Entrevista: Frei Volney Berkenbrock fala do Espírito Vozes
04/03/2015
ENTREVISTA – FREI VOLNEY BERKENBROCK
Moacir Beggo
Com o enredo em aberto, a trama se armando, e o final da história ainda distante, não dá para prever o futuro do livro. Mas se pode dizer, com certeza, que nunca “essa invenção genial” sofreu uma ameaça tão frontal com a chegada do livro em formato eletrônico, um produto mágico e revolucionário que, segundo estudiosos, veio para ficar. Ao mesmo tempo, o mercado livreiro brasileiro foi sacudido com fusões e aquisições de grupos internacionais.
Esse cenário, contudo, não tira o sono de Frei Volney Berkenbrock. À frente da gestão colegiada da Editora Vozes desde 1999, Frei Volney vê a editora robusta e mais forte ainda ao completar, no próximo dia 5 de março, 114 anos de fundação. Poucas empresas tiveram esse fôlego para atuar por tanto tempo neste segmento e, a seu favor ela tem, antes de ser uma empresa, um espírito coletivo, um espírito unido em torno da evangelização e da cultura.
Para Frei Volney, essa “invenção genial” tem vida longa. “Um livro é um conteúdo. Este conteúdo pode ser apresentado em formatos diversos. O formato impresso é o mais conhecido, o mais popular e – de longe – o mais utilizado”, enfatiza. No mercado, a Vozes cada vez mais valoriza a sua marca, inovando e criando para um mundo plural. A editora católica lá do início do século passado é hoje um centro irradiador de cultura franciscana, humana e cristã para diversos segmentos da sociedade brasileira. Nesta entrevista, Frei Volney aprofunda esse papel da Vozes hoje.
Site Franciscanos – A centenária Editora Vozes fará 114 anos no dia 5 de março próximo. Como ela consegue essa longevidade? Qual o segredo?
Frei Volney Berkenbrock – Sem dúvida, hoje poucas são as empresas que têm 114 anos. E muito menos as que têm 114 anos atuando no mesmo segmento, como é o caso da Vozes. Uma longevidade de mais de cem anos para uma empresa é de fato algo incomum. Constatar isto é fácil; agora explicar o porquê ou ainda dizer qual o segredo que se esconde por trás disto, aí já é outra história. É óbvio que a longevidade de uma empresa está ligada a uma série de fatores, como a permanência do segmento de mercado onde ela atua, ter um público fiel, tem uma administração adequada a cada época, saber ler os sinais dos tempos e renovar-se continuamente, conjugar dinamicidade com tradição etc. Mas penso que não é só isto que fez a Vozes permanecer por este tempo todo. A Vozes, antes de ser uma empresa, é um espírito coletivo, um espírito unido em torno da evangelização e da cultura. Sua longevidade se deve, penso, ao fato de nestes 114 anos ter sempre existido um grupo de pessoas que manteve este espírito. É isto que faz a sua longevidade: a continuidade deste espírito ao longo do tempo.
Site Franciscanos – Como é administrar esse catálogo gigantesco da Vozes (mais de 5 mil títulos), a atenção dada às obras que já foram publicadas e a prospecção para novos autores?
Frei Volney Berkenbrock – O grande responsável pelo catálogo da Vozes é o seu público. Os leitores é que vão selecionando e fazendo com que obras publicadas sejam mantidas ou não no catálogo. Cabe à estrutura da Editora Vozes, com sua gráfica, rede de distribuidoras e de livrarias, manter a oferta dos livros em todo o território nacional. Esta é a tarefa nossa; mas a responsabilidade pela manutenção do catálogo é em princípio dos leitores. O grande desafio que se coloca, no que tange ao catálogo, é justamente a escolha de novos títulos a serem lançados. Para esta tarefa, a Vozes tem atualmente cinco editoriais: o editorial cultural (responsável pela busca de obras de ciências humanas como antropologia, sociologia, ecologia, psicologia, história, letras, pedagogia, filosofia etc.), o editorial teológico-espiritual, o editorial catequético-pastoral, o editorial de produtos sazonais e o editorial dos selos Vozes Nobilis e Vozes de Bolso. Cada editorial é coordenado por um(a) editor(a), a quem cabe receber/buscar e analisar textos tanto nacionais como estrangeiros. As propostas dos editores são levadas ao Conselho Editorial, a quem cabe decidir pela publicação ou não das propostas. Em média são analisadas na Vozes mensalmente mais de 150 propostas e o número de lançamentos mensal é em torno de 15 obras.
