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Frei Vitorio: “O grande drama do nosso tempo é incapacidade de sonhar”

30/09/2023

Notícias

“Francisco de Assis, luz e referencial para os grandes desafios do século XXI” foi o tema de encerramento, nesta sexta-feira (29/9), da Semana Franciscana 2023, que foi realizada no formato on-line. O mestre em espiritualidade franciscana, Frei Vitorio Mazzuco Filho foi o convidado para falar deste tema. Frei Elói Piva, professor do Instituto Teológico Franciscano (ITF), foi o mediador da noite.

Frei Sandro Roberto da Costa, reitor do ITF, na sua apresentação, lembrou que esta Semana aconteceu há poucos dias das festividades de São Francisco de Assis e no ano dos Jubileus Franciscanos dos 800 anos da Regra Bulada e do Natal de Greccio. A Semana contou com as parcerias da Editora Vozes, Instituto Teológico Franciscano (ITF), Província Franciscana da Imaculada Conceição, Conferência da Família Franciscana do Brasil (CFFB), a Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (ESTEF) e Universidade São Francisco.

Frei Vitório Mazzuco é natural de Campo Limpo, no interior de São Paulo. Ele atua na Frente da Educação e é o atual coordenador de Pastoral da Universidade São Francisco (USF), em Bragança Paulista. Fez Mestrado em Teologia com especialização em Teologia Espiritual no Pontificium Antonianum, Roma, Itália. É autor do livro “Francisco de Assis e o modelo de amor cortês-cavaleiresco”. Atualmente reside na Fraternidade de Itatiba (SP).

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Este tema – “Francisco de Assis, luz e referencial para os grandes desafios do século XXI” – nos coloca diante de uma grande verdade. Impressionante como São Francisco puxa a história para frente. Não é um santo do passado. Por que isso? O que seria de nós se não sonhássemos o novo a ser realizado? E é tão bonito o jeito francisclariano de sempre sonhar. Não a histeria das novidades, mas a dimensão que foi a grande escolha de Clara e Francisco, a Boa-nova. O Evangelho é o sonho de Jesus.

Toda a proposta do reino foi produzir utopias, dar um lugar para aquilo que não tinha lugar. Todo grupo, este grupo que está aqui, toda a sociedade, têm que voltar a produzir sonhos. Todo ser humano, todo ser vivo alimenta ideias e ideais.

Porque isso projeta a vida e as possibilidades que são alimentadas dentro de nós. Eu gosto de falar disso, hoje especificamente é sobre Francisco, mas Clara e Francisco foram grandes sonhadores e grandes realizadores. Atravessam séculos como um fenômeno humano e cristão. Sem sonhos não se traçam caminhos. Então, o grande drama do nosso tempo é incapacidade de sonhar. Esse é o grande desafio para o século XXI, porque hoje quem sonha por nós? Catálogos, vitrines, posts, publicações, fake news, ideologias, consumo, mercado, sonham por nós.

Por isso também é um desafio mesmo a pós-modernidade viver, de certa forma, um encantamento e um estranhamento diante de Francisco. Ele é muito diferente, porque ele está carregado de interpretações, de projetos.

As Fontes Clarianas e Franciscanas são mananciais de novidades. Cada vez que se debruça ali, temos respostas para tantas perguntas. Nós não temos assim um acesso direto a Francisco, a não ser através dessas Fontes. Ele é muito conhecido, ao mesmo tempo desconhecido. Até porque esse mundo sonha o quê? Sonha um estereótipo. Tem gente que imita o estereótipo de Francisco. O mundo que hoje admira a aparência, o mundo de top models ainda faz essa parte das celebridades. Como embelezar um feioso? Celano definiu ele como um feioso, magro. Como atualizá-lo para o gosto desta pós-modernidade?

Nós não somos contemporâneos dele, mas como ele está presente. Como ele acaba sendo esteticamente o belo e o bom. Porque ele nunca se deixa prender ao uso das imagens que nós fazemos dele. Francisco escapa, ele é livre.

Até para ajudar a retomar Deus no mundo de hoje, Francisco é muito diferente de todo o discurso religioso que está aí. Um Deus do tamanho do mercado, do tamanho dos especialistas em pregações, os coachs espirituais por assim dizer, e que dizem o que podemos e o que não podemos.

A gente vê um monte de movimentos e até igrejas que se julgam no poder de mandar pessoas para a condenação. Não é aí que está Francisco. Onde ele está?

Mas nós precisamos retomar uma coisa muito importante. Nós temos que buscar sendas precisas, nós temos que ter uma orientação no coração, na mente. Nós temos que, da imensidão da floresta que estamos, encontrar clareiras que apontem para nós, dizendo: É por aqui! E Francisco é uma luminosa clareira na floresta do século XXI. É nele que nós paramos para tomar fôlego, esta sombra gostosa com réstias indicadoras de luz. Por isso, ele é luz e referência.

