Notícias - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Íntegra da homilia de Frei César na Celebração da Profissão Solene

05/12/2020

Notícias

Se no tempo de Francisco o que mexia com brio da juventude era possibilidade de vestir uma armadura, empunhar afiadas lanças, montar os melhores cavalos e sair em combate, hoje em dia os jovens se encantam mais em pilotar um avião caça que ultrapassa a velocidade do som, em surfar sobre uma onda com a altura de um prédio de dez andares ou ainda encarar as mais perigosas trilhas de motocross acelerando pesado e vencendo os mais perigosos desfiladeiros. Seja no tempo de Francisco, seja em nossos dias, todas estas são atividades radicais, esportes radicais.

Recebem este nome porque exigem de quem os pratica uma entrega total, a partir da raiz, onde a pessoa se coloca inteira naquilo que faz. Assim como um cavaleiro medieval distraído pode facilmente cair do cavalo ou receber um golpe de lança do oponente, um piloto de caça desatento pode derrubar a aeronave que conduz numa fração de segundo, da mesma que forma que o surfista negligente será tragado pela onda gigante que sempre sonhou pegar ou ainda o motoqueiro desavisado pode despencar com moto e tudo de uma altura que será fatal. Atividade radical exige radicalidade no empenho e na prática. Decisão radical exige radicalidade na resposta que se dá no dia a dia.

Na história de Francisco, o desejo da radicalidade cavaleiresca que o levaria ao suprassumo da nobreza, foi aos poucos se transformando num desejo de radicalidade evangélica. Um processo de conversão intenso e composto de várias etapas, Francisco foi se dando conta de que, muito mais radical do que servir ao servo, por mais poderoso e sedutor que este servo pudesse ser, era servir ao Senhor, doando-se por inteiro, corpo, alma e coração, radicalmente à causa de Cristo, tornando-se um Evangelho vivo.

Com coragem e sabendo que para tal empenho contaria com a graça de Deus, Francisco assumiu cada uma das consequências desta escolha radical: rompeu com o sonho de tornar-se nobre, rompeu com o poderio dos bens e da riqueza do pai e abraçou uma vida que não lhe traria nenhuma garantia de sucesso, mas que lhe tomara o coração por inteiro: “É isso que eu quero, é isso que eu procuro, é isso que eu desejo fazer de todo coração”.

Na escolha decidida que fez, Francisco abandonou uma série de regalias, mas não permaneceu de mãos vazias. Abraçou para valer o despojamento de uma vida pobre, a disposição de se colocar a serviço dos últimos e a humildade corajosa e sincera de quem desejava ser o “ultimo dos últimos”, verdadeiro irmão menor.

Nós, frades menores, fomos apresentados a esta radicalidade franciscana. Tivemos e temos, em nossa Formação inicial e permanente, a base histórica, espiritual e teológica para darmos com certa segurança este passo radical proposto pelo Seráfico Pai. Muitos confrades nos ajudaram e continuam a ajudando a percorrermos este caminho de aprendizado contínuo, no qual nunca podemos nos considerar prontos ou acabados. Somos sempre frades a caminho, estamos percorrendo um itinerário.

Este itinerário, não o fazemos a esmo, sem direção. Temos passos concretos e precisos para seguir. Escolhemos, com São Francisco e em fraternidade, percorrer o Caminho da Cruz, que é o caminho de Cristo ou o Caminho do Evangelho. “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e me siga”, diz Jesus em clara e alta voz no texto bíblico de Mateus que acabamos de ouvir.