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Site Franciscanos – Segundo pesquisa feita na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), em 2012 o mercado religioso editorial movimentou aproximadamente R$ 12 bilhões no país. Essa tendência continuou nos anos seguintes? Quais as perspectivas para a Vozes neste cenário?
Frei Volney Berkenbrock – Existem diversos institutos de pesquisa no Brasil sobre o mercado de livros e estes usam diferentes metodologias de cálculo. Nalgumas se usa uma classificação por editora, noutras por gênero de produtos. Na classificação por editora, a Vozes é considerada editora religiosa e toda a sua produção é assim classificada. Noutras se usa uma classificação por gênero de produtos. Não saberia dizer qual o método usado pela ESPM. Pelos dados da GFK, que pesquisa o mercado do varejo do livro e do qual a Vozes participa com seus dados, o livro religioso participou em 2013 com 7,5% do total do mercado, tendo caído esta participação para 6,1% no ano de 2014 em número de exemplares. Como o livro religioso tem em média um preço menor, a participação no faturamento teria sido de 4,6% em 2013 e 4% em 2014. Seguindo, pois, esta pesquisa, teria havido certa queda na participação do livro religioso no mercado brasileiro. É muito difícil dizer, no entanto, se isto é uma tendência ou não, pois o lançamento de alguns livros religiosos com vendas muito acima da média (como Ágape e Kairós do Padre Marcelo, ou então Nada a Perder, já no volume 3, de Edir Macedo) desequilibram as estatísticas. Dentro da Vozes acontece o mesmo fenômeno: a colocação, por exemplo, do livro Encontro Diário com Deus no catálogo de vendas da Avon, representa um salto grande no número de exemplares. Se formos retirar estes produtos excepcionais que desequilibram as estatísticas, eu diria que tem havido um crescimento em alguns gêneros de livros religiosos, destacando sobretudo o crescimento de livros de Espiritualidade.
Site Franciscanos – Nesse mesmo crescimento, 10% foi abocanhado pelo mercado do livro evangélico. Isso preocupa as editoras católicas ou mais especificamente a Vozes?
Frei Volney Berkenbrock – Não, isto não é uma preocupação. Na área religiosa, os livros são lançados geralmente para um segmento bastante claro de mercado, e assim sendo não acontece que um segmento abocanhe o outro. É claro que o crescimento do número de evangélicos faz crescer o consumo de livros evangélicos. Mas esta já não é uma questão tão relacionada com a Vozes. Por outro lado, há o fenômeno do consumo de livros religiosos, independente da confessionalidade. Por exemplo, livros de estudos bíblicos são consumidos por cristãos, de um modo geral, independentemente da confissão.
Site Franciscanos – Um dos grandes problemas para a maioria das editoras é a distribuição. A Vozes tem uma boa visibilidade nas livrarias. Qual a política da editora em relação à distribuição?
Frei Volney Berkenbrock – De fato, boa parte dos livros produzidos no Brasil nunca chega às livrarias. Podem ser encomendados ou comprados somente nas respectivas editoras, pelo fato de a editora não ter distribuição. A Vozes mantém uma rede própria de 13 distribuidoras (além de sua rede de livrarias), que cobre todo o território nacional. Isto tem a vantagem de estarmos próximos a praticamente todas as livrarias do Brasil, podermos apresentar a elas os nossos produtos e fazer a reposição com uma boa agilidade. Por outro lado, a manutenção desta rede tem um custo alto. Até o momento, a decisão da empresa é manter esta rede e não terceirizar a distribuição de seus produtos.
Site Franciscanos- A fusão da Companhia das Letras com a Objetiva, consequência direta da aquisição de todos os selos literários da espanhola Santillana pela Penguin Random House (PRH), assusta a Vozes?