Eu queria talvez tocar em muitos assuntos, mas a minha ótica vai ser a partir da espiritualidade, e eu fiquei pensando o que dizer para vocês nessa noite. Como atualizar Francisco para o século XXI? Aí eu me lembro que, na entrada do novo milênio, estive num encontro da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (Soter), que reúne teólogos do Brasil, da América Latina e do mundo. Antes da virada do milênio teve um encontro fabuloso, sobre os paradigmas para o século XXI, e eu me lembro que foram discutidos tantos paradigmas. Me lembro de João Batista Libânio, o saudoso Libânio, ele citou 19 paradigmas para o século XXI. Paradigmas é esse conjunto de sentidos que fazem com que a gente possa identificar o momento, uma época e o que está vindo, o que está determinando uma identidade das pessoas, do tempo, das pessoas, dos hábitos etc.

Mas no fundo todos chegaram à conclusão que quem tinha sintetizado todos os paradigmas para o século XXI era o grande teólogo alemão Karl Rahner. E ele dizia que a grande característica dos paradigmas e o que seria essa trilha segura para atravessarmos o emaranhado do século XXI. São cinco os paradigmas: A mística, a alteridade, o feminino, o diálogo inter-religioso e a questão ambiental.

Se o século XXI não abraçar essas cinco verdades, dizia Karl Runner, não será século. E interessante quando eu comecei a estudar os paradigmas do século XXI, eu percebi que lá atrás, como eu falava antes, esse sonhador, esse mendigo, esse fabuloso e sempre novo Francisco de Assis, já tinha mostrado isso há oito séculos atrás. Ele é uma síntese.

Seguir as indicações desses sentidos nos ensina a ler, a analisar, pensar e perceber e se comprometer o que se passa ao nosso redor e no mundo. E por isso Francisco continua sendo uma seta que nos aponta, desde oito séculos atrás, a direção deste momento histórico atual. Até porque começa sozinho, mas nunca esteve sozinho. Nós nunca estamos sozinhos, precisamos olhar modelos por isso o título desta noite é tão lindo: luz referencial. Francisco é modelo vivo, modelo referencial de ontem e de hoje, por isso nós temos sempre que sentar aos pés de Clara de Assis e de Francisco de Assis. Eles são testemunhas do que a humanidade produziu de melhor no século XIII até o século XXI. Escutá-los muito.

Testemunhas são parâmetros para elevar o nível da nossa existência, até porque no século XXI as pessoas hoje têm uma tentação de 1,99 e nivelar a vida por baixo. De escolher banalidades, mas não fazer uma grande convocação para a existência. E é tão bom que nós precisamos de referência. Eu sempre dizia para alunos e alunas: quem tem referências tem futuro.

Nós estamos aqui, nessa Sala, todos nós somos apaixonados por um sonho que dura oito séculos e que não vai terminar. E por isso, mais do que nunca, surge a figura frágil e forte, santa e simpática, medieval e pós-moderna, despojada e atraente, heroica e holística, embora Pierre Weil e Jean-Yves Leloup são considerados grandes referenciais da holística. Eu acho Francisco o pai da holística, porque ele olha essa totalidade da existência. Essa figura poética e mística, aglutinadora, provocadora, sempre presente, sempre profética, sempre fraterna.

Uma vez eu conversava em Brasília, na Unipaz, com o grande Jean-Yves Leloup e ele dizia: Francisco é o arquétipo da síntese. Ele é o grande modelo da síntese. Que síntese? Ele falava exatamente o que Karl Rahner dizia e que Francisco era a síntese dessa busca da mística, da alteridade, do feminino, do diálogo inter-religioso e da relação com a casa comum.

Então, esse filho de Pedro Bernardone, o homem mais rico de Assis, que sonhava para seus filhos glórias da cavalaria, para que ele pudesse dar um salto de status para alta nobreza, do seu pai ele herda o nome porque seu pai era apaixonado pela França. França era o mercado da época. E hoje no século XXI se apaixona por aquilo que é mercado. Centro cultural, centros econômicos são referências. Mas Francisco sonha os sonhos do seu coração. Espírito de força, de ambição, de rigor consigo mesmo. Sonho de seu pai, sonho de sua mãe, e ele recebe uma esmerada educação de nobreza e costumes de olhar esse lado da vida a partir da fé. E entre 1201 e 1205, Francisco começa a dar um salto na sua vida. Começa novo, com 18 anos até os 21 anos. Ele tem uma vida já muito clara. Ele escuta uma vontade maior e a transforma na sua vontade. Que queres que eu faça? Ele pergunta a um valor maior.

E por isso ele também é um desafio para nós. Hoje tem muita gente que está com 40, 50 anos e ainda não saiu de casa. E não tem perguntas, não tem sonhos, tem estagnação. E Francisco então inicia um lento processo gradual de conversão, não apenas de mudança de mentalidade como eu sempre digo, mas ele começa uma radical mudança de lugar. Ele é um convertido e nisso se enquadra o quê? Uma personalidade forte. A persona de Francisco é a persona que muda de lugar. Este é o grande desafio para o século XXI: a persona. Personare, fazer soar o som do eu.

