“A fome chegou em nosso meio e está devorando tudo”, denuncia Pe. Kelder
25/04/2022
“A fome chegou em nosso meio e está devorando tudo, principalmente, a vida, a dignidade e a alegria das pessoas empobrecidas”, denunciou Pe. Kelder José Figueira Brandão, coordenador do Vicariato para Ação Social, Política e Ecumênica da Arquidiocese de Vitória e pároco da Paróquia Santa Teresa de Calcutá, em Vitória. Ele presidiu a Celebração Eucarística das Pastorais Sociais da Arquidiocese de Vitória nesta segunda-feira, 24 de abril, festa de Nossa Senhora da Penha.
Na sua homilia, disse que o projeto de Deus para a humanidade profetizado pelo canto de Maria é o inverso dos projetos políticos e institucionais de opressão e morte, que estão em curso no mundo, especialmente no Brasil, com falsos valores em uma sociedade que estimula o individualismo, o acúmulo, o consumo, o desperdício e a exclusão, aceitando como natural que uns possam viver com muito, enquanto outros, sequer têm direito à vida. O canto de Maria nos exorta e motiva à construção de um projeto de vida e dignidade para todas as pessoas.
ÍNTEGRA DA HOMILIA DE PE. KELDER
MISSA DO VICARIATO PARA AÇÃO SOCIAL, POLÍTICA E ECUMÊNICA DA ARQUIDIOCESE DE VITÓRIA
Festa da Penha 2022: Saúde dos Enfermos, rogai por nós!
Às Mães Pobres
É com imenso júbilo que hoje nos reunimos no alto de nosso Monte Sagrado, onde habita a Mãe de Deus, aconchegando-nos no colo da Virgem da Penha, Senhora das Alegrias, Saúde dos Enfermos, Mãe dos Pobres e Senhora dos Tempos Futuros.
Após dois anos sem podermos vivenciar plenamente este momento, que é tão importante para nossa caminhada espiritual, devido à pandemia da Covid-19, nesta manhã nos unimos em uma só voz, um só coração e um só espírito, em comunhão com todos os devotos e devotas de Nossa Senhora da Penha, para agradecer pela grande e maravilhosa dádiva da vida, cheios de amor filial pela Mãe de Deus e Senhora Nossa, de cuja carne e sangue foi gerado Jesus Cristo, o Filho de Deus que, ressuscitado dos mortos, abriu para nós as portas da eternidade.
Ainda ecoam em nossos ouvidos e coração as orações e cantos de aleluias da Vigília Pascal, que celebramos há poucos dias, recordando o protagonismo das mulheres no anúncio do Evangelho, por elas terem sido as primeiras testemunhas da Ressurreição do Senhor, quando, ainda de madrugada, foram ao túmulo para um último gesto de cuidado com o corpo de seu Mestre e Senhor, humilhado, torturado e crucificado pelas autoridades políticas e religiosas dos romanos e judeus.
Mas o túmulo estava vazio. O Senhor ressuscitou, como fora dito pelos anjos e, assim, surge uma nova humanidade redimida do pecado, tendo Maria, a Mãe de Jesus, como nossa Mãe. Por isso, estamos aqui nesta manhã tão especial de outono, construindo, alegremente, com Maria, um novo amanhã para seus filhos e filhas, ao reverenciá-la com amor filial nesta Eucaristia.
Na liturgia de hoje, encontramos destacados a importância e o protagonismo das mulheres nos planos de Deus e nas Sagradas Escrituras. A Primeira Leitura e o Salmo enfatizam a relevância de Judite e Esther, na história do povo de Israel. Judite, uma bela e jovem viúva, decapitou o general assírio Holofernes, que ameaçava dominar Israel. Esther, rainha concubina do rei Xerxes, intercedeu pela vida do seu povo, desmascarando a trama de seus inimigos, durante o exílio da Babilônia. Ambas, mulheres destemidas, colocaram sua vida em risco, depositando a confiança em Deus, para o bem do seu povo.
Ah, as mulheres! São sempre vocês mulheres a nos precederem nas coisas de Deus, porque vocês receberam o dom de gerar nas entranhas e nutrir com o próprio sangue as novas vidas que povoam o mundo, acolhendo e cuidando com amor e zelo das vidas que lhes são confiadas por Deus, incluindo as vidas que não são frutos dos vossos ventres, manifestando ao mundo a divina epifania da vida, como aconteceu no encontro de Maria e Isabel, conforme acabamos de ouvir no Evangelho.
