Notícias - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Entrevista: Frei Anselmo Fracasso

18/11/2011

Entrevistas

Encontro e conforto ao Assassino de seu pai

Em março de 1949, estando eu no seminário de Rio Negro, no Paraná, acamado por causa de uma forte gripe, recebi uma carta de um tio meu que dizia laconicamente: “Seu pai desapareceu e não temos a menor notícia dele!”.
Durante dois anos nossa família viveu uma dúvida atroz, ansiedade, angústias e muitas incertezas provocadas pelos boateiros sádicos, que sentiam prazer em torturar mais ainda quem já sofria tanto.
Anos depois foi desvendado o mistério. Meu pai estava em Salto Velozo, interior de Santa Catarina, onde exercia o ofício de ferreiro e o exercia com grande habilidade. No final de semana, tinha por hábito visitar seu irmão chamado Tranqüilo. Regressava sempre no domingo ao cair da tarde. Meu tio morava cerca de dez quilômetros fora da cidade. Certo dia, ao regressar, foi surpreendido e atraído numa emboscada, roubado e assassinado covardemente. O corpo sem vida foi escondido na terra dentro do mato. A polícia foi mobilizada e nada conseguiu apurar. Simplesmente foi dado como desaparecido.
Cerca de dois anos depois alguém comprou aquela terra e ao preparar o solo para o plantio encontrou ossos humanos. Comunicou o fato à polícia e esta ao chegar ao local recolheu os restos mortais, que depois foram reconhecidos como sendo do meu pai. Os suspeitos foram presos e confessaram o crime. Meu irmão Evaristo que faleceu no dia 15 de julho de 2001, foi até lá a fim de recolher os restos mortais e sepultá-los em nossa terra natal. A mala, que meu pai me deu quando fui para o seminário em janeiro de 1944, serviu para trazer seus restos mortais para casa. Lembro-me sempre das inúmeras vezes que meu pai, junto à cabeceira de moribundos, rezava com eles até chegar o desenlace final e depois fazia o sepultamento dos mesmos, rezando com o povo enquanto acompanhava o falecido à última morada. No entanto… ele morreu sozinho, sem ninguém ao lado, vítima da violência, sem ninguém que rezasse por ele. São coisas chocantes da vida que aceitamos, mas não compreendemos jamais.
Vinte e cinco anos mais tarde, em 1974, fui a Água Doce, perto do local onde meu pai foi assassinado, a fim de proferir palestras para jovens e para casais em toda a paróquia. Certa noite, depois de haver dado uma palestra aos casais, veio um senhor conduzindo o velho pai que já não enxergava e me disse: “Padre, meu velho pai não enxerga e não se conforma com isto. O senhor que sabe como é duro não enxergar, por favor, conforte meu velho pai”.
Conversamos longamente. Procurei animá-lo, confortá-lo e encorajá-lo. Ao longo da conversa ele me disse que havia ficado cego dentro da prisão, devido às pancadas recebidas na cabeça. É claro, não perguntei por que tinha sido preso, como se diz “em casa de enforcado, não se fala em corda”. Nos despedimos e ele saiu conduzido pelo filho.
Aproximou-se então uma senhora e me perguntou: “aqui perto, anos passados, mataram um homem que tinha o mesmo sobrenome seu. Por acaso, seria ele seu parente?”
Respondi: “Aquele homem era meu pai”…
Aquela senhora começou a chorar e entre lágrimas balbuciou: “Você acaba de consolar o homem que matou o seu pai”.
Como são maravilhosos os caminhos do Senhor. Nós nos agitamos, mas Deus nos conduz. Sem saber eu consolava o homem que há 25 anos havia tirado a vida de meu pai. A emoção me dominou e comecei a chorar. Há 25 anos aquele homem havia causado um grande sofrimento à nossa família e agora eu o animava, devolvendo-lhe a esperança, ensinando-o a encontrar um novo sentido da vida, dentro de uma existência sem luz. Pensando em tudo isso, naquela noite pouco dormi. Pedi a Deus que me iluminasse quanto ao procedimento que deveria adotar.
No dia seguinte, levantei-me com a disposição de ir ao encontro daquele homem. Dois senhores que sabiam onde ele morava conduziram-me à sua casa, um pobre barraco nos arredores da cidade. Estava ele sentado junto à porta da casa aquecendo-se ao sol. Pedi aos meus companheiros que o conduzissem a um local afastado da casa, para que pudéssemos conversar mais livremente. Sentados lado a lado, eu me apresentei como filho do homem a quem ele havia tirado a vida. Ele ficou nervoso, gaguejou, ficou agitado, não sabia o que dizer. Disse-lhe, então: “Meu amigo, eu vim em missão de perdão e de paz. Não estou aqui para me vingar nem para o maltratar. Eu quero apenas conversar e saber detalhes de tudo o que aconteceu”.
A muito custo ele começou a falar e aos poucos foi perdendo o medo e contou tudo o que havia acontecido. Fiquei sabendo de detalhes cruéis, requintes de maldade praticados contra uma pessoa indefesa. Enquanto ele narrava os pormenores do crime, tive ímpetos de estrangular aquele homem… Mas minha missão era de paz e de perdão. Depois de uma longa conversa consegui despertar, naquele coração endurecido, um misto de sentimento de culpa, de remorso e arrependimento. Orei com ele, pedindo perdão ao Senhor. Ao perceber que seu arrependimento era verdadeiro e sincero, ergui a mão para dar-lhe a absolvição, o perdão de Deus. Minha mão estava trêmula. Há vinte e cinco anos aquele homem erguia a mão empunhando uma faca para tirar a vida do meu pai, e agora eu erguia a mão para dar-lhe o perdão em nome de Deus.
Na tarde daquele dia rezei a missa e ele ficou perto de mim junto ao altar. Na hora da comunhão ele foi o primeiro a comungar. Novamente, minha mão tremia. Há vinte cinco anos ele erguia a mão para tirar a vida de meu pai e, agora, eu lhe estendia a mão para lhe dar Jesus, fonte de vida.
Ele trouxe a morte e eu lhe dava a vida. Depois disso uma profunda paz desceu sobre meu coração. O perdão é a maior prova de amor. Quem ama ao modo de Deus, perdoa tudo e perdoa sempre. Quem ama e tudo perdoa tem paz dentro de si, a paz que só Deus pode dar. O perdão nasce do amor. A paz brota do amor e do perdão, como a água pura e cristalina jorra da fonte.

