Os franciscanos seculares e a família
Construindo a casa sobre a rocha
Todo aquele que ouve estas minhas palavras, e as põe em prática, será como um homem prudente que construiu sua casa sobre a rocha (Mt 7, 24).
Em sua família vivam o espírito franciscano da paz, da fidelidade e do respeito à vida, esforçando-se por fazer dela o sinal de um mundo já renovado em Cristo. Os esposos, em particular, vivendo as graças do matrimônio, testemunhem no mundo, o amor de Cristo à sua Igreja. Por uma educação cristã simples e aberta, atentos à vocação de cada um, caminhem alegremente com seus filhos em seu itinerário humano e espiritual (Regra da OFS, n. 17).
Por Frei Almir Ribeiro Guimarães
1. A família vem merecendo especial a atenção por parte da Ordem Franciscana Secular. O último Capitulo Geral, realizado em São Paulo, no Centro Santa Fé, em outubro de 2011, escolheu a família com uma de suas prioridades. O Capitulo Nacional de Brasília (agosto de 2012) também optou por priorizar a evangelização da família dos terceiros bem como a pastoral das famílias. Nossas famílias e as famílias à nossa volta são convidadas a construir o casamento sobre a rocha do amor e o fundamento de uma fé lúcida. Famílias, espaços onde os filhos encontrem rocha firme para colocar os pés e construírem sua vida. Desejaríamos que nossas Fraternidades seculares tivessem um bom número de casais. Que os filhos pudessem, efetivamente, viver no seio de uma família que fosse regida pelos valores evangélico-franciscanos. Para evitar todo mal-entendido, dizemos logo de início: não queremos uma família fechada, isolada, nada de familismo. Queremos uma família nova para novos tempos.
2. Há coisas importantes em nossas vidas e outras que não são tão fundamentais. Há fatos, feitos e pessoas que marcaram definitivamente nossa vida: um professor competente e cativante, um colega que se tornou amigo, encontros que nos permitiram reorientar nossa história. Uma das realidades importantes em nossa vida, indubitavelmente, é a família, a nossa família. Pensamos em nossa família de origem e naquelas que vão sendo constituídas quando os filhos têm asas fortes e deixam o ninho. O amanhã do mundo depende, em boa parte, da qualidade de vida da família e do teor dos relacionamentos familiares. Uma criança, ao entrar no mundo, necessita do olhar, das atenções, do carinho, do trabalho, dos empenhos, da dedicação, da lucidez de um pai e de uma mãe. Se ao chegar ao mundo uma criança não encontrar uma família, de preferência sólida e organizada, terá muita dificuldade em se tornar uma pessoa equilibrada em sua caminhada existência.
3. “O ser humano não se contenta com relacionamentos meramente funcionais. Tem necessidade de tratos interpessoais, ricos de interioridade, gratuidade e oblação. Entre estes últimos, o relacionamento que se tece no seio da família é fundamental: relações entre os cônjuges, entre pais e filhos. Todo o vasto tecido de relações humanas que nasce e se regenera incessantemente a partir desta relação através da qual um homem e uma mulher se reconhecem feitos um para o outro e decidem unir sua vida num único projeto de existência. Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e se ligará à sua mulher e há de tornar-se uma só carne” (João Paulo II, Homilia por ocasião do Jubileu das Famílias, Roma 2000).
4. Família é comunidade de pessoas, espaço de expressão do amor de um homem e de uma mulher, espaço de acolhida da vida, lugar de educação dos filhos e de proposta da vida cristã. A família é berço da humanidade, encruzilhada do diálogo entre as gerações, escola de solidariedade, espaço de aprendizado das coisas mais elementares da vida, Igreja doméstica. Não nos referimos, aqui, a família qualquer. Pensamos em famílias de qualidade. Nossos tempos conhecem delicadas transformações no seio das famílias. Não queremos e não podemos canonizar os modelos antigos de família com tantas sombras. Nem sempre elas eram expressões de amor verdadeiro e respeitoso e nem espaços de verdadeiro crescimento humano e cristão. Muitas famílias de hoje são espaços de beleza e de grandeza. Há, no entanto, preocupações. Vemos constituições extremamente frágeis. Rapidamente paixões ardentes se transformam em ódio visceral. Há pessoas que se unem por um tempo, por um certo tempo, sem compromisso, sem palavra dada. Há não poucos que se casam beirando os quarenta anos e não querem filhos. Há casais que, também perto do quarenta, sob o influxo do “diabo do meio dia” se desfazem. Há uniões mal cultivadas que vão se deteriorando que terminam simplesmente terminando ou com raios e trovoadas. Há casais que não chegam ao divórcio, mas vivem uma vida familiar e religiosa sem brilho, sem viço. Há muitos recasamentos em que a emenda é pior do que o soneto. Com medo da solidão, os que se separam se casam sem pensar… Não se trata de continuar casados por continuar casados. Queremos construir famílias sólidas, edificadas sobre a rocha.
