo com Francisco: ambos realizaram paradoxalmente o caminho da descida quanto mais alto chegaram na hierarquia. É raro, mas acontece: desceram quando chegaram ao topo.
Portanto, a pergunta inicial deste artigo -“Até onde vai o Papa?”- seria impossível de responder em março de 2013, quando de sua eleição e, mesmo hoje, ainda é cercada de boas interrogações. Até onde este processo de descida levará o homem-papa na sua relação com si próprio, a Igreja, a humanidade, com o Mistério?
Há, entretanto, uma linearidade, um sentido para esta trajetória: cada vez mais para baixo, cada vez mais identificada com os pobres. A partir deste locus, Francisco tem dinamizado seu papado.
Bergoglio escolheu nome de Francisco para simbolizar esta escolha. Entretanto, ele é um jesuíta de corpo e alma, e isso não pode ser esquecido. Os jesuítas são estrategistas, entendem as lógicas e os jogos do poder. O Papa operar neste “duplo comando” franciscano e jesuíta.
Logo que assumiu, sinalizou ao mundo o que viria, com gestos prosaicos, mas que repercutiram largamente. Pagou a conta do hotel em que esteve hospedado durante o conclave de sua eleição; abriu mão das limusines para andar num carro “normal”, um Ford Focus; abriu mão de morar na Casa Santa Marta, simples e despojada, em vez do apartamento papal.
Com outros gestos mais concretos deixou claro à Cúria e à burocracia vaticana logo nos primeiros dias como seria seu papado. O relato é de Elisabetta Piqué, jornalista argentina, a mais próxima de Francisco, de seu livro Papa Francisco, Vida e Revolução (Leya, São Paulo, 2014): “O Papa ‘da favela’ decide abolir, de uma penada, o bônus extra que costumam receber, em uma transição papal, os 3 mil funcionários do Vaticano, o menor Estado do mundo, com apenas 44 hectares. Após o interregno, era normal receber um pagamento por horas extras trabalhadas fora da jornada e por terem realizado um esforço maior. Em 2005, por exemplo, com a morte de João Paulo II, os empregados do Vaticano tinham recebido mil euros cada um e, junto com isso, um cheque de quinhentos euros pela eleição de Bento XVI. Francisco decide dedicar essa quantia, uns 6 milhões de euros, às obras de caridade destinadas aos mais necessitados” (pp. 213-214).
Por sinal, quem quiser acompanhar de perto o papado de Francisco deve ler Piqué no “La Nacion” ou segui-la nas redes.
Da mesma maneira logo nos primeiros meses, interviu no IOR, o Banco do Vaticano com uma história marcada por malversações e desvios. O Papa está empobrecendo a Igreja, sem que a mídia do século passado se dê conta disso ou tenha ânimo para registrar.
Como fazer tudo isso se o Papa é evidente minoria no contexto da Cúria Romana e desagrada cada dia mais a elite tradicionalista da Igreja? Francisco tem operado mudanças profundas silenciosamente, ao mesmo tempo em que protagoniza uma liderança de repercussão sem precedentes. O foco da articulação contra Francisco é exatamente a Cúria romana, ninho histórico da construção de um catolicismo acomodado ao poder e ao capitalismo e hostil aos cristãos católicos aderidos ao caminho de Jesus. Nem sequer estava encerrado o Concílio Vaticano II e a hierarquia católica, que desde então controla a Cúria, já tratava de sufocar as deliberações conciliares – no que obteve notável sucesso ao longo dos anos.