Maria e Isabel conceberam de formas inusitadas: uma era estéril e a outra era virgem, mas ambas eram fiéis a Deus e estavam disponíveis para colaborar com o Seu projeto, apesar de suas limitações, medos e desafios, assim como todas vocês, mulheres, que dão a vida pela família, pela Igreja e pela sociedade, trabalhando incansavelmente com afinco, generosidade, alegria e ternura, nas nossas comunidades eclesiais de base, nas pastorais sociais, nos movimentos eclesiais, nas equipes de serviços, nos movimentos sociais, nos coletivos de base, nos sindicatos e partidos políticos e em tantos outros espaços coletivos, que são enriquecidos com a sua participação e serviço.
Maria e Isabel encarnam o projeto de Deus de maneira singular: nas entranhas de Isabel é gestado o precursor, encerrando o ciclo do primeiro testamento, que preparou a vinda do Messias, Jesus Cristo, o Filho de Deus, gerado nas entranhas de Maria, a Nova Eva, Mãe da humanidade recriada, que nos legou um novo testamento.
Isabel encerra o passado, o povo da Antiga Aliança; Maria prefigura o futuro, a Igreja nascente, pura, sem mancha, plena de vida e de esperança. Elas se encontram, se complementam e se alegram, porque sabem que Deus as escolheu para ajudar no Plano da Salvação. Elas tinham consciência de que a sua disponibilidade era fundamental para Deus cumprir o seu desígnio, como também é necessária a nossa disponibilidade para Ele agir, hoje, no mundo.
Dos lábios de Maria brota o cântico profético, que revela o projeto de Deus para a nova humanidade. Como são surpreendentes, desconcertantes e desafiadores os desígnios de Deus ao longo da história, principalmente os que brotam dos lábios de Maria, que anunciam a derrubada dos poderosos e a exaltação dos humildes. O projeto de Deus para a humanidade profetizado pelo canto de Maria é o inverso dos projetos políticos e institucionais de opressão e morte, que estão em curso no mundo, especialmente no Brasil, com falsos valores em uma sociedade que estimula o individualismo, o acúmulo, o consumo, o desperdício e a exclusão, aceitando como natural que uns possam viver com muito, enquanto outros, sequer têm direito à vida. O canto de Maria nos exorta e motiva à construção de um projeto de vida e dignidade para todas as pessoas.
Tomada pelo Espírito Santo, Maria bendiz a Deus porque Ele olhou com ternura para a humildade de Sua serva. Deus olhou com ternura para uma jovem pobre da periferia de Jerusalém e é com esse mesmo olhar que olha para vocês, mães empobrecidas das periferias, que, como ela, aos pés da Cruz, seguram no colo os filhos esvaindo-se em sangue, sem vida, mortos por agentes do Estado, como o jovem Wellington da Silva Dias, recentemente executado em São Pedro por um policial militar, como tantos outros jovens pretos e pobres, executados sumariamente ao longo dos anos no Espírito Santo. Cansamos de ouvir a narrativa do Governo do Estado de que os jovens executados nas periferias foram mortos porque atiraram primeiro, quando todos nós sabemos que isso não é a verdade. Os vídeos que circularam intensamente nas redes sociais, mostram a frieza do policial que atirou em uma pessoa com as mãos na cabeça, uma situação que sabemos ser recorrente no território capixaba, conforme já denunciado na ONU, sem que o Estado mude sua forma de atuação.
A Mãe do Cristo Ressuscitado é a mesma Mãe do Cristo Crucificado; aqui no Convento, ao lado do altar mor de Nossa Senhora das Alegrias está o altar de Nossa Senhora das Dores e o altar de Nosso Senhor dos Passos, para nos lembrar que a Senhora das Alegrias, no alto da montanha, é, também, a Senhora das Dores, aos pés da Cruz. E ela continua sofrendo com os açoites, espinhos e cravos que atingem seus filhos, nas periferias das cidades, só porque são pobres e pretos. Está mais do que provado que criminalizar, encarcerar e matar jovens e adolescentes pobres, não diminui em nada a violência ou o tráfico de drogas e de armas, que cada vez está mais forte, movimentando montanhas de dinheiro, financiando campanhas políticas e fundando igrejas, ocupando o lugar do Estado e de outras instituições, cujos gestores não querem saber dos pobres, a não ser em ano eleitoral.
