Dois anos depois de sua nomeação para a Prelazia de São Félix do Araguaia, Dom Frei Leonardo Ulrich Steiner, franciscano da Província da Imaculada Conceição, fala da realidade que já conhece: suas preocupações e alegrias. Num território de 150.000 km², com uma população de mais ou menos 210.000 habitantes, Dom Leonardo conta apenas com sete sacerdotes, três diáconos permanentes, 27 religiosas e religiosas e oito leigos em tempo integral, enquanto os problemas pipocam em todos os lados, como desmatamento, queimadas criminosas, comércio de terras, desinteresse do Incra e trabalho escravo. Nesta entrevista que concedeu à Revista “Ir ao Povo” e cedeu gentilmente ao site Franciscanos, aos 56 anos, Dom Leonardo também fala da mobilidade muito grande das famílias na região do rio Araguaia. “As famílias chegam e partem. Essa mobilidade gera famílias desenraizadas social e culturalmente, mas também pobreza e violência nas cidades de nossa região”, explica o bispo franciscano. Confira!
Quais são as dores e as alegrias de ser um bispo da Igreja Católica?
Dom Leonardo As alegrias e as dores pertencem à vocação. Gostaria de falar mais das preocupações do que das dores. Preocupação com as nossas Comunidades pedindo formação e aprofundamento sem poder atendê-las adequadamente, por exemplo, o aprofundamento da Palavra de Deus. O pedido das Comunidades de celebrarem mais frequentemente a Eucaristia e termos um número muito reduzido de sacerdotes. As distâncias entre as cidades e as Comunidades que dificultam a minha visita, a minha tarefa de animar e confirmar as Comunidades. Também diante das distâncias, o número reduzido de agentes pastorais que possam ajudar as pessoas no aprofundamento da fé e na autonomia da vida de fé das Comunidades. A falta de uma pastoral familiar. A agressão aos povos indígenas, especialmente a situação grave e gritante em que vive o Povo Xavante na Aldeia Marãwatsede. A realidade dos assentados (60.000) que vivem sem uma infra-estrutra básica que dê perspectivas de futuro. O desmatamento desenfreado tendo como conseqüência o assoreamento dos rios. As queimadas criminosas, o comércio das terras, o desinteresse do Incra, o trabalho escravo. É um rosário de preocupações que a cada dia a Palavra de Deus vai iluminando, alentando, cuidando para não cair no desânimo ou na violência. Alegrias? São maiores e mais de raiz. Vou mencionar apenas algumas. A fé do sertanejo e das pessoas que tem a Deus como consolo e refúgio. Os festejos com suas rezas e símbolos. Os leigos que na catequese, na liturgia, na pastoral da criança, grupo de terceira idade, nos sindicatos, servem alimentados pela Palavra de Deus. A celebração com as Comunidades e perceber como nas palavras e nos gestos as pessoas expressam a proximidade de Deus. O desejo dos leigos que participam da vida das Comunidades de aprofundarem a sua fé. O resgate dos Povos Indígenas com o trabalho perseverante e cuidadoso do CIMI. Ouvir as histórias, as poesias e os contos do povo. Viajar de barco pelo rio Araguaia para visitar as Comunidades. A viagem abre um espaço mais livre para a meditação, a oração, a leitura. O cuidado pelas crianças! São poucas as crianças que vivem abandonadas. É profundamente realizador animar, levar esperança, anunciar a paz, lutar pela justiça.
O que é ser um missionário, hoje?
Dom Leonardo Anunciador do nascimento de Deus! Anuncio que nasceu para vós o Salvador! Ser anunciador da inefabilidade e proximidade de Deus com o nascimento de Filho de Maria. A delicadeza de Deus de vir habitar entre nós assumindo a nossa humanidade e fragilidade. Não é grandioso anunciar que Deus nasceu e que está no meio de nós?
