Notícias - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

“Eu venci a Covid”: testemunho do Frei Paulo Roberto Pereira

21/05/2021

Notícias

A covid-19 já ceifou a vida de milhares de pessoas em todo o Brasil. Não são números, não são dados estatísticos. São vidas ceifadas, sonhos exterminados, planos interrompidos… São pais, mães, irmãos, filhos, tios, avós… São tempos difíceis e angustiantes.

Mas são também tempos de bendizer o Criador pelo dom da vida, da cura, da recuperação. Hoje, exatamente um mês depois de deixar o hospital, nos alegramos com a recuperação do Guardião do Convento, Frei Paulo Roberto Pereira.

Esses tempos, são também de revigoramento, de renovação, de repensar como estamos valorizando nossa vida, nossos irmãos, nossos filhos, aqueles que convivem conosco… São tempos de exercitarmo-nos na generosidade, na caridade e na gratidão. GRATIDÃO. Essa talvez tenha sido a palavra mais essencial nesses momentos. Agradecer pelo dom da vida.


Páscoa, Ressurreição

O dia que busquei o serviço médico por estar sentindo cansaço generalizado era domingo, mas não qualquer domingo. Era o domingo revestido de pleno vigor, era o dia da celebração da vitória de Jesus Cristo sobre a dor e a morte, era do Domingo da Ressurreição. Além disso, era o primeiro dia do Oitavário da Festa da Penha que nesta edição de número 451 tinha como lema a súplica confiante que sobe ao céu devota e confiantemente: “Vosso olhar a nós volvei”.

Os parâmetros aferidos, além dos exames laboratoriais e de imagem, apontavam infecção pelo novo coronavírus e sugeriam a necessidade de internação imediata para tratamento. A central de vagas indicou o Vila Velha Hospital e, depois dos trâmites burocráticos, ao final da tarde do Domingo da Páscoa me juntei a Frei Luiz Flávio e a Frei Paulo César, outros confrades da Fraternidade Franciscana da Penha que já se encontravam hospitalizados, o primeiro no município da Serra e o outro em Cariacica.

Oração e solidariedade

A notícia do terceiro frade contaminado, mais ainda, internado, bem como o início da preparação da Festa da Penha, logo mobilizou muita gente e não tardaram as manifestações de solidariedade e o empenho das preces que já vinham sendo recolhidas por conta da situação dos confrades doentes há mais tempo. Eis aí uma das mais significativas experiências deste tempo: a solidariedade e oração de uns pelos outros.

Quem professa a fé cristã tem clareza de que o que confere relevância e garante credibilidade à sua forma de crer é a fidelidade ao ensinamento de Jesus Cristo ressaltado na afirmação de Paulo “a maior virtude dentre elas é a caridade” (cf.1Cor 13,13). Caridade que, necessariamente, supõe alteridade. Para viver o fundamento dos ensinamentos de Jesus é preciso voltar nosso olhar ao outro, acolher o que é diferente de nós, ouvir o que nos interpela, estar atento à realidade que nos circunda. O olhar exclusivamente voltado sobre si mesmo anula a possibilidade de ser discípulo do Mestre de Nazaré.

A oração é a via mais segura para cultivar a intimidade com Deus. Para os que almejam testemunhar Jesus Cristo e seguir seus passos, também a oração deverá ter a marca da caridade. Desde as primeiras horas de internação pude sentir o conforto proporcionado pela prece de tantos. Preces confiantes, algumas vezes preces acompanhadas de lágrimas e preocupações, preces espontâneas ou repetidas, ou simplesmente preces. As pessoas, esquecidas de suas próprias necessidades rezavam pela minha saúde. Como alguns depois me disseram, não deram sossego aos santos e a Nossa Senhora pedindo a intercessão deles para que pudesse vencer a luta contra a infecção. Sem dúvidas, a prece dos irmãos e irmãs cura tanto quanto as medicinas aplicadas nas veias. Algumas manifestações foram marcantes. Mais de uma pessoa da equipe médica, em diferentes situações, se demorou em prece ao lado do meu leito. Em silêncio, sem anunciar-se ou fazer alarde, simplesmente ficava ali, prece sincera, solidária, curativa.