Essa subjetividade, essa individualidade que vibra, que soa. A sua conversão não é um ardor momentâneo, é uma perene busca de identidade. E hoje nós temos que perguntar: quem somos nós? Ou nós somos aquilo que a sociedade quer que nós sejamos? Que as estruturas querem que nós sejamos e o que o mercado quer que nós sejamos e as ideologias? Francisco é um louco apaixonado pela sua identidade. Isso é muito importante.

Então, hoje, o grande desafio do século XXI é apaixonar-se pela identidade, porque senão nós vamos sempre olhar o rótulo das coisas. O prazo de validade das coisas. E nós vamos sempre olhar aquelas figuras que seduzem pelas mídias que sempre mostram o quê? Olha, este é realmente o ídolo do momento. Francisco não é um cortesão de ricos nem adulador de pobres. Ele não considera a situação através de um prisma de uma classe social, como nós estamos acostumados hoje. Nem olha as coisas a partir de privilegiar a pessoa, a partir de um partido político ou de uma ideologia. Ele pensa, vive, age e julga a partir do sonho do Reino, a partir de um modelo chamado Boa-Nova. O sonho dele tem um filtro do Evangelho.

Ele não é um revolucionário preso a uma barulhenta militância, característica do século XXI. Mas ele instaura uma verdadeira revolução dos autenticamente convertidos. De uma súbita mudança pessoal para uma concreta transformação do comum. Ele não deixou o mundo. Quando ele fala pouco tempo depois “quando eu deixei o mundo”, significa não fugir do mundo, mas estar no mundo de um modo diferente. Ele mudou completamente seu modo de estar no mundo. Até para mostrar para nós que ser pobre é ter em comum. E levar àqueles que nada têm o comum. Afastar-se de toda forma de egoísmo, que é realmente centrar o eu. E ele vai dividir o seu eu, as suas ideias e seu bolso. Quem tem a coragem hoje, no século XXI, de dividir o eu, as ideias e o bolso? Hoje nós vivemos na prisão de nossas ideias e na acumulação de extratos bancários.  E ele nos ensinou que pobreza é liberdade de encontrar a verdade. E quem possui uma riqueza tão grande, tão forte, que o coração diz: essa identidade que transforma o humano, capaz de amar, capaz de ser feliz.

É isso também que Jean-Yves Leloup dizia: ele é o arquétipo da síntese, porque a sua mística é simples. Celano descrevia como uma pessoa totalmente estranha. Essa pessoa passa a invocar o infinito. Então, nele a alteridade, o alter, o outro e a outra, é assim. Ser fraterno sempre. Fraternidade e sororidade. Francisco é alguém que nunca vai sozinho. Ele pode até ter começado sozinho, mas logo, logo, se fez grupo e o seu grupo primitivo não viveu a fraternidade através de simpatia pessoal ou empatia pessoal. Sublimaram isso, fizeram da fraternidade uma escuta comum da vontade comum do outro e da outra, como convocação exigente para viver beleza e dignidade e diferenças dos limites do outro.

E o século XXI tenta afastar isso para criar individualismos fortes e não subjetividades fortes. A conversão é sua mística, alteridade é a sua fraternidade, mas o menino emergiu nele porque a mãe divina sempre estava presente na sua vida. Ele tem três expressões fortes na sua vida: a mãe divina; a madonna  que veio de Picardie e por isso que os italianos faziam diminutivo do seu nome, a Dona Picá; e Clara de Assis inspiraram nele um vigor do espírito, da sensibilidade vital, da percepção que penetra através da superfície da realidade e acolhe a vida com admiração e com reverência, com ternura, com amor, com o coração. E o diálogo inter-religioso se concretiza de uma vez por todas e foi muito bem lembrado pelo Frei Sandro no início dessa live a sua ida ao Oriente para conversar com o sultão Al-Malik Al-Kamel no diferente da crença e no igual da mesma fome e sede de fé. E por último, o princípio ecológico de Francisco e a sua capacidade de maravilhar-se diante da grandeza das obras do Criador e contemplar as obras do divino nos detalhes.

O século XXI tem que fazer umas escolhas. Karl Rahner dizia: ou o século XXI será o século do espírito ou não será século. Francisco vem mostrando há oito séculos que é preciso ter um itinerário espiritual e o seu itinerário é mostrar: olha, temos que ser humanos evoluídos porque o século XXI é de tecnologias evoluídas que invadem o humano. Francisco nos desafia a ser um tipo melhor de humanidade, ao qual hoje nós somos chamados. Então, sua atração hoje é que ele é cada vez mais lido, mais conhecido, mais reverenciado, buscado e ele contribui realmente para o ressurgimento de um novo tipo de ser humano. E nós precisamos dele. Nós precisamos muito dele, porque hoje no século XXI, o grande desafio é perguntar: que tipo de ser humano nós somos?

FREI VITÓRIO DETALHA OS CINCO PARADIGMAS  E O  CAMINHO DE FRANCISCO QUE DEVE PREENCHER NOSSA BUSCA NO SÉCULO XXI

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