Publicações de Frei Anselmo Fracasso
Deixei de enxergar e comecei a ver
7a edição – 2010
64 páginas, VozesRelato apaixonado de quem aprendeu a ver com outros olhos. Frei Anselmo relata seus 60 anos sem a visão dos olhos, mas com a visão da alma. Livro de leitura espiritual de quem não se deixa aprisionar por suas limitações físicas.Ajude seu filho a ser feliz
107 páginas, Vozes
34ª edição (2007)

O livro visa orientar os pais para um melhor relacionamento com os filhos, abordando o tema “Educação em família”. Segundo o autor, a base da educação cristã é dada pela família. A Igreja e a escola apenas completam o que os pais deram em casa.

Amor é vida
166 páginas, Vozes
19ª edição (2003)

Qual é o verdadeiro sentido do amor e como se pode vivê-lo? O amor não é apenas um sentimento, mas a origem, a fonte de todos os bons sentimentos da vida, pois saber amar é saber viver. O livro ensina também como cultivar o amor para que se possa crescer, desenvolver e perseverar. Conclui-se, finalmente, que a fonte de todo o amor é Deus.

Arte de viver feliz
88 páginas, Vozes
27ª edição (2008)

Este livro quer dar uma orientação no sentido de como encontrar a felicidade e de como conservá-la. O homem foi criado para ser feliz mas nem sempre sabe buscar a felicidade onde ela está. Antes de tudo, a felicidade não depende de realidades externas que nos cercam, mas de uma realidade espiritual que construímos dentro de nós

Desafio de Deus (Amar como Ele amou)
A resposta do homem (Ser como Ele é)
93 páginas, Vozes
5ª edição (2003)

Livro de formato pequeno, mas de grande solidez e densidade espiritual. Frei Anselmo, tarimbado mestre, cego desde quando ainda era estudante, superou os limites impostos pela deficiência visual, aguçando ao máximo a visão interior e hoje é procurado como conselheiro espiritual por muita gente aflita. Seus livros também levam luz, calor e conforto a muitas almas necessitadas de uma boa palavra. O desafio de Deus: Deus-Amor convida a criatura humana a tomar parte num jogo amoroso; a resposta humana só pode ser esta: ser como Deus é, amar como Ele ama.