5. Acaba bem o que começa bem. O casamento precisa começar bem. Um homem, uma mulher, duas histórias que se unem. Uma tal união deverá ter como base um sólido bem querer, um querer bem de pessoas maduras. Antes de se tomar a decisão do casamento será fundamental dar tempo ao tempo: conhecer bem o outro, a outra, sua famílias, os traços maiores de sua personalidade. Tudo começa com uma palavra dada, um sim que “arruma” o interior da pessoa. Sim, palavra dada, promessa de bem querer, compromisso alegre assumido até mesmo diante de outras pessoas que nos estimam. Estas serão testemunhas do amor do casal. E as pessoas que se casam assumem um projeto.
6. Claro, há um projeto conjugal. O casal precisa construir-se. A maturidade do amor não acontece automaticamente. Não se trata apenas da justaposição de um homem e de uma mulher, mas da construção do casal, da conjugalidade. Ele vem de sua família, com sua história, um determinado tipo de educação. Ela, por seu lado, tem outro passado de referência. Quando arriscam unir suas histórias vão construir o novo. Há muito que fazer: desejo de acolher as diferenças, multiplicação de conversas, abertura de coração a coração, empenho em superar divergências que possam tirar brilho da unidade, elaboração da vida profissional, revisão constante do relacionamento sexual do casal, auscultação dos desejos mais profundos de quem vive a seu lado é um mistério.
7. Há o projeto dos filhos. Quantos? Qual o melhor momento de colocá-los no mundo? Que tipo de educação, de orientação fundamental de vida lhes oferecer? Quando se tornam pai e mãe, ele e ela amadurecem. Não parece razoável, sem justos motivos, reduzir ao mínimo o número dos filhos. Filhos únicos e filhos com muitos irmãos não podem ser educados e treinados a partir do consumismo, do lucro e do gozo. Marido e mulher fazem um projeto humano e cristão de educar os filhos. Não se trata de colocar os filhos no mundo e deixar que a sociedade da gastança e do consumismo os deteriorem. Será preciso extrair de suas entranhas as mais ricas e escondidas potencialidades e possibilidades. O Evangelho penetra o projeto conjugal e familiar. Precisamos de famílias que vivam a partir do Evangelho.
8. A família vai se criando no cotidiano das coisas cotidianas: encontros em torno à mesa das refeições, conversas no canto da sala, na varanda, debaixo da mangueira, na mútua prestação de serviços, na atenção especial prestada aos mais fracos, doentes e envelhecidos, no perdão dado e recebido. Família é convivência. Esta convivência ou confabulação acontecerá espontaneamente, mas também será buscada, programada, nutrida e revista. O projeto familiar conhece redimensionamentos e, por vezes, pede correção de rota. Quando não tem mais vontade de conviver em casal e em família acaba o casamento. Quando são armados e arquitetados esquemas de fuga o amor acaba e a família fica feito um barco perdido no oceano.
9. Não podemos concordar com famílias fechadas, girando em torno de suas coisas, de suas viagens para cá e para lá, consumista e elitista, do dinheiro, das aparências… As famílias serão abertas a outras famílias, a famílias bem constituídas ou incompletas, a casais recasados, a casais que precisam de catequese e de formação na paróquia. Nada mais empobrecedor do que famílias fechadas ou abertas apenas para seus “parecidos”.
10. Os cristãos se unem no Senhor, depois de um tempo de conhecimento. Ao buscarem o Sacramento do Matrimônio, os cristãos não realizam um rito qualquer. Não buscam apenas uma bênção. Não querem apenas dar uma satisfação à sociedade. Celebram sua fé. Desejam que o amor de Cristo, do Cristo ressuscitado envolva seu amor. São eles, esposo e esposa, os ministros do sacramento. Fidelidade e indissolubilidade marcam o sacramento que não dura apenas um momento, mas perdura ao longo da vida. Marido e mulher se estimam e se amam na qualidade do amor de Cristo pela Igreja.
11. O Sacramento do Matrimônio esteve sempre no plano do Senhor. “Não é bom que o homem fique só”, lemos no Gênesis. Deus quer que ele e ela realizem uma Aliança que permaneça até o fim. O casal cristão passa a ser encarnação viva do amor de Cristo pela Igreja. Tudo o que se passou na páscoa do Senhor é vivido sacramentalmente no matrimônio. A qualidade do amor conjugal é a qualidade do amor morte e ressurreição de Jesus.
12. Marido e mulher são o animadores da Igreja doméstica que é a casa. Ali os que se estimam familiarmente buscam juntos a Deus. Há toda uma liturgia doméstica. Na família se reza. Ouve-se a Palavra. Uns acolhem os outros. Uns carregam o peso dos outros. Os mais frágeis e os envelhecidos são tratados com especial atenção. Ecoam as palavras do Evangelho e atingem o mais íntimo dos membros dessa Igreja do lar.