Frei Volney Berkenbrock – Sim, é preciso estar atento às tendências do mercado livreiro, como fusões e aquisições que estão ocorrendo. Parece haver uma tendência de aglomeração, de editoras e de selos editoriais com o objetivo de ampliar a participação no mercado, com uma estrutura mais enxuta. Justamente atenta a esta tendência, a Editora Vozes ampliou o seu leque de selos editoriais. Assim, foi lançado em outubro de 2005 o selo Vozes Nobilis. Trata-se de uma linha editorial especial, com autores de renome e capacidade superior de venda, com livros de um acabamento mais aprimorado. Este selo editorial visa especialmente aumentar a presença da Editora Vozes em livrarias de grande circulação, como aeroportos e shopping centers. Passados quase 10 anos, este selo – hoje com cerca de 70 títulos – tem já uma participação significativa no faturamento da empresa. Seguindo na mesma linha de ampliar a presença no mercado, a Editora Vozes lançou em 2011 o selo Vozes de Bolso, pelo qual são publicados textos clássicos em formato de bolso e preços mais acessíveis. Este selo tem tido também um desempenho interessante. Em breve, o selo Vozes de Bolso irá lançar uma nova linha de produtos, mas não posso adiantar aqui qual…
Site Franciscanos – Nas listas dos livros mais vendidos no Brasil, quase a totalidade deles foi escrita por jornalistas, sejam as biografias, livros de história, ou com conteúdo memorialista. Ao contrário disso, vemos raríssimos livros de ficção nacional nessas listas. Como você analisa essa faceta do mercado editorial brasileiro?
Frei Volney Berkenbrock – A lista de livros mais vendidos concentra cada vez menos obras e autores. É a tendência de investir muito mais em um número menor de produtos. E o caminho mais auspicioso é seguir o que é feito em outros países, ou seja, publicar aqui autores/títulos que já são sucesso noutros lugares. Neste sentido, é bastante lógico que a maioria dos livros da lista dos mais vendidos seja de autores estrangeiros. Com isto, o espaço dado a autores nacionais de ficção é bem menor. Alguns podem dizer que não temos mais escritores de peso no Brasil, como um Jorge Amado, mas, por outro lado, talvez bons autores de ficção não estejam recebendo o devido espaço/investimento.
Site Franciscanos – Com tantos livros à disposição e tantas plataformas de autopublicação, qual o papel do editor atualmente no mercado editorial?
Frei Volney Berkenbrock – Quanto maior o número de obras e de formas de publicação, mais crucial se torna o papel do editor. Costumo dizer que há uma diferença entre livro e papel impresso em formato de livro. Livro é aquilo que tem leitores, que circula, que é comentado. Há milhares de exemplares de papel impresso em forma de livro, empilhados em depósitos (inclusive da Vozes), mas que não circulam nem encontram leitores. Neste cenário, o papel do editor é cada vez mais complexo e decisivo. Mas passou o tempo do editor que sabe das coisas e que é o guru. As decisões por publicação ocorrem hoje muito por processo de discussões onde sentam lado a lado editores, diretores, coordenadores de venda, especialistas de marketing, etc.
Site Franciscanos- O que é preciso para um produto atingir o êxito editorial no mercado?
Frei Volney Berkenbrock – Se alguém tiver esta fórmula, com certeza não irá revelar…
Site Franciscanos – Hoje, no mercado editorial se fala em mega-seller no lugar de best-seller. De que modo isso interfere na escolha de um novo título, principalmente pensando em autores estrangeiros? Quem são os mega-sellers da Vozes?
Frei Volney Berkenbrock – Claro que o sonho de uma editora é ter um produto seu na lista dos mais vendidos. Mas esta é apenas uma faceta do mercado editorial, a que mais aparece para o público. Entretanto não é a que mais ocupa a Editora Vozes e – creio – a maioria das editoras. A preocupação na Vozes ao discutir a publicação de um título vai muito mais na linha de por um lado examinar com cuidado o manuscrito ou a proposta de tradução e por outro lado pensar no público daquele tipo de conteúdo. Concretamente, pensar no leitor de espiritualidade, no estudante ou professor de teologia, no profissional de psicologia, no devoto de algum santo, no estudioso de filosofia e assim por diante. Uma publicação é viável se conteúdo e público se encontram. Não precisa, pois, ser um best ou mega-seller. Mas a Vozes tem, sim, seus mega-sellers. Em termos de produtos, a Folhinha do Sagrado Coração de Jesus é e continua sendo o campeão de vendas, com vendas em torno de 550 mil exemplares por ano. Ela é seguida pelo Encontro Diário com Deus, um livro com mensagens religiosas para cada dia do ano. Este livro, na edição de 2014, já ultrapassou os 400 mil exemplares vendidos num ano. Outro mega-seller é o Minutos de Sabedoria, que continua com vendas anuais acima de 200 mil exemplares.
