Frei Antônio Moser é nomeado para o Sínodo
30/09/2015
Moacir Beggo
A Santa Sé divulgou nesta terça-feira (15/09), a lista dos participantes da XIV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que se realizará no Vaticano de 4 a 25 de outubro, sobre o tema “A vocação e a missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo”.
No total, os participantes brasileiros serão onze(2 cardeais, 4 bispos, 1 teólogo e 4 leigos), entre eles Frei Antônio Moser, frade desta Província da Imaculada Conceição do Brasil e professor de Teologia Moral e Ética no Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis, nomeado pelo Papa Francisco para fazer parte da Secretaria Especial.
Frei Moser, que se doutorou em Teologia, com especialização em Moral, na Academia Alfonsianum – Roma, além de diretor da Vozes, é professor de Teologia Moral e Bioética no Instituto Teológico Franciscano (ITF), em Petrópolis (RJ); pároco da Igreja de Santa Clara de Petrópolis; diretor do Centro Educacional Terra Santa, além de conferencista no Brasil e no exterior. Tem livros traduzidos para outras línguas (Teologia Moral impasses e alternativas; O enigma da esfinge, a sexualidade; Biotecnologia e Bioética: para onde vamos?; Ecologia: desafios éticos). Durante nove anos participou do programa semanal “Em pauta” na Canção Nova.
Nesta entrevista, Frei Moser fala um pouco de temas que estarão em pauta durante o Sínodo. Acompanhe!
Site Franciscanos – O sr. esperava esta convocação para o Sínodo?
Frei Moser – Todos sabemos que os Sínodos não acontecem todos os dias e que se trata de um grande evento eclesial, para o qual comparecem numerosos bispos vindos de todo o mundo. No Sínodo extraordinário do ano passado estiveram presentes nada menos do que 250 pessoas entre bispos e assessores. Neste haverá um número parecido de participantes. Ora, sabendo que o Sínodo é algo de tão importante para a Igreja e sabendo que do Brasil só vão 2 Cardeais e 4 bispos (além dos leigos), claro que o telefonema da Nunciatura inicialmente me assustou. Logo pensei tratar-se de algo ligado à Editora Vozes… Na realidade era a pergunta para saber se eu aceitava. Duas semanas depois veio oficialmente a convocação para ser “expert”. Imagino que esta convocação se deu devido aos meus escritos sobre sexualidade e família. Mas de qualquer forma, de hábito franciscano nas sessões oficiais, em meio a tantas mitras, a gente só pode sentir-se pequeno.
Site Franciscanos – Pode o Sínodo dos bispos alterar a doutrina da Igreja em pontos doutrinários de teologia moral?
Frei Moser – Quando o então Papa João XXIII convocou o Concílio Vaticano II foi logo esclarecendo que não queria um Concílio de cunho doutrinário, mas pastoral. Ora, quando se tem presente a figura do Papa Francisco, ninguém iria esperar por algo que fosse diferente: trata-se de encontrar uma maneira mais adequada para animar a caminhada da Igreja e sobretudo, como diz o atual Instrumento de Trabalho, dar especial atenção às pessoas e famílias que se encontram em estado de fragilidade. A grande carta que este Papa traz na manga é a mesma de Jesus Cristo: abrir as cortinas para que as pessoas vislumbrem a beleza e se sintam fascinadas pelo Reino de Deus e sua causa.
Site Franciscanos – Espera-se alguma mudança em termos da moral sexual?
Frei Moser – Claro que quando se fala em família, de uma maneira ou de outra nos defrontamos com questões morais. Todos estão antenados para ver o que o Sínodo vai dizer sobre os separados, recasados, e em união homoafetiva. A rigor, embora estas sejam questões que estão na ordem do dia, as preocupações pastorais vão muito além. O quadro de fundo é o do “mundo contemporâneo”, cheio de interrogações e contradições. Em outras palavras, o Sínodo certamente trará uma luz muito mais diretamente teológica do que estritamente moral, no sentido casuístico. Iluminar os caminhos para animar as famílias na diversidade de situações será a preocupação central. Com certeza se falará mais de graça do que de pecado; mais de luzes do que de sombras. É a Igreja do “sim” de Maria que abre suas janelas mais do que nunca.
Site Franciscanos – Como conceituar, concretamente, a família face às várias formas como ela está se estruturando?
Frei Moser – Boa pergunta. Houve tempos em que nós não nos dávamos conta da grande diversidade de situações, resultantes de coordenadas culturais e históricas. No Sínodo extraordinário do ano passado esta diversidade veio com frequência à tona. Haja vista culturas que convivem com a poligamia, outras que se defrontam com famílias resultantes de diversas separações e diversas uniões…. Hoje, em certos setores da sociedade se tende a considerar como família também uniões homoafetivas, que por vezes reivindicam a condição de “matrimônio”. Trata-se de acolher estas pessoas e uniões como elas são, como ponto de partida, e não como ponto de chegada. Em todas as situações o que importa é que as pessoas possam conhecer o amor de Deus através da compreensão e do amor concreto dos irmãos e irmãs. Há muitos anos já usei esta expressão: “pessoas homoafetivas são irmãos e irmãs que Deus nos deu”. Nem condenar, nem justificar, mas ajuizar cada situação oferecendo a mão para ajudar estas pessoas a se encontrarem, serem respeitadas, e encontrar o Criador de todos e de todas. Claro que adoção de crianças vai ser uma questão mais polêmica do que o eventual batismo destas crianças.