Família Feliz – Para viver em paz e harmonia
80 páginas, Vozes
15ª edição (2004)

Um livro destinado aos casais que queiram ter êxito no amor e no casamento. Destina-se também aos jovens que se preparam para o casamento. Segundo o autor, muitos casais se separam por não saberem cultivar o amor. Por falta de diálogo e busca partilhada de solução dos problemas de relacionamento surgem normalmente os desencontros na vida conjugal.

Grandes lições dos Pequenos (as)
88 páginas, Vozes
2ª edição (2002)

Numa abordagem quase poética, a autora observa as atitudes das crianças em relação às dos adultos e mostra o quanto a criança é o que é e a seu modo expressa a realidade do seu interior enquanto os adultos quase sempre mostram externamente uma realidade que não existe por dentro dele. O objetivo do livro é mostrar que os adultos têm muito o que aprender com as crianças.

Para viver em paz, alegre e feliz
64 páginas, Vozes
3ª edição (2006)

O autor traz sugestões nascidas de sua experiência de vida para auxiliar os leitores a encontrar a paz, a alegria e a felicidade.

Gotas de Vida
Idéias que iluminam a mente
22ª edição
2002, Vozes

O autor, viajando a bordo de aviões, em ônibus que rodam pelas estradas ora poeirentas, ora asfaltadas, ia meditando, refletindo sobre tudo quanto tinha ouvido. “Bebemos a vida lentamente, gota a gota. Cada instante que passa é uma gota de vida que pinga”.

Sou feliz porque papai e mamãe se amam
Lições de vida e amor
Paulinas, 2004
175 páginas

Grande defensor da família e dos valores cristãos e humanos, os quais estão presentes em suas obras, como esta.
A mais rica dádiva dos pais proporcionada aos filhos é o amor de um para com o outro e de ambos para com os filhos.

A criança e a flor nos dão lições de amor
Vivências de ternura
Paulinas, 2004
118 páginas

Este livro nos faz acompanhar e sentir uma série de situações benéficas ou prejudiciais, ocorridas na vida das flores e das crianças, que não só desperta na alma dos leitores sentimentos ora de alegria, ora de frustração, como também estimula os propósitos de fazer o bem e amar a Deus e ao próximo.

Mensagem de Fé e Esperança de Amor e Paz
Editora Santuário, 2009
86 páginas

Livro homenagem a Helen Keller, para que à luz de suas ideias ilumine os homens na busca da reabilitação e integração social de todos os deficientes físicos.

No exterior, Frei Anselmo Fracasso tem livros publicados nos seguintes países:

Alemanha – “A Arte de viver feliz” – Editora São Bento

Argentina – “A Arte de viver feliz” – Editora Lúmen

Peru – “A arte de Viver feliz” – Paulus

Venezuela – “Sou feliz porque papai e mamãe se amam” e “A criança e a flor nos dão lições de amor”– Paulinas

México –  “A arte de viver feliz”, “Amor é vida”, “O desafio de Deus e a resposta do homem”, “Para viver em paz, alegre e feliz”, “Gotas de vida”, “Família feliz, para viver em paz e harmonia”, e “Ajude seu filho a ser feliz”. Editora Nueva Palavra