Um momento crucial do enfrentamento do Papa ao poder estabelecido na Igreja aconteceu em 22 de dezembro de 2014, no tradicional encontro de Natal entre o Papa e a cúpula da Igreja. Tradicionalmente, tais encontros são regados a discursos congratulatórios e amenos. Mas Francisco produziu um discurso sem precedentes na história da Igreja. O que ele fez em Santa Cruz De La Sierra em relação ao planeta, o fez antes, em 2014 em relação à hierarquia da Igreja. Nem no contexto do Vaticano II houve algo similar e não há registro de um discurso desta envergadura de nenhum outro Papa. Mas é evidente o eco às afirmações de Jesus nos Evangelhos, quando criticava o poder religioso reunido em torno do Templo em Jerusalém. O cenho franzido e carrancudo de muitos dos presentes foi notável. O discurso é um hino ao amor de Jesus pelo mundo e pelas pessoas e a afirmação de ser esta a única régua que deve medir a ação da Igreja e dos católicos. Nele, Francisco enumerou o que qualificou como “as 15 enfermidades” da Cúria. Quem atua em qualquer organização humana controlada por hierarquias e burocracias não pode deixar de ler. Uma das doenças da Cúria, segundo o Papa: “É perigoso perder a capacidade de chorar com os que choram e se alegrar com os que se alegram. É a enfermidade dos que perdem os ‘sentimentos de Jesus’, porque o seu coração, com o passar do tempo, endurece-se e torna-se incapaz de amar incondicionalmente o Pai e o próximo”.
Logo que assumiu, o Papa nomeou nove cardeais (o C9), encarregando-os de reformar a Cúria – sabe que sem isso, seu papado morrerá estrangulado. O novo desenho do governo da Igreja será anunciado em 2016, e o Papa participa ao menos de uma sessão das reuniões mensais do comitê.
O coordenador do C9, o cardeal de Tegucigalpa, Óscar Andrés Rodriguez Maradiaga é um dos principais interlocutores de Francisco. Ele foi até meses atrás, o presidente da Cáritas Internacional, organismo de ação da Igreja com os mais pobres ao redor do planeta, deixando o cargo para assumir o novo dicastério (algo como um ministério) de Justiça e Caridade da Igreja.
Maradiaga fez questão de tornar a Assembleia da Cáritas Internacional, em maio passado, num ato de desagravo a um dos fundadores da Teologia da Libertação, o sacerdote dominicano Gustavo Gutierrez. Inimaginável antes de Francisco e seus cardeais que Gutierrez fosse recebido num salão do Vaticano. Para ele, até então, estavam reservados apenas os salões do Santo Ofício. Na entrevista de abertura da Assembleia, o teólogo peruano, um dos que mais escreveu sobre o olhar da Igreja aos pobres e mais formulou a partir da realidade de miséria e exclusão da América Latina, afirmou: “Estamos na época pós-socialista, pós-capitalista, pós-industrial. As pessoas gostam de dizer que estamos na época ‘pós’. Mas não estamos na época pós-pobreza”.
Quem se espantou com o discurso de Francisco na Bolívia com certeza não sabia do que vinha falando o coordenador do C9. Ele tem sido ainda mais explícito que o Papa, posto que relativamente “protegido” dos olhares da mídia capitalista e conservadora que agora começa a declarar guerra a Francisco. Em 10 de abril, no Fórum da Nova Economia, em Madri, Maradiaga foi taxativo: o capitalismo é “um sistema econômico que mata”. Mais ainda: “o capitalismo liberal não cumpre as regras, sequer as suas”. O capitalismo é essencialmente anti-humano, na visão do cardeal: “Os entes econômicos mundiais manejam cifras e se despreocupam com a dignidade de cada ser humano, e se referem a este como um meio para se chegar a um fim; como um recurso renovável, não como pessoa.” Maradiaga antecipou com expressão mais contundente a afirmativa de Francisco aos movimentos populares de que “este sistema é insuportável”. Para o cardeal, o capitalismo é insuportável e não tem reforma possível: “Quando critico o modelo atual, estou convencido que uma simples reforma não é suficiente”. Há um novo projeto em gestação na cúpula da Igreja, de matiz anticapitalista, como Maradiaga apontou: “Este discurso otimista e positivo, teoricamente puro, de uma economia de mercado neoliberal, é como uma terra mítica, onde poderia nascer o ‘Homo Economicus’. Existe outro cenário, com um ambiente humanizado fundado sobre a ética, que promova o desenvolvimento integral dos povos e das pessoas, baseado sobre o humanismo econômico, onde possa crescer um herói vitorioso: o ‘Homo Recíproca’. É um cenário ideal, mas é uma meta alcançável”.
No final de sua palestra, Mauro Lopes foi decisivo: A comunicação franciscana precisa estar simbolizada por todos os sinais do Papa.