Além de nos mostrar a meta, da Cruz que nos leva a Ressurreição, Nosso Senhor também teve a delicadeza de colocar diversas marcas no caminho para não corrermos o risco de perder a direção. Tais marcas aparecem descritas na Leitura dos Atos dos Apóstolos proclamada nesta celebração. O programa completo está ali e por isso tomo a liberdade de destacá-lo com vocês:

“Os que haviam se convertido eram perseverantes em ouvir o ensinamento dos apóstolos, na comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações. Todos os que abraçavam a fé viviam unidos e colocavam tudo em comum; vendiam suas propriedades e seus bens e repartiam o dinheiro entre todos, conforme a necessidade de cada um. Diariamente, todos frequentavam o templo, partiam o pão pelas casas e, unidos, tomavam a refeição com alegria e simplicidade de coração. Louvavam a Deus e eram estimados por todo o povo. E, cada dia, o Senhor acrescentava ao seu número mais pessoas que seriam salvas”.

 Certamente vocês perceberam, estimados confrades, que nesta descrição da comunidade primitiva aparecem os três conselhos evangélicos que hoje vocês se dispõem a abraçar livremente para percorrer com mais liberdade e radicalidade o Caminho da Cruz.

A obediência dos primeiros cristãos, eles a manifestavam no esforço de perseverar e ouvir com toda atenção os ensinamentos dos apóstolos. Tais ensinamentos, temos total clareza, os Apóstolos não apresentavam por si, mas repartiam com generosidade toda riqueza que receberam no contato íntimo e pessoal com o Senhor. É o que confirma São Paulo na Carta aos Gálatas: “Irmãos, asseguro-vos que o evangelho pregado por mim não é conforme a critérios humanos. Com efeito, não o recebi nem aprendi de homem algum, mas por revelação de Jesus Cristo”.

Vocês também, estimados confrades, são convocados a permanecer inteiros na escuta de Deus, que nos fala de muitas formas, até mesmo nas situações dolorosas e difíceis. Toda escolha radical tem suas dificuldades e sofrimentos. O surfista vencedor já perdeu as contas de quantos “caldos” levou pela vida. Não se deixem desanimar por possíveis tropeços ou arranhões. Lembrem-se sempre de que Aquele a quem escolhemos obedecer, também se dispôs a ser “todo ouvidos” para nós. Por isso é tão fundamental uma vida intensa e profunda de oração, momento especial em que Deus nos ouve e que nós podemos ouvi-lo para discernir a respeito dos passos e fatos de nossas vidas.

O voto de pobreza, também chamado pela expressão latina de “sine proprio”, aparece de forma clara e translúcida no texto dos Atos dos Apóstolos. Está presente no gesto da fração do pão, atitude de partilha que não deixa faltar a ninguém o essencial, e na disposição de se colocar tudo em comum, desde as esmolas, salários, força de trabalho, dons, capacidades, por fim, a própria vida. Ninguém possuía nada, tudo era de todos e todo mundo sabia repartir. Sendo assim, não faltava nada a ninguém. Aqui percebemos que pobreza e fraternidade são companheiras inseparáveis. Tudo era fruto da graça generosa de Deus. Com muita sabedoria e propriedade, na Carta que escreve a toda a Ordem, São Francisco nos exorta sobre o verdadeiro espírito da pobreza como condição para estarmos repletos de Deus: “Nada de vós retenhais para vós mesmos, para que totalmente vos receba quem totalmente se vos dá”.

Quanto à castidade, ela se exprime no bem-querer, na unidade e na simplicidade que marcavam aquela primeira comunidade. Ninguém queria ser mais do que ninguém nem desejava impressionar quem quer que fosse. Todos procuravam nutrir mutuamente um amor transparente expresso no espírito de prontidão para se socorrerem uns aos outros de acordo com as necessidades que surgissem. Entre eles não havia vaidade, desejo de dominação ou qualquer outro tipo de relacionamento que não fosse marcado pelo respeito, pela estima e pela amizade. Certamente tinham suas diferenças e seus momentos de tensão, mas não deixavam que nenhum destes desencontros lhes roubassem a liberdade que alcançaram à custa do cultivo de um coração transparente e desarmado.