Anunciador da morte de Deus! Nós anunciamos o Crucificado! Deus em Jesus Cristo assumiu a finitude humana, e na sua morte deu sentido à nossa finitude. Na morte, Ele penetrou todas as realidades dando um novo horizonte e sentido à existência de cada ser humano. Assumindo a nossa humanidade Deus nos mostrou a grandiosidade da limitação humana. A limitação, a finitude, tornou-se a chance de nossa realização. Nela acontece a nossa transformação de toda a nossa pessoa. A grandeza de um amor pendente na Cruz visibiliza essa grandeza humana.
Anunciador da ressurreição do homem-Deus! Se Cristo não tivesse ressuscitado vã seria a nossa fé. A transformação de todas as realidades! Anunciamos na ressurreição a transformação, a transfiguração de nossa vida em Jesus Cristo. Anunciamos a morada definitiva e a nossa pertença à vida da Trindade.
O missionário é, portanto, anunciador do Amor que não é amado, como dizia São Francisco de Assis. Amor que em Jesus Cristo também quer dizer: amar os inimigos, amar aos que nos perseguem, nos batem na face. O missionário anuncia a gratuidade do amor manifestado em Jesus Cristo que é preferencialmente amar aos que não nos ama. A Encíclica de nosso Papa nos lembra que Deus é caridade.
Para a Igreja Católica, missão implica em conquistar novos fiéis?
Dom Leonardo A Missão da Igreja Católica é a sua vocação. A sua vocação é o mandato deixado por Jesus Cristo: Ide e ensinai; batizai em nome do pai e do Filho e do Espírito Santo. Ela é chamada a anunciar uma novidade: a presença de Deus no mundo na pessoa de Jesus Cristo. Deus nos amou de modo tal que enviou seu Filho ao mundo, nos diz São João. Anunciamos como Igreja essa grandeza e nobreza de Deus. O anúncio pode abrir a pessoa ao desejo de corresponder a esse amor, de corresponder ao gesto amoroso, tomando Jesus Cristo como caminho verdade e vida, de seu itinerário existencial! Então, conquista no sentido de ter sido conquistado pelo Amor que nos amou primeiro, visibilizado no Filho Jesus. A conversão tem esse toque sagrado de encontro deixando toda a vida convergir para Jesus Cristo e d’Ele emergir todos os sinais e forças para a transformação da pessoa até que Ele seja em mim e eu seja nele.
A Missão da Igreja de batizar a todos implica no anúncio da delicadeza de Deus em fazer-se homem e recordar a dignidade de Filho de Deus. Não se trata de uma conquistar, mas de um anúncio, de uma boa nova. Batizar a todos com o anúncio da proximidade de nosso Deus. Não se trata apenas de aumentar o número dos participantes, mas que todos possam receber a extraordinária novidade do Deus-homem, Homem-Deus, no meio de nós.
Fazer parte da Igreja, isto é, da Comunidade daqueles que se reúnem em torno da Jesus Cristo, é bem outra coisa que assumir somente uma norma, uma obrigação, um rito, um comportamento ético. Uma conquista, um proselitismo, de simples aumento de participantes, não conduziria a uma mudança de vida, a uma existência que fosse iluminada pelo evento maior de nossa fé: Jesus Cristo. Não seria ainda a expressão da Comunhão dos Santos. |
Quais são os principais desafios da missão em sua diocese?
Dom Leonardo Cada região, cada Diocese tem seus desafios. A extensão da nossa Prelazia de São Félix do Araguaia é de 150.000 km² com uma população de mais ou menos 210.000 habitantes. Como atender as Comunidades que vivem muito distante uma das outras, especialmente, as Comunidades do sertão?. Temos 62 Assentamentos com uma população calculada em cerca de 60.000 pessoas. Como atender as Comunidades dos Assentamentos que sofrem sem a infra-estrutura básica de sobrevivência? Por ser uma região de migração, a mobilidade a integração traz sempre certa tensão, também dentro das Comunidades católicas.As Comunidades de nossa Prelazia são animadas por 7 sacerdotes, 3 diáconos permanentes, 27 religiosas/os, 8 leigos em tempo integral. As dimensões e o número das Comunidades exigem uma presença muito maior junto às Comunidades na formação especialmente da catequese e da celebração da Palavra de Deus e da celebração da Eucaristia. Continuar na formação para uma fé adulta, iluminadora da existência humana, dando sentido, perspectivas também às dores e aos sofrimentos.