Site Franciscanos – Há expectativa em relação à questão do lugar dos casais de segunda união na vida da Igreja?
Frei Moser – No tocante à segunda união, há paróquias e dioceses que já fizeram uma longa caminhada. Tudo começa com o empenho por conhecer a realidade concreta que precedeu e que se faz agora presente em cada caso. Em seguida proceder para que esta diversidade de segundas uniões não crie mais muros, e sim, abra novos caminhos para que todos se ponham a caminhar. De alguma forma, o Papa Francisco já avançou o sinal, quando urge para que os processos de declaração de nulidade sejam acelerados e quando insiste em afirmar que os que se encontram em segunda união também podem fazer parte da Igreja. Imagino que entre os debates mais acalorados se encontre aquele que se refere a uma multiplicidade de uniões sucessivas e que há uma distinção a ser feita entre os que se encontraram há pouco tempo e os que já trilharam um longo caminho de união solidificada sob todos os aspectos. Neste contexto convém não esquecer a “Familiaris Consortio” de João Paulo II, n. 84, onde urge o espírito de acolhida e de participação na vida da Igreja. Naquele documento só ficou uma questão em aberto e que hoje vem à tona com força: a eventual participação de alguns destes casais nos sacramentos da Penitência e da Eucaristia.
Site Franciscanos – O individualismo da pós-modernidade dificultou a vivência familiar. O que se pode esperar, do hiperindividualismo, onde se proclama que ninguém é mais de ninguém, “cada um na sua”?
Frei Moser – De fato vivemos hoje uma situação onde reina o “cada um por si e Deus por todos”. Isto não dificulta apenas a vida do casal e das famílias, mas também da sociedade e até mesmo das comunidades de fé e comunidades religiosas. É um fenômeno que deve ser enfrentado com coragem. Mas também não podemos deixar de perceber que a “carência” desta dimensão de comunhão e participação de alguma forma já é um passo na direção contrária. Em outros termos: o vazio existencial não deverá durar muito tempo. O que urge é cultivar as sementes que ainda se encontram de baixo da terra. No fundo a proclamação de autonomia foi uma resposta a certa massificação. Ora, uma vez conquistada a autonomia, não só a busca da vida em comum se torna mais imperiosa, como de alguma forma será uma decorrência lógica da percepção de que sozinhos não iremos longe.
Site Franciscanos – Como superarmos certo moralismo que não ajuda a ninguém, prejulga as várias formas de família ou de coabitação e que nos faz perder os valores que podem estar aí presentes, vividos com sinceridade pelas pessoas?
Frei Moser – Há ao menos duas maneiras de ver a realidade: uma com óculos escuros e outra com óculos claros, de quem percebe as cores, em sua diversidade, mas também na conjugação, como se dá num belo mosaico. A padronização não faz parte dos planos de Deus. Ele criou todos os seres como originais, e nunca como cópias. Hoje, por uma série de razões, passamos a compreender melhor que os projetos de Deus passam sempre pela comunhão na diversidade. Com isso mesmo onde eventualmente vemos sombras, não deixaremos de perceber luzes. Vale para pessoas, uniões, famílias, sociedades, culturas…. O mosaico mais rico é o que comporta a maior diversidade harmonicamente conjugada.
Site Franciscanos – Podemos dizer que os valores e inspirações que deram vida à família de Nazaré continuam a sustentar as relações conjugais, as parcerias humanas e todos os que celebram o sentido da vida na relação de amor e de intimidade?
Frei Moser – A família de Nazaré foi uma família muito original. Mas ao mesmo tempo, justamente por isso continuará sempre sendo fonte de inspiração. Maria e José certamente se “estranharam”, mas souberam perscrutar a vontade de Deus. Por isso mesmo, se aceitaram e construíram uma vida em profunda comunhão entre eles através da comunhão com Deus. Também tiveram não poucos problemas com o menino, desde a concepção, o nascimento, a adolescência, até a vida adulta. Jesus, mesmo sendo divino, não deixou de ser plenamente humano. E com isto, assumia atitudes que Maria e José nem sempre compreendiam. Basta lembrar a cena do Templo de Jerusalém e as Bodas de Caná da Galiléia.
Site Franciscanos – E o que se pode esperar no que diz respeito às novas “modalidades” de família?
