Celebrando o mês de outubro nos becos da Rocinha
16/10/2018
Frei Sandro Roberto da Costa, OFM
Andar pelos becos e vielas da Rocinha é sempre uma aventura. Pode-se encontrar de tudo. Apesar da pobreza e da miséria, que se agravam a cada dia, há sobretudo muita vida e alegria, com crianças brincando e correndo em meio aos obstáculos, montes de areia, tijolos e entulhos, ao lado de muito lixo e esgoto a céu aberto, principalmente nos cantões onde a pobreza brada aos céus, como na Macega e na Roupa Suja. Cães e gatos são parte do cenário, convivendo numa franciscana harmonia. Fazendo um cálculo grosseiro, deve haver uns dois ou três cães e gatos por habitante na comunidade. Isso não significa que não haja ratos, que são muitos, gordos e ferozes.
Moradores passam apressados, indo ou vindo do trabalho, da escola, do médico, subindo as longas escadarias com sacolas de compras, com crianças no colo. Carregadores de materiais de construção, entulho ou mercadorias em geral, passam arfando de cansaço. Deve ser o ganha pão mais árduo que existe no mundo. Quando chove, andar pelos becos e vielas se transforma numa verdadeira aventura.
Uma noite dessas, eu e Frei Elias, indo a uma celebração, fomos surpreendidos por uma chuva torrencial num dos becos da comunidade. Nessas horas é fácil entender por que as pessoas, quando ameaça uma chuva não vêm à missa, às reuniões, à catequese. Em poucos minutos formam-se verdadeiras corredeiras, levando todo tipo de sujeira, caco de vidro, lixo, plástico e o risco de se machucar ou contrair uma doença é muito grande. Em tempo seco, há também as surpresas malcheirosas que insistem em colar-se aos sapatos e sandálias.
Nas vielas encontramos toda espécie de comércio, até o trivial comércio montado nas bancas oferecendo “produtos” denunciados pelo odor característico, que deixam com vertigens os menos acostumados. Ao lado destas barracas, sempre consta uma tabela de preços, escrita à mão, seguida geralmente de uma passagem dos salmos, do tipo: “Mil cairão à minha direita…”, ou “O Senhor é meu pastor…”, ou “O Senhor é minha fortaleza e salvação, de quem terei medo?…”.
A fé caminha de mãos dadas com o medo da morte que espreita na primeira esquina. Por onde quer que se desvie o olhar, encontram-se milhares de buracos de bala, lembrança eloquente de que se está numa área conflagrada. O maior temor de todos é encontrar, sem nenhum sobreaviso, um grupo de policiais. É certeza de confronto e risco de vida.
Entre essas travessas e becos, a Paróquia da Rocinha tem oito capelas. A Capela de São Francisco de Assis fica na Rua Dois. Desde setembro do ano passado, quando estourou a guerra entre as facções rivais no morro, foi um dos lugares que mais sofreu. Muitas pessoas abandonaram suas casas, lideranças da comunidade mudaram-se para outros bairros, o comércio fechou as portas. Cenas terríveis, protagonizadas pelas partes em guerra, compartilhadas morbidamente pelos meios sociais, mostraram ao mundo a desumanidade e o horror a que chega o ser humano, quando se deixa levar pelos instintos mais primitivos.
Ano passado foi inviável realizar a festa de São Francisco na Capela. Este ano, embora a situação não fosse a ideal, com a tensão pairando sempre no ar, as coisas estavam mais calmas. A festa começou com um tríduo realizado na Matriz, com uma encenação a cada dia preparada pelos jovens, enfocando alguns momentos marcantes da vida do Santo de Assis. No dia três foi encenado o Trânsito de São Francisco. No dia quatro houve a bênção dos animais, e à noite, saímos todos em procissão, em direção à capela na Rua Dois. A caminhada foi marcada por um fato, trivial em outras realidades, mas que, para nós, revestiu-se de um sentimento de catarse: pudemos parar num dos locais mais perigosos do trajeto, e ali, fiéis, moradores e pessoas envolvidas no comércio ilegal, cantamos juntos a Oração de São Francisco. Uma pequena multidão lotou a Capela. A celebração eucarística marcou também a “inauguração” do telhado novo do local. Desde que começaram os confrontos, há mais de um ano, não foi possível fazer nenhuma reforma ou qualquer intervenção nas capelas. Seja pela dificuldade de encontrar pedreiros, dificuldade na entrega de materiais, etc. Agora, com um pouco mais de paz, retomamos algumas obras que precisam ser feitas. Após a celebração, foi partilhado um lanche, com bolos, refrigerantes e salgados trazidos por todos. A abertura da “Exposição Franciscana”, preparada pelos frades, com mais de 50 imagens de São Francisco, no salão da Paróquia, marcou o encerramento dos festejos. Até meados do mês de outubro, já haviam passado pela exposição mais de 350 pessoas.
Outro momento marcante na vida da paroquial foi a celebração de Nossa Senhora Aparecida. Uma das capelas mais antigas da Paróquia é dedicada à Padroeira do Brasil. Está localizada no Largo do Boiadeiro, onde havia um curral de bois, da antiga fazendo Quebra Cangalha, que deu origem à Rocinha. Hoje é local de um comércio muito vivo e caótico, que vende de tudo o que se possa imaginar. Ano passado também não foi possível realizar a procissão, por causa da situação de extrema violência.
Este ano, na preparação da Festa foi realizada uma novena e, no dia 12, saímos em procissão às 18 horas, em direção à Capela. Fazer uma procissão com cerca de 500 pessoas, descendo pela Estrada da Gávea, com uma imagem em cima de um caminhão de som, é uma verdadeira aventura. O trânsito segue, alheio ao movimento religioso, com centenas de motos, vans, ônibus, e os carros comuns que seguem seu trajeto. Uma corda é usada para manter os fiéis de um dos lados da rua. Mas nem sempre se consegue manter a ordem, pois há carros estacionados, as calçadas são estreitas, alguns motoristas se estressam, etc.
Em alguns momentos a procissão toma conta de toda a Estrada da Gávea. Mesmo assim, conseguimos realizar também essa procissão. No palco montado em frente à Capela foi celebrada a missa, diante de uma verdadeira multidão. Depois, houve a festa externa, com as barraquinhas tradicionais. Apesar da insegurança que ainda reina, há um bom espírito da parte dos fiéis e lideranças da Paróquia e das capelas, e isso faz com que consigamos realizar as atividades na medida do possível.