Como formar quando faltam pessoas e meio financeiros?
Dom Leonardo Temos oficialmente 4 povos indígenas: Karajá, Tapirapé, Xavante e Maxacali-Krenak. Como ser presença anunciadora sem impor com a fé uma cultura? Mas também como anunciar ajudando no resgate e fortalecimento da identidade de cada povo.
A necessidade de uma mais justa distribuição das terras junto com uma exigência maior de cuidado com o meio ambiente.
A nossa região é considerada a região com o maior índice de hanseníase no Brasil, apesar do trabalho importante já realizado. Não posso deixar de lembrar que o jovem tem poucas oportunidades não só quanto ao trabalho, mas também quanto ao estudo e o lazer. Nesse sentido gostaria de lembrar também a falta de bibliotecas nos 15 municípios. Desejo no próximo ano iniciar uma campanha para criarmos 10 pequenas bibliotecas na região de nossa Prelazia. O livro abre horizontes, abre a mente, alarga o coração, constrói mundos e vê o céu.
O fenômeno da grande mobilidade religiosa nos tempos atuais preocupa a Igreja? Ou preocupa o senhor?
Dom Leonardo Temos na nossa região não apenas a mobilidade religiosa, mas também a mobilidade social. A população em nossa Prelazia torna-se lentamente mais estável e começa ter perspectivas de vida. No entanto, a impossibilidade de viver dignamente na maioria dos Assentamentos existentes na Prelazia tem como conseqüência uma mobilidade muito grande. As famílias chegam e partem. Essa mobilidade gera famílias desenraizadas social e culturalmente, mas também pobreza e violência nas cidades de nossa região. A mobilidade religiosa nos leva a refletir sobre o nosso ser Igreja. A nossa presença como agentes de pastoral, como sacerdotes, religiosas e bispos. Interrogamos o nosso modo de anunciar no passado e no presente para sondar o tipo de encontro que houve com a pessoa de Jesus Cristo. A apresentação de outras concepções de Deus e do próprio cristianismo leva, muitas vezes, a outras opções que não seja a nossa. O mesmo pode-se dizer quanto às outras religiões, não apenas quanto ao cristianismo.
Não podemos esquecer que no tempo da ciência e técnica vivemos da comprovação, dos resultados, da experiência comprobatória. Também quanto à religião tudo precisa ser palpável, até através de “milagres”. Precisaríamos aprofundar como a compreensão da ciência e da técnica poderia trazer mais nitidez à questão da fé e às expressões que chamaria exteriores de uma busca religiosa.
A mobilidade religiosa poderia questionar, também, as nossas relações como Comunidade de fé. Às vezes tenho a impressão que nos faltam relações pessoas mais significativas, mais partilha da experiência da Palavra de Deus e da Eucaristia. O Deus que anunciamos não é uma idéia, uma moral; anunciamos e vivemos da pessoa Jesus Cristo. As relações inter-pessoas deveriam partir desse evento, do encontro. O fenômeno da mobilidade preocupa sim, no sentido de ocupar-me com a razão de minha fé, a razão de sermos Igreja.
Qual o anseio profético que o senhor sente mais fortemente em sua realidade?
Dom Leonardo Ser profeta é um chamado. Não se é profeta porque se deseja ou se fez a opção de sê-lo. O profeta é chamado, é vocação. O tempo e a caminhada na Prelazia suscitarão esse anseio profético. Assim mesmo, as injustiças, a morosidade da justiça, o descuido com a causa dos pequenos, o descaso com a causa indígena, a falta de ética e a corrupção no meio político, o não cuidado com a terra e as águas, fazem com que as palavras proclamem a inquietação do coração. |