Site Franciscanos – No ano passado, em entrevista ao “O Estado de S. Paulo”, Jason Merkoski, um dos membros da equipe da Amazon que desenvolveu o primeiro leitor de livros digitais Kindle, lançado em 2007, decretou o fim dos livros impressos em sua obra. Mas as vendas de tablets e leitores digitais estão se estabilizando sem que isso tivesse acontecido. Pelo visto, o crescimento do livro digital vai demorar?
Frei Volney Berkenbrock – Não tenho bola de cristal e por isso não sei se algum dia o livro digital irá substituir o livro impresso. Minha impressão é que não. Na realidade brasileira, o e-book ainda é apenas uma notícia e uma promessa. A tecnologia existe, existem milhares de títulos que já podem ser adquiridos em formato digital, mas o percentual de participação do livro digital no mercado do livro é ainda muito pequeno. A Editora Vozes também oferece títulos em formato digital (e-book), já desde 2011. Temos mais de 200 títulos em oferta nesta modalidade. Já tivemos inclusive um título livro na lista dos mais vendidos do Brasil no formato digital. Mas o percentual de participação deste formato no total de vendas da Vozes está ainda longe de chegar a 1%.
Site Franciscanos – Você acha que existe a possibilidade de o livro digital se popularizar?
Frei Volney Berkenbrock – Penso que pode ser sim uma tendência. Mas não acho que a popularização do livro digital ande na mesma velocidade e volume que a popularização das mídias para este fim. Estas têm centenas de outras funcionalidades que a de leitura de um livro. Penso que também será uma questão cultural. Novas gerações, que cresceram num mundo mais digitalizado, talvez tendam a tornar o livro digital mais popular.
Site Franciscanos – Segundo Robert Darnton, responsável pelo trabalho à frente da Biblioteca de Harvard, na História da Comunicação, uma mídia não toma o lugar de outra, mas elas vivem num tipo de co-habitação, que é mutuamente benéfica. Você acha que isso é possível entre os livros impressos e digitais?
Frei Volney Berkenbrock – Para nós hoje já está bastante claro que é necessário fazer uma distinção: um livro é um conteúdo. Este conteúdo pode ser apresentado em formatos diversos. O formato impresso é o mais conhecido, o mais popular e – de longe – o mais utilizado. Ao lado dele apareceram outros formatos: o áudio-livro, o livro digital, etc. No passado já tivemos outros formatos, dos quais atualmente quase ninguém mais ouve falar, como o livro em micro-filme. Há uma outra forma de disponibilização de livros hoje, talvez nem tanto conhecida do público geral, mas que tem um certo volume de comercialização, que é a venda fracionada de conteúdo, ou seja, venda apenas de partes ou capítulos de um livro. Isto é muito utilizado no ensino superior e acontece tanto em forma impressa (apostila) ou arquivo digital (que se disponibiliza para o tablet do aluno). Esta convivência de diversos formatos já existe e certamente continuará existindo.
Site Franciscanos – Ainda segunda Darnton, livros impressos em papel duram séculos. Já os livros digitais não duram tanto, devido às constantes mudanças tecnológicas que podem colocar a perder grandes acervos. Esse é um outro ponto a favor do livro impresso, não?
Frei Volney Berkenbrock – O formato impresso é, indubitavelmente, uma invenção genial. Ele tem inúmeras vantagens. O formato digital tem uma série de questões não resolvidas. As rápidas mudanças tecnológicas representam um sério problema. Quem garante que certo formato de arquivo digital será ainda legível por aparelhos produzidos daqui a cinco anos? Mas há outros problemas cruciais como o direito de posse, por exemplo, de um e-book. Onde ele deverá ficar armazenado? No aparelho pessoal? E se este queimar? No fornecedor, que deveria manter o acesso permanente ao usuário? Como identificar este usuário (para que só ele tenha acesso e não possa multiplicar o arquivo digital)? Pelo IP do computador? E se ele mudar de computador? Poderíamos assim continuar listando um monte de questões ainda não suficientemente resolvidas e que fazem o futuro do livro em formato digital ser ainda uma grande incógnita.