Pobreza, obediência e castidade. Estas são, caros irmãos, as balizas que o próprio Cristo dispôs para que vocês não se percam no Caminho da Cruz. As palavras da fórmula de profissão, que vocês daqui a pouco vão pronunciar publicamente, são fortes, decisivas e radicais. Elas apresentam um projeto de vida desafiante e encantador no qual vocês entram impulsionados pela fé e pela caminhada formativa que empreenderam até aqui. Jamais caiam na tentação de imaginar que estão sozinhos neste caminho e que o bom êxito desta empreitada depende apenas do empenho de vocês. É claro que esforço pessoal é imprescindível. No entanto, mais radical e fundamental ainda é deixar-se conduzir pela Graça de Deus.

E vocês escolheram para esta celebração um tema bem sugestivo, do Cântico do Irmão Sol: “Louvai e bendizei a meu Senhor, e dai-lhe graças, e servi-o com grande humildade”. Este pensamento de nosso pai São Francisco certamente ficará guardado na alma de cada um de vocês por toda a vida. Pois um coração humilde e grato fará com que a nossa consagração seja testemunho da ação de Deus e do empenho do ser humano. Será o projeto que o mistério da encarnação de Jesus Cristo nos propõe.

O Menino de Belém, depositado por Maria e José sobre uma caminha improvisada com um punhado de palha seca, também oferece para nós algumas pistas importantes para o Caminho da Cruz que estamos nos dispondo a percorrer. Aliás, Santa Clara nos recorda, na Carta que escreveu a Santa Inês de Praga, que a manjedoura e a cruz são duas molduras de um mesmo espelho, o Cristo Jesus, o Verbo de Deus encarnado em quem desejamos espelhar nossa caminhada de religiosos franciscanos. A simplicidade do menino sobre as palhas e a generosidade do jovem homem pregado sobre o madeiro sejam sempre para nós indicações preciosas que nos mantenham firmes no caminho. Sempre que a soberba, a vanglória, o orgulho ou a prepotência vierem nos assolar, olhemos para a ternura simples e desarmada da criança pobre de Belém. Toda vez que nos julgarmos injustiçados, quando nossos planos perecerem, quando o caminho parecer por demais difícil e cansativo, é hora de olharmos para as feridas doloridas e a humilhação dolorosa que nosso Senhor experimentou na injusta violência que sofreu sobre a cruz.

Referenciais não nos faltam, estimados irmãos, para percorrermos este fascinante caminho de radicalidade que hoje vocês assumem definitivamente. Para concluir trago o texto do quarto parágrafo da Encíclica Fratelli Tutti, último documento lançado pelo Papa Francisco e que tem como tema A fraternidade universal e a amizade social. Logo no início da Carta, o Papa deixa claro que sua inspiração nasceu do modo de ser e de se relacionar com as pessoas, assumido por São Francisco de Assis, homem que soube integrar a sua fé professada a um testemunho de vida provocante e transformador. Diz o Santo Padre:

“[Francisco] Não fazia guerra dialética impondo doutrinas, mas comunicava o amor de Deus; compreendera que «Deus é amor, e quem permanece no amor, permanece em Deus». Assim foi pai fecundo que suscitou o sonho duma sociedade fraterna. Naquele mundo cheio de torres de vigia e muralhas defensivas, as cidades viviam guerras sangrentas entre famílias poderosas, ao mesmo tempo que cresciam as áreas miseráveis das periferias excluídas. Lá, Francisco recebeu no seu íntimo a verdadeira paz, libertou-se de todo o desejo de domínio sobre os outros, fez-se um dos últimos e procurou viver em harmonia com todos.

Que nós, frades menores, a exemplo de Francisco, sejamos seres humanos pacíficos, amorosos, livres, apaixonados pelos pobres e fragilizados, adeptos incansáveis do diálogo e construtores de pontes de esperança. Deus abençoe a vocês! Muito obrigado pelo seu “SIM” generoso em favor do Evangelho! Paz e Bem!

Frei César Külkamp, OFM
Ministro Provincial 

Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil – Petrópolis, 05 de dezembro de 2020