Tomo a liberdade de pegar emprestado o título do livro de Frei Anselmo Fracasso “50 anos de luz nas trevas – Deixei de enxergar e comecei a ver” para esta entrevista. Frei Anselmo, o Mestre Espiritual como todos o conhecem, é essa luz que brilha no Convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro. Diariamente, sentado no Salão de Atendimento ele ouve as confissões, com calma e tendo sempre uma palavra de incentivo e esperança. Nem sempre precisa passar a palavra. Sua vida é uma lição. Isso também pôde ser visto na sua pregação durante a 329ª Trezena de Santo Antônio, quando emocionou as pessoas ao falar sobre a vida.  Foi depois das confissões, numa manhã, que Frei Anselmo me recebeu, com alegria e disposição, para contar um pouco de sua vida e sua missão. Principalmente, a determinação para superar a falta da visão. “Quando todas as portas pareciam irremediavelmente fechadas, Deus me abria uma nova porta e me apontava um novo caminho a seguir”. Nesta entrevista, Frei Anselmo fala desse sofrimento quando estava na flor da juventude, relata o encontro com o assassino de seu pai e o encontro com Helen Keller, sua mestra espiritual, fala de seus estudos até conseguir se ordenar sacerdote, comenta a crise familiar e de vocações na Igreja, e insiste no sacramento da confissão como um caminho para o perdão e a graça de Deus.

Acompanhe!   

Por Moacir Beggo

A PERDA DA VISÃO

Site – O seu livro “50 anos de luz nas trevas; deixei de enxergar e comecei a ver” está na sétima edição pela Vozes. O Sr. pode falar sobre este título?
Frei Anselmo – Enxergar é uma coisa física, material, que se faz através dos olhos físicos. Com eles, enxergamos a cor, a forma, a distância, a matéria. Ver é encontrar a mensagem naquilo que nós enxergamos. Por exemplo: em tantas noites de lua cheia, com a sua claridade, enxergamos muitas coisas. Agora, ver é aprender a lição da lua. Ela recebe a luz do Sol e reflete na terra, dissipando as trevas da noite. E nós recebemos de Deus a luz intensa, o amor divino, então é necessário refletir para os irmãos, amando-os ao modo de Deus. Retribuir no próximo o que Deus faz por nós. Outra lição: você vê tantas vezes uma flor. Admira a beleza, a forma, enxerga apenas. Agora, ver a flor, lembrar que ela nos dá uma lição de amor, que oferece tudo de si sem cobrar nada em troca para o beija-flor, para a borboleta, para a abelha com o néctar e, para nós, com a beleza, o perfume, o encanto e a graça. Assim é o amor. Dá tudo isso sem pedir nada em troca. E mais: a flor se abre bela, pura e perfumada à luz do sol. No entanto, as raízes estão na imundície da terra, do esterco. Essa imundície junto às raízes não contamina a beleza, o perfume. E assim nós, em qualquer ambiente, podemos crescer puros e altivos em qualquer ambiente. Ver é encontrar sentido nas coisas que enxergamos. Tudo tem sentido.

Site – Como foi a experiência de ficar sem a visão.
Frei Anselmo – É claro, na hora em que você perde a visão, o choque é muito grande, porque está habituado a viver em função da visão física. De repente, está sem ela. É como se todas as portas se fechassem à sua frente. Mas, aos poucos, outras portas se abriram. Como a Helen Keller escreve. Muitas vezes ficamos a olhar tanto tempo para a porta fechada que não vemos a outra que se abriu para nós. Então, as portas foram se abrindo: aprendi o método Braille e fiz o curso de locomoção em São Paulo. Nesse tempo, aprendi que tudo o que eu posso fazer, faço sem pedir ajuda a ninguém. E quando precisar de alguém, basta ter a simplicidade de pedir. Nesse ponto, Frei Ludovico de Castro me deu uma grande lição de vida. Quando os médicos, em São Paulo, deram a última palavra dizendo que a minha cegueira era irreversível, ele viu minha dor profunda e respeitou. Ficou dois ou três dias sem falar nada. Depois, me chamou e me disse assim: “Agora, você conhece a verdade. Você vai construir a sua vida a partir da cegueira e com ela. E não a partir da ilusão de que um dia você possa enxergar”. Que sabedoria! E o Frei Cipriano Chardong, que era nosso Reitor em Agudos, viu a minha tristeza e desânimo, colocou a mão no meu ombro e falou assim: “Não fique triste! Se Deus quer você como padre, você vai ser padre. Com a vista ou sem vista. Mas agarre bem à Nossa Senhora das Graças!”. Naquela época ninguém poderia imaginar que um padre fosse cego. Inclusive, o Direito Canônico proibia.

