Irmãs Clarissas – Elementos de Formação – I
JESUS, O VIVENTE ( João 20, 1- 18)
Éloi Leclerc, franciscano francês de acidentada e dolorida biografia em campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial, foi um dos pensadores e escritores franceses que mais se deixaram envolver pela figura de Francisco de Assis. No texto a seguir, ele não aborda “seu” Francisco de Assis. Trata-se de uma meditação para este tempo pascal. Transcrevo seu texto com pequenas adaptações. É tirado da obra tem como título “Vida em Plenitude. Explorando o Evangelho de João”, Ed. Franciscana. Diante de meus olhos uma cópia do cap. 9. Boa leitura!
Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM
Era o primeiro dia da semana após os trágicos acontecimentos da Sexta-feira Santa. Alta madrugada, estando ainda muito escuro, Maria Madalena foi ao túmulo. Queria prestar uma última homenagem àquele que tanto representava para ela, seu Mestre e Senhor.
Quando lá chegou, ficou estupefata e angustiada ao verificar que o túmulo estava aberto. A pedra tinha sido retirada. Sem perder um instante correu a prevenir Simão Pedro e o outro discípulo, do qual Jesus era particular amigo. Os dois acorreram de imediato. Vendo o túmulo aberto, entram nele, descobrem as faixas no chão, e dobrado à parte, o sudário que lhe cobrira a cabeça. João “viu e acreditou”, diz o evangelho. Mas nem ele, nem Simão viram o Senhor. E regressaram à casa. Maria, essa continuou ao pé do túmulo, banhada em pranto, com o olhar fixo na abertura escancarada. O espanto inicial deu lugar à desolação. Não pôde conter as lágrimas.
Jesus tinha sido para ela a luz da vida. Tinha-a libertado, levando-a a descobrir a verdadeira vida e o verdadeiro amor. E ela, com toda a sua alma apaixonada, seguira-o até o fim, até junto da cruz, sofrendo, por vê-lo sofrer no mais completo abandono. Após o repouso obrigatório do sábado, logo ao raiar da aurora do domingo, acorreu pressurosa ao túmulo, a fim de usufruir um pouco da presença do Mestre ao pé de seus restos mortais. Mas o túmulo estava vazio.
Como se não tivessem contentado com fazerem-no sofrer e morrer e terem-no coberto de opróbrios diante de todo o povo, só faltava agora roubarem-lhe o corpo, fazendo-o desaparecer por completo. Aos olhos de Maria Madalena, o céu e terra passaram a estar privados da luz. Ela vivia um desses momentos de desespero em que a pessoa não consegue libertar-se da ideia de que o mundo não tem sentido, perante o vazio onde se afundam todas as esperanças, certezas e amores.
Não restava qualquer vestígio sensível do Mestre amado e adorado. Nenhuma relíquia daquele que dera sentido à sua existência, à sua ânsia de viver. A vida para ela perdera todo o sentido.
Entretanto, ao inclinar-se para o interior do túmulo, viu dois seres de luz, dois anjos vestidos de branco, sentados no lugar onde fora deposto o corpo de Jesus. Perguntaram-lhe eles: “Mulher, por que choras?” Ela explicou: “Porque levaram o meu Senhor, e não sei onde o puseram”. A presença nesse lugar de dois seres de luz, parece não ter impressionado, e muito menos esclarecido: é luz que não ilumina. Por mais extraordinária que seja, essa presença não lhe interessa. Só pensa numa coisa: roubaram-lhe o Senhor. Nem lhe aflora uma ideia de ressurreição. Uma vez que o corpo de Jesus não está lá, só põe a hipótese de alguém o ter tirado, de ter sido roubado. Maria não veio ao sepulcro à procura de uma pessoa viva, mas apenas dos restos mortais de seu Senhor e Mestre, do último sinal de uma presença adorada. Estava tão longe de esperar encontrar vivo o Senhor, que, ao voltar-se e ficar na presença dele não o reconheceu! No entanto, é ele, nem mas nem menos, que está ali, à frente dela, e lhe pergunta, por sua vez: “Mulher, porque estás a chorar? A quem procuras?” Com os olhos inundados de lágrimas, até se compreende que não o tenha reconhecido por seu aspecto. Mas nem mesmo pela voz o identificou, tão obstinada com a ideia de encontrar apenas um corpo inerte. Imaginando que fosse o encarregado da propriedade, suplicou: “Se foste tu que o retiraste, diz-me onde o puseste e eu vou buscá-lo!”
Jesus chamou-a, então pelo, nome: “Maria!” Essa palavra simples, pronunciada num tom afetuoso em que Jesus a terá dito, surtiu um efeito mágico: Maria como que despertou, liberta de um pesadelo. Abriram-se- lhe os olhos, ficou delirante. Era ele, o Mestre e Senhor! Rabuni, exclamou. E num arroubo um tanto estouvado, quer tocar-lhe, agarrá-lo, prendê-lo… Como se tivesse medo de perdê-lo de novo. Não. Não se trata de um sonho ou de uma ilusão. Ela está tocando-lhe, embora ele resista: “Deixa-me, eu ainda não voltei para o meu Pai. Vai ter com os meus irmãos e dá-lhes o recado que eu volto para o meu Pai e vosso Pai, para o meu Deus e vosso Deus”. Palavras espantosas, cheias de mistério e também prenhes de sentido, encerando toda a mensagem pascal que é mensagem de vida.