Rezar pelos que estão na “linha de frente”

Desde o início da pandemia, hora com mais fervor, hora com menos, hora com mais admiração e respeito, noutros momentos até com certa desconfiança, os profissionais da área da saúde sempre estiveram presentes nas preces do povo. A partir do Convento da Penha os céus receberam rogos e súplicas para que os identificados como “trabalhadores da linha de frente do combate à Pandemia” pudessem sentir-se fortalecidos e protegidos pelo vigor que vem do cuidado de Deus. Confesso ter rezado muitas vezes nessa intenção. Tendo passado em torno de 20 dias no hospital, entre UTI e enfermaria, hoje posso dizer que minha reza era incompleta. Inicialmente incompleta porque na apresentação das intenções parecia desconsiderar o complexo universo das unidades hospitalares e postos de saúde e a enorme diversidade dos profissionais envolvidos no seu funcionamento, por isso mencionava os médicos, enfermeiros e, algumas vezes, os profissionais da limpeza. Mais atento, passei a rezar pelas equipes multidisciplinares dos hospitais e por aqueles que os gerenciavam. Ainda assim minha prece seguia incompleta, afinal, era como se pedisse a Deus que os guiasse naquele intervalo de tempo que tivessem passado pelo relógio de ponto e iniciado sua jornada até, ao final do plantão, registrassem sua saída. A internação me fez perceber que os que servem aos doentes nos hospitais não são apenas peças de uma engrenagem. As pessoas que servem aos doentes nos hospitais são, antes de tudo, pessoas. Têm histórias, dores, medos e procuram encontrar formas de sobreviver em meio ao caos que insiste em desafiá-las. Quando meu estado de saúde permitiu não foram poucas as vezes que pude escutar as pessoas que se aproximavam do meu leito. Aplicavam a medicina, deixavam o ambiente em ordem, garantiam a alimentação e podiam também dizer da sua vida. Com discrição e cuidado sentiam-se a vontade para partilhar vivências e expectativas. Muitos tiveram parentes hospitalizados por conta do novo coronavírus e nem todos puderam cuidar deles como cuidavam de mim.

Por isso, a partir desta experiência passei a rezar e pedir que as pessoas continuassem a rezar pelos “trabalhadores da linha de frente do combate à Pandemia”, mas pudessem considerar sua vida como um todo. Que nossa prece pudesse socorrê-los nas próprias fragilidades; pudesse sustentá-los nos momentos de dúvidas e temores; pudesse acompanhar seus sofrimentos e celebrar suas alegrias. Preces ternas e fraternas. Preces bem ao gosto do Senhor que as acolhe.

Olhar o mundo com os olhos de Deus

Algumas pessoas da equipe do hospital mostraram admiração ao saber do envolvimento de tanta gente mobilizada em buscar notícias ou unida pela oração. Uma das enfermeiras me abordou dizendo que deveria ser uma pessoa muito boa porque tão querida. Respondi a ela afirmando que as mesmas retinas que registram nossos gestos de bondade são capazes de identificar nossos deslizes. Não me valho do recurso da falsa modéstia, também não me ufano das virtudes que a Sabedoria de Deus possa ter me concedido, ao que sou muito grato. No entanto, restou evidente que a situação da doença serviu para que todos aprendessem um método de purificação do olhar.

Do Primeiro Testamento destaco um dos muitos sinais da predileção de Deus pelo povo da aliança: “Vi a aflição do meu povo, conheço seu sofrimento e desci para salvá-lo” (cf. Ex 13,34). A Deus importa salvar. Não estava distante do seu olhar os pecados, a infidelidade, os deslizes do povo que ele escolhera. Sendo Deus, cabia-lhe ver a partir da sua natureza, cabia-lhe compadecer do sofrimento, descer, aproximar-se, salvar. Os Evangelhos conservam diversas atitudes de Jesus movidas pelo mesmo olhar. “Viu e teve compaixão”, o relato da ação do Bom Samaritano (cf. Lc 10, 33) é a manifestação mais clara do jeito de Jesus olhar, o jeito de olhar daqueles homens e mulheres que ousam testemunhar o Reinado de Deus. Sejam do povo oprimido pelo Faraó no Egito, sejam do assaltado e deixado quase morto na estrada entre Jerusalém e Jericó, sejam dalgum doente no leito da UTI, não importam seus pecados, suas infidelidades ou deslizes, sob o olhar de Deus importa sejam libertados, sejam cuidados, sejam curados. É assim que Deus dirige seu olhar a cada um de nós.