Site – O sr. é o primeiro caso no mundo?
Frei Anselmo – No Brasil, sim. Sou o segundo do mundo. Na Alemanha existia o primeiro.

Site – O sr. já estava terminando o Ensino Médio em Agudos?
Frei Anselmo – Sim, estava terminando o Científico, como era chamado na época, e se preparando para ingressar no Noviciado.

Site – Hoje, a medicina teria a cura para o seu problema?
Frei Anselmo – Teria. Foi uma bactéria que eu contraí bebendo uma água contaminada num passeio que fizemos em Agudos, numa fazenda em Coronel Leite. Havia um poço à beira do pântano e de uma estrebaria. Pegamos a água com o balde e todos beberam. Depois que bebi, comecei a sentir dores na barriga, como se tivesse engolido agulhas. Uma semana de febre de 40 graus. Quando ela terminou, começaram a aparecer os sintomas, como a vista turvada. O médico me explicou que, provavelmente, na água que bebi estava a “colônia” mais forte de bactérias. Ou então que o meu organismo estava com menos defesas. Entrou no sangue e se alijou na córnea, na retina, íris… Deu aquela doença chamada uveíte. Naquele tempo só tinha penicilina. E a bactéria resistiu à penicilina e, só em 1957, é que a tetraciclina eliminou a bactéria. Mas o estrago estava feito. Como o bombeiro vai lá, apaga o fogo, mas o que queimou, está queimado!

Site – O começo sem a visão numa cidade como São Paulo deve ter sido um grande desafio?
Frei Anselmo – Sem dúvida. Mas tive muito apoio dos frades do Convento São Francisco (SP): Frei Heliodoro, Frei Ludovico, Frei Olavo que está ainda aqui. Me apoiaram muito. Depois, a Fundação para o Livro do Cego no Brasil, que agora é Fundação Dorina Nowill para Cegos, também me ajudou muito, inclusive para o estudo. Eles copiaram em Braille os livros de filosofia e teologia para mim. Só que, naquele tempo, a Fundação funcionava no Trianon, no viaduto Nove de Julho. Só em 57, o prefeito Jânio Quadros fez aquela casa lá na rua Diogo Faria, na Vila Clementino.

A VOCAÇÃO E O ASSASSINATO DO PAI

Site – Como nasceu a sua vocação.
Frei Anselmo – Minha vocação foi motivada pelo exemplo de um frade. Eu nasci no Rio Grande do Sul, em Baliza, que era paróquia franciscana de nossa Província. Ali comecei como coroinha. Eu e mais cinco. Nesta época havia um frade alemão, Frei Celestino, que me chamava muito a atenção, pelo exemplo dele, a maneira como ele rezava missa, a piedade, o modo de acolher o povo, a bondade dele. Tudo isso despertou em mim a vontade de ser como ele. Dos cinco coroinhas, quatro foram para o seminário e três ficaram padre. Eu, Frei Euclides e o terceiro que foi para os camilianos. O quarto saiu no seminário. Na época, Frei Celestino veio aqui para pregar um retiro, mas estourou a guerra na Alemanha e só pode retornar ao seu país em 58.

Site – Quantos anos tinha quando entrou no Seminário?
Frei Anselmo – Com treze anos. Fiz treze de 31 de outubro em 43 e, em janeiro de 44, entrei para o seminário de Luzerna (SC). Depois fui para o Seminário de Rio Negro, onde fiquei de 46 a 49, até seguir para Agudos em 50. Fiz parte da primeira turma do Seminário, que ainda estava em construção.

Site – Fale de sua família, frei?
Frei Anselmo – Na minha família éramos 11. Agora, tenho um irmão e duas irmãs. Meu pai foi assassinado covardemente e, 25 anos depois, encontrei-me diante do assassino de meu pai em Água Doce (veja o depoimento ao lado). Uma coisa que sempre admirei muito em minha mãe é que ela não sabia ler e escrever, mas sabia educar os filhos. Ela só ensinava. Outra coisa que aprendi com meus pais: não desperdiçar alimentos.Se deixasse comida no prato, ela guardava para o jantar. Se comesse aquilo, ganhava outro. Se não, não ganhava. Dava-se valor às pequenas coisas. Quando fui para o Seminário, ela só me deu um conselho que nunca mais me esqueci: reze muito e não seja xereta. Xereta no sentido de fofoqueiro…