Maria bendiz a Deus, porque o nome de Deus é Santo e a sua misericórdia se estende a todos os que O respeitam, mesmo os que não professam uma fé, mas que praticam a justiça, respeitam o semelhante, são solidários com os que sofrem e não julgam ou maltratam ninguém, muito diferente de quem se vale da religião, usando as Escrituras Sagradas para ganhar dinheiro, como os mercenários transvestidos de pastores e o Ministro da Educação, envolvidos no escândalo do MEC, que vendiam a Palavra de Deus a peso de ouro, desviando recursos da sagrada educação, profanando o nome do Senhor.
Maria bendiz a Deus porque Ele não é indiferente aos dramas dos pobres que são vítimas dos poderosos, saciando de pão os famintos. A fome chegou em nosso meio e está devorando tudo, principalmente, a vida, a dignidade e a alegria das pessoas empobrecidas. E nós sabemos que a fome não é causada pela falta de alimentos, já que somos um dos países que mais produz alimentos no mundo. Temos sim alimentos para todos, mas os pobres não têm como comprá-los. Os alimentos estão caros, o povo está empobrecido, desempregado, neste país historicamente marcado pela desigualdade.
Carecemos de políticas decentes de distribuição de renda e políticas emergenciais para matar a fome do povo que sofre. Dia a dia testemunhamos a insensibilidade e má vontade dos gestores municipais, estaduais e federais, que se recusam a oferecer aos empobrecidos alternativas de acesso à alimentação, como restaurantes populares, cozinhas comunitárias e bancos de alimentos. Só em nossa Arquidiocese temos mais de quatorze mil famílias cadastradas para receberem cestas básicas e sabemos que no Estado são mais de um milhão e duzentas mil pessoas passando fome diariamente.
A Campanha Paz e Pão já distribuiu mais de 500 toneladas de alimentos no decorrer do último ano e sabemos que isso é pouco diante de tanta gente faminta. Estamos dando a nossa contribuição, organizando uma rede ampla de parcerias que tem amenizado um pouco o drama de milhares de pessoas. Entretanto, sabemos que isso é muito pouco! É preciso muito mais!
Nós cristãos, temos o dever moral de dar pão a quem tem fome, mas os gestores públicos tem o dever legal, previsto na Constituição. Então, não corram dessa sua obrigação, senhores presidente, governador e prefeitos! A fome de nosso irmão depõe contra nós e revela o fracasso de nossa humanidade e modelo de civilização.
É preciso que toda sociedade tome consciência do sofrimento dos empobrecidos e se mobilize para impedir o avanço da fome com ações solidárias a curto prazo, mas, e, principalmente, cobrando dos gestores políticas públicas de enfrentamento à fome e à erradicação da pobreza.
É a vontade de Deus que ecoa no canto de Maria: é preciso saciar os que têm fome! Não podemos aceitar nenhum ser humano passando fome. A fome é a mais vil e cruel de todas as violências. Nenhum pai, nenhuma mãe, como vocês, mães pobres das periferias, que sofrem por não ter o que comer e nem o que oferecer aos seus filhos famintos, deveriam passar por tamanha violência. Nenhuma mãe deveria ser humilhada, como vocês, mães, que vão de um lugar a outro, cabisbaixas, acabrunhadas, carregando os filhos nos braços, em busca de uma cesta básica ou de uma botija de gás, sem serem ouvidas ou enxergadas pelos gestores públicos, enquanto o Governo Federal gasta milhões com viagra, lubrificante íntimo e próteses penianas para as Forças Armadas, desmascarando o cinismo e a impotência de quem governa a nação, afrontando o povo e ofendendo a Deus, querendo transformar nosso país em Sodoma e Gomorra.
Nesta resplandecente manhã outonal, no alto deste Monte Sagrado, como Maria e Isabel e todas as mulheres exaltadas nas Sagradas Escrituras, porque se colocaram a serviço de Deus e da vida do povo, coloquemo-nos à disposição do Senhor, assumindo o Seu projeto de vida e dignidade para todas as pessoas, que brotou dos lábios de Maria, cuidando uns dos outros, especialmente, dos filhos prediletos de Nossa Senhora, os mais empobrecidos, e todos unidos em um só coração, mente e espírito, louvemos a Virgem da Penha, Senhora das Alegrias, Saúde dos Enfermos, Mãe dos Pobres e Senhora dos Tempos Futuros. Viva Nossa Senhora da Penha!