Frei Moser – A expressão “novas modalidades de família” não é tão nova assim… Basta olharmos como se constituíram as famílias no Brasil logo após a descoberta. Penso até que se deveria fazer um estudo mais detalhado sobre a realidade familiar daquele período, e de alguma forma de toda a história do Brasil. O que hoje aparece como novidade sempre existiu por debaixo dos panos. A novidade consiste mais em que as pessoas “saíram do armário” e se apresentam agora como são. Enquanto no passado diziam “amém” aos mandamentos de Deus e da Igreja, e na realidade viviam bem de outra maneira…. “Sei que estou errado, mas Deus me compreende”, era um pouco o lema de tantas pessoas e famílias. Nada de muito diferente do que acontece frequentemente em nossos dias. À Igreja não cabe proferir condenações, mas convites, para que as pessoas ouçam a Palavra de Deus e a coloquem o mais possível em prática. A Igreja tem a missão de desvelar a cortina de um cenário encantador, mas ela sabe que nem todos os que se encontram na plateia irão chegar lá. Só Deus sabe.
Site Franciscanos – Alguns setores conservadores da Igreja gostariam de definir como pecadoras as pessoas que fracassam na hora de constituir uma família. O Papa aposta em uma visão mais compreensiva, mais misericordiosa. O Motu Proprio sobre a nulidade do casamento está nesta linha do Papa?
Frei Moser – O Papa Francisco age como o jogador argentino Messi: quando você menos espera ele marca um gol. Ele é profundamente intuitivo e sobretudo profundamente identificado com a pedagogia de Cristo, que é a pedagogia do encantamento. Não adianta atirar pedras, gritar contra os pecadores. É preciso proceder como Jesus, que abre sua vida pública proclamando que veio para os pecadores e não para os justos. E mais: Jesus vivia cercado de pessoas que carregavam nas costas uma etiqueta: “pecador”. É que Jesus sabia olhar as pessoas com os olhos de Deus, vendo santos em potencial onde outros só viam pecadores. E o contrário também é verdadeiro: descobria pecadores atrás de máscaras de pessoas consideradas santas.
Site Franciscanos – Qual a sua expectativa pelo Sínodo? O que vai mudar? Em que pode ajudar?
Frei Moser – Penso que tanto na sociedade quanto na Igreja, há certos setores que esperam demais. Um Sínodo nunca é um ponto de chegada: é um sinal de partida. Partida para que o máximo de pessoas chegam à meta. A meta é aquela que o Cristo formulou: “sede perfeitos como o Pai celeste é perfeito”. Mas o próprio Papa Francisco repete frequentemente que também ele é pecador… Eu vou procurar descobrir alguns pecadinhos do Papa…. Com isto me sentirei um pouco mais tranquilo em relação aos meus próprios pecados. Só há uma maneira de ser salvo: sentir-se perdido, como Pedro afundando nas águas do Lago de Genesaré. Penso que o que vai mudar, ao menos na cabeça de muitas pessoas, é esta consciência de que ninguém é santo, ninguém é perfeito, mas todos são convidados a caminhar.
Quem tem pernas longas dá passos maiores, quem tem pernas pequenas dá passos menores. O que importa é caminhar. “Levanta-te e anda” é um imperativo evangélico que nunca pode ser esquecido. Pessoalmente acho que para mim será uma experiência muito rica, poder ouvir tantas vozes diferentes, vindas de tantas partes do mundo, com mentalidades tão diferentes, mas sempre buscando a mesma coisa: a vontade de Deus. De alguma forma me sinto como Abraão, gerando um filho na velhice… E, para quem conhece meu percurso ( a maioria dos confrades da Província), vai entrever que este convite me assegura de que, apesar de haver encontrado algumas pedras no caminho, minha maneira de pensar apontava na direção para a qual estamos caminhando.
Site Franciscanos – Como o sr. vê o Pontificado do Papa Francisco?
Frei Moser – Nas vésperas da eleição de Francisco eu me encontrava na Praça de São Pedro em Roma. Mas como queria ir a Assis, com um casal amigo, segui para lá na expectativa do que iria acontecer. Lá em São Damião, diante daquele histórico crucifixo, falei para o casal amigo: “acho que quem for eleito deveria chamar-se Francisco. Pois a Igreja precisa ser reconstruída…. depois de tantos escândalos de todo tipo”. Bingo. Não só escolheu o nome, como na “Laudato Si” e em tantas outras ocasiões mostra ter consciência de que foi vocacionado por Deus para ser outro Francisco de Assis. Aquele mesmo Francisco que não só reconstruiu uma capelinha, como, no sonho de Inocêncio III, impediu a queda da basílica de São João do Latrão. Não há dúvidas de que o papado teve personagens marcantes tanto no sentido positivo como negativo. Mas também é verdade que sobretudo a partir do Vaticano II, veio uma geração de grandes homens, que souberam responder aos sinais do seu tempo. Quero deixar claro que o atual Francisco só foi possível graças ao gesto profético de Bento XVI. Foi ele que abriu caminho para a desmistificação de certas funções, que no fundo não passam de serviços prestados à causa do Reino. Nosso Francisco, que não quis ser denominado nem de “primeiro”, nem “Xavier”, veio para criar um clima novo para a Igreja e para a sociedade. Não é bem ele: é o Espírito Santo que age através dele, confirmando o que sempre acreditamos: quem guia a Igreja não são os Papas, mas o próprio Espírito Santo, que quase sempre age de maneira surpreendente. Francisco veio para tornar os sonhos do Vaticano II uma realidade.