OS ESTUDOS E O ENCONTRO COM HELEN KELLER

Site – Como fez os estudos de Filosofia e Teologia?
Frei Anselmo – Em 1952, eu já tinha a documentação para entrar na Ordem Franciscana, ingressando no Noviciado. Quando o Provincial, Frei Heliodoro Müeller, foi a Roma e pediu ao Ministro Geral, Agostinho Sepinski, licença para eu entrar na Ordem, ele disse “não”. Só se ele fizesse os estudos. Eu tinha que mostrar que era capaz. No começo achei uma coisa chata, depois vi aquilo como uma bênção, um desafio. O Definitório me autorizou a fazer Filosofia e Teologia como leigo. Quando terminei os cursos, em 59, eles mandaram para o Ministro Geral Sepinski a conclusão dos meus estudos, que foi excelente, e, imediatamente, ele me autorizou a entrar no Noviciado, que se deu no dia 19 de dezembro de 1959. No ano passado, celebrei 50 anos de vida franciscana.

Site – Mas como já tinha os estudos, foi ordenado logo, não?
Frei Anselmo – Quando acabei o noviciado, vim para o Rio fazer o último ano de Teologia Pastoral. Fiz o curso no final de 61 e depois tinha de fazer os votos perpétuos para ser ordenado. E conseguimos licença, da Ordem, para antecipar por um ano e quatro meses os votos perpétuos. Fiz os votos perpétuos no dia 30 de agosto de 1962 e, no dia 4 de outubro, me tornei padre. Tudo muito rápido.

Site – E quanto tempo está aqui?
Frei Anselmo – No dia 9 de fevereiro completei 49 anos neste Convento. Como padre, vou fazer 50 anos em 2012.

Site – Como conferencista, o Sr. é conhecido no Brasil todo?
Frei Anselmo – Viajei para todos os estados. Só não conheço Amapá e Roraima. Uma coisa muito interessante me aconteceu em 64. Fui para Araçuaí, onde está Dom Severino Clasen. Saí do Rio nas asas de um avião e cheguei lá no lombo de um burro (risos). Eu fui até Belo Horizonte de avião. Lá, eu peguei trem para Montes Claros. Depois fui de ônibus até São Francisco. Em São Francisco me esperavam com um jipe, mas chegando lá, havia chovido muito e, para atravessar um riacho, que havia transbordado, precisamos de uma canoa. Do outro lado me levaram no lombo de burro. Ou seja, peguei avião, trem, ônibus, jipe, canoa e burro. Araçuaí ainda não era diocese. Fui dar uma palestra no colégio das Irmãs Clarissas Franciscanas, que não são enclausuradas. Acho que não estão mais lá.

Site – O Sr. fala muito da Helen Keller. Qual o papel dela na sua vida?
Frei Anselmo – Ela esteve no Brasil duas vezes. Uma vez em 43, não tinha ainda noção de nada, e depois na segunda vez, ela veio em 1953, quando eu estava em São Paulo. O exemplo de vida dela é muito forte. Cega, surda e muda e ela venceu. Isso me estimulou muito. Dizia para mim mesmo: “Se ela perdeu três sentidos e venceu, eu perdi apenas um e posso também vencer. Conversei com ela pessoalmente. A sua secretária batia num código especial na mão dela e ela respondia. Depois a secretária me traduzia. Para mim foi um exemplo de vida que me deu muita força mesmo! Ela surgiu na minha vida na hora agá. Por isso, tenho muita admiração por ela e escrevi este livro “Mensagem de Fé e Esperança, de Amor e Paz”, que são pensamentos dela.

Site – O sr. colheu estes pensamentos nas palestras dela?
Frei Anselmo – Nos livros dela: História de Minha Vida; Otimismo; O mundo em que vivo; Minha religião; Minha vida de mulher; Vamos ter fé; e A porta aberta.  O último, a “Porta Aberta”, é um resumo de suas ideias. Dele, eu tirei esses pensamentos.