13. São João Crisóstomo fala da família como sendo Igreja doméstica: “Voltando às vossas casas, preparai duas mesas: uma para o alimento do corpo, outra para o alimento da Sagrada Escritura. O marido repita o que foi dito na assembleia santa, a mulher se instrua e os filhos escutem. Cada um de vós faça de sua casa uma igreja. Não sois responsáveis pela salvação de vossos filhos? Não deveis um dia prestar conta desta missão? Como nós pastores deveremos prestar contas de vossas almas, assim vós, pais de família, deverão responder diante de Deus por todas as pessoas de vossa casa”
14. Marido e mulher fazem do Evangelho a luz de sua caminhada. Maduramente, com o coração cheio de sede de Deus vão lendo e absorvendo as páginas do Testamento de Jesus. Dão mais do que pedem. Simplificam seu modo de viver. Deixam de lado todo espírito de competição. Vivem dignamente. Recusam ser discípulos do consumismo. Não hesitam em deixar de lado seus projetos pessoais para cuidar daqueles que mais deles precisam. Criam à sua volta, no círculo familiar e fora dele, um ambiente diferente. São pessoas sempre bem-vindas porque simples, amigas, prestativas e sobretudo pessoas que se estimam e sabem estimar os outros. Não seria exatamente assim que deveriam viver as famílias franciscanas?
15. Os que se casam no Senhor procuram criar um clima tal que favoreça a santidade dele, dela e da família. Sofre esse ou aquele quando se dá conta que o outro não tem sede de Deus, não participa da vida da Igreja, vive voltado sobre si mesmo. No dia a dia, ele e ela, e por vezes os filhos, se alegram por estar juntos diante de Deus saboreando um salmo, desfiando as contas de uma dezena do terço, fazendo a preparação para participação na missa dominical.
16. Em busca da santidade, estão os casais que acolhem o negativo da vida sem desespero: um filho doente, um outro que dependente das drogas, uma filha grávida antes da hora, maldades perpetradas contra o casal até mesmo por parentes ou amigos, um longo tempo de desemprego. Há casais que dão gigantes passos no caminho da santidade quando se associam à cruz de Cristo.
17. “O casal tem a sua liturgia. É no seu viver cotidiano que se desenvolve a sua espiritualidade conjugal, seu modo peculiar de se relacionar com Deus. É no dia a dia que o casal se aprofunda no seu amor e no amor de Deus e procura descobrir e pôr em prática o plano de amor que Deus lhe confiou. As ações corriqueiras de cada dia são manifestações da liturgia do casal, e não apenas aqueles momentos em que o casal se une para rezar. Proporcionar ao cônjuge as coisas pequenas e simples que o façam feliz: um agrado, um sorriso, palavras de ânimo, dedicar-lhe mais tempo quando está mais cansado ou aborrecido, surpreendê-lo com algo inesperado, incentivar a lutar par vencer a preguiça, o orgulho, o egoísmo, desinstalar-se para prestar pequenos serviços, nunca deixar o cônjuge mal perante outras pessoas… Todas essas ações fazem parte da liturgia do casal e são verdadeiros ritos que expressam o amor, o que é sinal sensível do sacramento da sua união” (Casamento, sacramento do dia a dia, ENS, p. 50).
Questões e questionamentos:
1. O que seria, efetivamente, um casamento e uma família construídos sobre a rocha?
2. Quais a linhas fundamentais de um projeto conjugal?
3. Quais as questões que preocupam de verdade quando queremos educar nossos filhos?
4. O que mais chama sua atenção neste texto?
5. Ler e comentar em grupo os artigos 24 e 25 das Constituições Gerais que abordam o tema da família.
6. Ler e comentar em grupo ou na reunião o texto que transcrevemos abaixo: A Escada de Jacó
A Escada de Jacó
Cristãos seguidores de Jesus Cristo, membros da Igreja católica, o casal percebe sua família com dom de Deus e sabe aonde quer chegar e para onde quer orientar sua caminhada e de seus filhos. Sabe que a família é o único lugar onde se transmite não somente a vida, mas seu sentido, seu significado, onde, com amor, se adquirem e se passam “valores e critérios de orientação de conduta, que fazem perceber a existência com o digna de ser vivida em vista de uma participação positiva na realidade social.
Neste processo, cada família cria seu espírito, seu estilo de vida. A maneira como nos comunicamos, como passamos o tempo juntos e celebramos os momentos importantes; como tomamos nossas decisões; como consideramos as falhas dos outros e como nos perdoamos mutuamente, como deixamos agir Deus, tudo vai definir e conduzir a aventura de nossa família.
A escada que Jacó viu em sonho (Gn 28, 12) pode ser a imagem das famílias humanas que, geração após geração, cumprem o plano que Deus propõe aos homens e sobem em sua direção. Os valores que se adquirem na família, e que põem em prática na sociedade – com o amor, a fraternidade, a confiança, a partilha a superação dos desafios, a justiça e a responsabilidade pelos atos praticados, a verdade – que contribuem para a caminhada e para a escalada, degrau a degrau, da escada que leva ao Pai.
(A Aventura Familiar, Hélène e Peter Nadas, in Casamento, sacramento do dia a dia, Equipes de Nossa Senhora, São Paulo, p. 44-45).