A muitos pode ainda espantar aquela imagem de antiga catequese que revelava um olho dentro do triângulo, um olho que a tudo vê e do qual ninguém pode escapar, um olho disposto a punir com severidade o menor erro. Alguns podem trazer certo temor, pois ouviram muitas vezes em tom ameaçador “Deus tá vendo”. Decididamente, não é esse o olhar do Deus revelado em Jesus Cristo. Misericórdia e bondade, ternura e compaixão, desejo de salvação e de cura brotam abundantemente dos olhos do Senhor. Portanto, ao crente se exige treinar o olhar, desejar enxergar as pessoas e o mundo inteiro com as mesmas referências do Pai que está no céu.

Portanto, minha querida amiga enfermeira, não sou pessoa ruim; da mesma maneira, na minha vida alcançar a bondade ainda é mais desejo do que propriamente realização. Contudo, as múltiplas manifestações de apreço e as incontáveis preces em meu favor, se deram não por meus méritos, mas porque quem por mim rezou ofereceu a si mesmo, ainda que não tivesse prestado atenção nisso, a oportunidade de fazer a experiência de olhar o mundo com os olhos de Deus. Quisera que esta experiência transformadora pudesse ser repetida nas mais diferentes situações da vida das pessoas. Diante da frustração, da decepção, frente aos medos, à insegurança, sob o impacto de uma discussão na ambiente familiar e profissional, o jeito de enxergar estritamente humano pode gerar paralisia, raiva, desânimo e tristeza. Entretanto, quando a luz do olhar do Senhor é acolhida, então a dúvida se desfaz e, por mais difíceis que sejam as respostas, temos a coragem suficiente para construí-las.

Com a marca da bondade e do cuidado

Durante a internação fui premiado pela bondade. Bondade até na definição das minhas atitudes enquanto paciente. Algumas pessoas puderam ver resiliência ou notar paciência. Ouvi até que era forte, sereno, tranquilo, de fácil trato. Na verdade nem precisavam enfileirar virtudes que, aliás, nem as tenho, mas sigo almejando-as. Naqueles dias no hospital simplesmente, decidi confiar. Se a nutrição indicava uma comida ou um suplemento, a mim cabia ingeri-los. Se o técnico da radiologia pedia ficasse em determinada posição, a mim cabia obedecer e esperar que ao ser revelada a imagem indicasse que os pulmões estavam respondendo ao tratamento. Se alguém do laboratório vinha recolher através de dolorosa agulhada o sangue arterial, a mim cabia não esconder os pulsos. Foi assim, estabelecendo com médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, agentes da limpeza e demais pessoas envolvidas com o dia a dia do hospital, um relacionamento baseado na confiança que pude transmitir aquilo que viam em mim. Na verdade, era apenas reflexo daquilo que recebia. Quanta humanidade. Quanto respeito. Afirmo com gratidão, recebi muita paciência, serenidade, tranquilidade, bem-querer e cuidado. Senti-me gente sendo cuidado por gente, me senti irmão sendo cuidado por irmãos.

Em todo o tempo em que estive no hospital não fui assaltado pelo sentimento de solidão. O sentimento de pertencimento à mesma família, a certeza de que todos estavam no mesmo barco e a busca pela cura não era uma luta solitária ficou evidente em diversas situações. Na manhã que o médico responsável pela UTI abriu a porta de vidro que separava meu box dos demais e anunciou o fim do isolamento era evidente o seu contentamento, minha conquista era a conquista dele também. O responsável pelo recolhimento dos resíduos do expurgo sempre lançava na minha direção um olhar de incentivo e com a mão fazia um gesto de positivo, minha luta era dele também. Os progressos a cada sessão de fisioterapia com utilização de VNI (Ventilação Não Invasiva) eram celebrados porque, ainda que os alvéolos a serem recuperados fossem os meus, respirar livremente é um desejo de todos.