PREOCUPAÇÃO COM A FAMÍLIA

Site – Pelos livros, vi que o Sr. é muito preocupado com os valores familiares?
Frei Anselmo – Muito, muito mesmo. Escrevi três quatro livros – “Ajude seu filho a ser feliz”, “Família feliz – Para viver em paz e harmonia; “Sou feliz porque papai e mamãe se amam”; e “A criança e a flor nos dão lições de amor”. São quatro livros sobre a família, que escrevi a partir da experiência, ouvindo os relatos de casais e filhos.

Site – Como está a família hoje?
Frei Anselmo – A maior praga da sociedade moderna é a desagregação da família. No Brasil, temos 37 milhões de crianças e adolescentes sem aconchego de um lar. Pais que vivem em desarmonia, ou que vivem separados, filhos de mães solteiras. No Brasil, são 27 milhões de filhos de mães solteiras. Para crescer bem, a criança carece do carinho dos dois. Se ela tem isso, cresce uma criança alegre, feliz, tranquila. Muitas vezes, a criança fica doente por falta de amor em casa.

Site – Sem essa base, os filhos buscam outras compensações nas drogas?
Frei Anselmo – Inclusive, estou recolhendo dados para fazer um livro das causas da violência. Geralmente, elas são apresentadas superficialmente. Existe uma visão míope da realidade. Geralmente apontam pobreza, desemprego, fome e miséria. Conheço muitos pobres, famintos, desempregados, mas que têm Deus no coração. A grande causa de todas as violências é a exclusão de Deus na vida. A família que não se preocupa com isso, pelo menos na infâcia, até os 7 anos, depois vai ser difícil na fase adolescente e adulta. Nós somos na idade adulta o que fomos até os 7 anos, quando o cérebro estava em formação. E outra coisa que se fala pouco é do que a mãe sente na gravidez. Existe prova científica de que tudo o que a mãe sente a partir do terceiro mês passa para o subconsciente da criança. E quanta mulher tem a gravidez rejeitada, desenvolvida num ambiente de ódio, de brigas e de desarmonia? Tudo isso passa para a criança, que nasce marcada pela violência.

CRISE DE VOCAÇÕES E O SACRAMENTO DA CONFISSÃO

Site – Hoje, se fala muito em crise de vocações na vida religiosa. A que se deve isso?
Frei Anselmo – Nesta crise de vocações, a primeira causa está na raiz da família. É na família que se vive a fé. Numa família realmente piedosa, que reza, e está estruturada em Deus. É dessas famílias que surgem as vocações. Então, quando a família está se desagregando, falta esta base, por isso há falta de vocações. Depois, a perseverança diminui por quê? Porque não trouxe aquela base da família. O colégio pode oferecer muita coisa, mas a base de tudo é a família, aquilo que aprendi de meus pais na vivência cristã. E a terceira causa é que a formação está um pouco deficiente. Me lembro sempre dos nossos professores no Seminário – Frei Tadeu, Cipriano, Frei Virgílio – como eles estruturavam a vocação na piedade, na oração, no Evangelho. Então, acho que está faltando essa base espiritual, de voltar-se inteiramente para Cristo. Mas se a família não dá, o Seminário também não dá.

Site – O bispo Dom Hilário Moser disse que basta o testemunho para uma pastoral vocacional?
Frei Anselmo – A maior força evangelizadora do padre e do frade é o testemunho de vida. A maneira como ele acolhe o povo, atende o povo. Testemunho de vida é a grande força da evangelização. Não adianta teorias se não houver a prática. Nós evangelizamos muito mais por aquilo que somos e fazemos do que por aquilo que falamos. Então, a necessidade de ter um esforço profundo para viver aquilo que nós anunciamos pela palavra. Se a pessoa vem aqui para se confessar e eu  atendo mal, sou grosseiro, ríspido, não deixo a pessoa falar, estarei dando um contra-testemunho. Quem vem confessar, a primeira coisa que quer é desabafar. É botar para fora o que ele sente. Então, a confissão bem feita é uma terapia, psicológica e espiritual. A pessoa desabafa, depois é orientada e leva a certeza do perdão. Isso é fundamental. Quando Jesus instituiu a confissão, ele criou o primeiro laboratório de psicanálise. Mas o padre tem que ter paciência, saber escutar, saber dar a resposta certa e despertar no penitente aquela certeza, aquela confiança na misericórdia de Deus. Sair da confissão certo de que foi perdoado.