No seu enlevo impulsivo, Maria imaginava ter reencontrado Jesus tal como o tinha conhecido antes, o Mestre a quem acompanhara nas andanças da Galileia. E não perdia tempo a repô-lo no seu quadro familiar: estava já a vê-lo nesse rodopio de peregrinações, entrecortado de pausas para descanso e para conversas simples sobre o dom de Deus. Era a mesma pessoa, sem dúvida, aquele que ela acabava de encontrar, e viva como antes. Só que a nova vida tinha outra dimensão. Essa pessoa já não era o Rabi a quem ela fora tão dedicada, numa veneração sem limites. Agora não se deixava encerrar num universo limitado e familiar. Passou a ser o Senhor dos vivos. Foi isso mesmo que Jesus tentou levá-la a compreender, com brandura e delicadeza. Pouco a pouco, docemente, foi lhe abrindo os olhos, para ela não ficar cega, deslumbrada com sua majestade.
As palavras que lhe dirige são um convite a que ela o procure exatamente onde ele agora se encontra, onde vive em plenitude, voltado para o Pai: “Estou de volta para meu Pai e vosso Pai”. Há que entender estas palavras como o ruído de uma torrente caudalosa a refluir para a nascente donde emanara. Nesse movimento de retorno, Jesus não vai sozinho: sobe para o Pai com todos os seus irmãos. É a humanidade inteira por ele guindada pela luz. É o velho desejo de atingir nele a plenitude da vida. “Quando eu for levantado da terra, hei de atrair todos a mim”, tinha ele declarado (Jo 12, 32) . Maria Madalena pretendia reter Jesus. Ele, por sua vez, convida-a a ela, juntamente com todos os seus “irmãos” a seguirem-no em seu movimento. É um convite à participação no júbilo pascal, na alegria da comunhão com o Pai: “Se me tivésseis amor, até vos alegraríeis com minha ida, sabendo que eu vou para o Pai…” (Jo 14,28). Jesus quer que a sua alegria se comunique a nós, pois foi abrir-nos o caminho e levar-nos consigo para o seio do Pai, no seu regresso vitorioso.
No princípio de seu evangelho, João apresentara os discípulos a fazerem a Jesus uma pergunta: “Onde é que moras?”; e Jesus a responder-lhes: “Vinde e ver!” Na parte final do evangelho, mostra-lhes onde na verdade ora: no seu relacionamento com o Pai, na comunhão de amor com ele – um comunhão de amor a que também nós nos associamos .
“É melhor para vós que eu vá”, dissera Jesus aos discípulos na última conversa havida com eles antes de morrer. E explicava: “Seu eu não for, o Espírito não virá para vós. Mas seu for, em mesmo o enviarei” (Jo 16,7). “E quando vier o Espírito da verdade, vai mostrar-vos toda a verdade (16, 13) “Vós vereis então que eu vivo e vós igualmente haveis de viver. Nessa altura sabereis que eu estou unido ao Pai e vós a mim…” (Jo 14, 19-20).
Quando Jesus percorria os caminhos da terra instruindo multidões ou discutindo com escribas fariseus, os discípulos que o acompanhavam viam-no de perto, de muito perto. Mas que viam eles? Um homem fora do comum, sem dúvida, que despertava o entusiasmo do povo pelo poder dos milagres e pela autoridade do ensino. Na melhor das hipóteses, consideravam-no um enviado de Deus, o seu Messias. Mas simplesmente um homem com sua fisionomia própria, os seus traços característicos, o seu timbre de voz, o brilho de seu olhar, seus gestos delicados, sua maneira típica de ensinar… Tantos pormenores exclusivos e únicos que o distinguiam de todos os mais. Os discípulos ficaram cativados, e ficaram presos a essa figura radiosa. A proximidade sensível e carinhosa do Mestre, a sua autoridade calma e soberana tinha-os impressionado e seduzido. No entanto, precisamente esta imagem humana não os deixava descobrir o que Jesus tinha mais interesse e revelar-lhes: a vida profunda cujo segredo ele possuía. A circunstância de se viver muito perto de uma pessoa pode contribuir para não a conhecer bem. “Há tanto tempo que convivo convosco e não me conheces?”, dissera Jesus a Filipe. Esse discípulo, como os demais, pensavam que o conheciam perfeitamente. Mas a verdade é que só o conheciam por fora. A familiaridade com o Mestre, reforçando os aspectos humanos da convivência, fazia com que o seu olhar não passasse além das aparências sensíveis.
Por isso, o Mestre os prevenira: “É bom para vós que eu me vá…” (Jo 16,7). Era necessário que Jesus se afastasse dele, que os privasse de sua presença sensível, carnal a fim de Espírito poder vir abrir-lhes os olhos para sua presença espiritual. Era preciso que o ídolo, por ser tão sedutor e humano, desaparecesse, permitindo que se revelasse o ícone do Pai. “Nessa altura sabereis que eu estou unido ao Pai, e vós a mim, e eu a vós” (Jo 14,20); “vereis que eu vivo e vós também vivereis” (Jo 14, 19).
Da mesma forma, Maria Madalena ficara presa a uma visão demasiadamente humana de Jesus. Mas os olhos iam-se-lhe abrindo à luz pascal: “Eu vi o Senhor”, não tardará a dizer. Viu e acreditou. No Jesus ressuscitado podia contemplar essa vida eterna voltada para o Pai, a arrastar no seu ímpeto de amor e de comunhão a humanidade inteira, agora renovada. “Vai dizer aos meus irmãos que estou prestes a subir para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus”. Era o cântico de uma nova criação. Como diz São Paulo: “Ainda que nutro tempo eu tenha tido acerca de Cristo um conceito demasiadamente humano, agora não penso assim. É que quem vive unido a Cristo torna-se um pessoas nova. As coisas antigas passaram: tudo é novo” (2Cor 5, 16-17).