Foram experiências como essas, entre tantas outras, que motivaram a celebração da saída da UTI. Carregando uma placa, a modo de certificado ou diploma que anunciava a vitória sobre o vírus, empurrado numa cadeira de rodas e ainda ligado a um cilindro de oxigênio, passei por um corredor de aplausos e sorrisos. Embora parecessem por mim e para mim as palmas e a alegria eram dirigidas a todos os que se dedicam a cuidar da vida na luta renhida do dia a dia dos hospitais e postos de saúde. Verdadeira Eucaristia; nela os dons apresentados pelo sacerdote, ainda que elevados por suas mãos, não pertencem exclusivamente a ele e são, como diz a oração, frutos da generosidade da Mãe Terra e do labor e suor de todos os seres humanos; verdadeira comunhão. Comunhão de vida expressa nos aplausos e sorrisos que celebravam a cura e eram também refrigério e alento para a alma dos que, apesar do esforço e empenho em jornadas exaustivas, nem sempre obtêm êxito na luta contra esta doença que ceifou a vida de milhões de pessoas ao redor do mundo.

Compromisso

No dia 21 de abril, quando deixei o hospital, os jornais anunciavam que o Brasil contava com a triste marca de 380 mil mortos por COVID 19 desde o início da Pandemia. Ao terminar este relato (09/05), apenas duas semanas depois, os óbitos já superam 420 mil. Vidas interrompidas, histórias abreviadas, ausência e dor.

A imunização da população com a aplicação das vacinas tem oferecido um pouco mais de segurança e gerado expectativas quanto ao estabelecimento de comportamentos adaptados à exigente situação sanitária que se impôs. Mesmo assim, sabemos que a travessia deste deserto será longa.

Nesta trajetória devemos buscar a cura. A cura não só desta doença tão devastadora. A cura para todos os outros danos que a Pandemia tem causado ou, simplesmente, tem trazido à luz. Para combater o novo coronavírus haverá vacina, continuaremos a usar máscaras, higienizar as mãos e evitar aglomerações. Para curar nossa humanidade doente deveremos lançar mão de outros recursos.

A intolerância, a impaciência, o desprezo pela dor alheia, a intransigência na defesa dos próprios conceitos, a autoreferencialidade, o narcisismo intelectual entorpeceram os relacionamentos interpessoais e, sobretudo, dificultaram a definição de protocolos para o enfrentamento da Pandemia. Isso se deu entre as autoridades constituídas e também no universo das famílias e até nas Comunidades de fé. Quando o que se exigia de nós era unidade, a dissenção tomou conta. Na urgência do entendimento e acolhida, reinou a incompreensão e desrespeito. A empatia e o cuidado foram trocados pelo desdém e pelo negacionismo.

Estamos todos doentes. A humanidade está ferida. A terra inteira padece dessa enfermidade. Antes de chorar o cenário tão desolador, importa saber se é forte a doença, mais forte ainda deverá ser o desejo de sarar. A pandemia não deverá ser apenas o momento da dor e da morte. Para além de uma crise sanitária, para além de uma questão de saúde pública de dimensões universais, o tempo que estamos vivendo deverá ser um tempo de purificação.  Purificação do modelo de distribuição de riquezas e promoção da igualdade entre os povos. Purificação das políticas públicas que possam incluir o pobre e torná-lo protagonista nas peças orçamentárias das nações. Purificação da maneira de cuidar da terra, nossa mãe, com reverência e respeito. Purificação dos nossos relacionamentos interpessoais, que tenham gosto de ternura, de afeto, de compaixão.

A bondade do Senhor vai nos conceder proteção e saúde este é nosso pedido e nossa confiança. A misericórdia do Pai vai nos levar a ser mais irmão, mais irmã, este é nosso compromisso.

Obrigado a todos que vivenciaram comigo esses dias de ressurreição. Gratidão aos quais tenho a graça e o privilégio de chamar de irmãos e irmãs.


Fonte: Site Convento da Penha (https://conventodapenha.org.br/)