Site – Nesses 49 anos, atendeu muitas confissões neste Convento?
Frei Anselmo – Perdi a conta. E não só aqui, mas em diversos lugares. Acho que o trabalho mais eficiente e que mais atinge a pessoa é através do sacramento da penitência. É quando você vê o problema de cada um individualmente. Numa palestra você transmite conhecimentos de um modo geral para todos. Na confissão, você conhece o problema individual e pode dar a orientação exata para cada um.

Site – Mas por que hoje se procura menos a confissão?
Frei Anselmo – Infelizmente muitas paróquias preferem a confissão comunitária, inclusive não seguindo as normas da Igreja. Porque só em certas ocasiões pode haver confissão comunitária. Eles fazem frequentemente. Se a pessoa está arrependida, e com propósito de emenda, claro que vai ser perdoado. Satisfaz ao aspecto espiritual, que é o perdão do pecado, a graça de Deus. Mas não satisfaz o aspecto psicológico, que é o desabafo, a orientação individual e a certeza do perdão. E o aspecto psicológico é muito importante. Inclusive aquele discípulo de Freud, Adler Jung, reconhece o valor psicológico da confissão, dizendo assim: “A melhor psicanálise é feita nos confessionários da Igreja Católica, onde o penitente – ele fala o paciente -, desabafa, é orientado e leva a certeza do perdão. Nós podemos ouvir o desabafo, podemos orientar, mas não podemos dar o perdão. E o complexo de culpa é a maior fonte de neuroses”. Ele reconheceu o valor da confissão e nós muitas vezes ignoramos. Esse abuso das confissões comunitárias, só para não ter o atendimento individual, esquece este aspecto.

MENSAGENS

Site – Deixe uma palavra de alento para as pessoas que têm deficiências físicas.
Frei Anselmo –  Primeiramente temos de lembrar que todos os seres humanos tem limitações. Nem tudo é possível a todos. Mas cada um pode alguma coisa. Cada um, com clareza, pode buscar o que está ao seu alcance. Não desistir. Ser determinado: Eu posso, eu quero, eu consigo. Mas antes de ter essa determinação é necessário a clareza de pensamento. É necessário a pessoa saber o que ela quer e que está ao seu alcance. Por exemplo, não posso dirigir carro. Então, o deficiente tem que saber quais são as suas limitações e fazer delas um caminho. O ser humano só será derrotado quando abandonar a luta. A deficiência não é uma barreira. É um limite que aponta outros caminhos. É preciso ver os outros caminhos que surgem!

Site – Uma mensagem para o jovem que quer ser frade.
Frei Anselmo – A primeira coisa que ele precisa ter é essa atitude de doar a vida inteiramente a Deus. Doar-se pela causa do Evangelho, para evangelizar e ter sempre Deus como ponto de referência. Sempre meditar essas perguntas: o que Deus quer de mim? O que Deus quer eu faça? O que Jesus faria no meu lugar? O que posso fazer de bom pelos outros. Depois, ter determinação: eu posso, eu quero, eu consigo. Ir à luta. Agora, a luta só terá vitória se tivermos ligados profundamente a Deus. Deus é a única força. Pelo amor a Deus, fazer o que agrada a Deus e pelo amor fraterno fazer aos irmãos o que é bom aos olhos de Deus. Não se preocupar se agrada aos homens ou não. Isso é secundário. Importa fazer da minha vida uma doação.

Site – Por último, uma mensagem a todas as pessoas.
Frei Anselmo – Colocar um grande amor em tudo o que fazemos. Tudo o que fazemos, os menores gestos, as menores obras feitas com amor são muito grandes aos olhos de Deus. Colocar um grande amor em tudo que damos, porque o amor com que damos enriquece a dádiva que oferecemos. E dentro desse contexto, para ter calma, viver tranquilo, dou o segredo da alegria: trabalhar com amor e cultivar o bom humor. Este é o grande segredo da serenidade, da paz, da tranquilidade e da felicidade.