Irmãs Clarissas – Elementos de Formação – III
EMAÚS: FASCINANTE E INESQUECIVEL
“Acreditei que minha lareira estava apagada, revolvi as cinzas e queimei a mão” (Antônio Machado)
Lucas 24, 13-35
No meio de vós está alguém que não conheceis.
João 1, 26
A presença do Ressuscitado é invisível e silenciosa. Torna-se visível no rosto de um desconhecido, de um peregrino que se torna companheiro improvisado de caminho e fala através da Escritura. A Bíblia e o outro homem, a Palavra de Deus contida nas Escrituras e o rosto do outro, sobretudo do estranho e do pobre, são lugares por excelência em que a Presença do Ressuscitado pode encontrar-nos, recordando-nos o mandamento evangélico: ama Deus e o teu próximo.
Luciano Manicardi
Nos dias da semana santa e no tempo pascal somos convidados a percorrer um caminho que vai de Jerusalém até vilarejo conhecido pelo nome de Emaús. Um caminho curto de poucos quilômetros. Não propriamente uma estrada. Queremos tentar ver e escutar, avaliar e discernir. Dois homens acabrunhados e um encantador peregrino que se associa ao caminho e não declina o nome. Semana santa e tempo pascal. Tempo de visitar a estalagem de Emaús, mesmo com o isolamento decretado devido a um tempo de provação.
“Dois discípulos de Jesus se afastam de Jerusalém, abandonando o grupo dos seguidores que fora se formando em torno de Jesus. Morto este, o grupo vai se desfazendo. Sem ele não tem sentido continuar reunidos. O sonho se desvaneceu. Ao morrer Jesus, morre também a esperança que ele havia despertado em seu coração” (Pagola, Lucas, Vozes, p.362).
Quantas vezes já celebramos a semana santa! Corremos o risco de que as coisas aconteçam por acontecer. Ritos e nada mais. Mecanicamente, rotineiramente. Quantas maneiras de ver o Senhor ressuscitado! Algumas nitidamente ingênuas. Outras por demais complicadas, fantasiosas e artificiais. Passam os tempos, a vida se esvai e não podemos deixar de viver a graça de estar com o Ressuscitado nesse tempo que se chama vida e dizer, no regime da fé, que vimos e vemos o Senhor. Estamos em pleno regime da fé. “Como sois lentos para crer…” Há uma pergunta a ser respondida: Onde e como a presença do Ressuscitado pode nos encontrar?
Cléofas e seu companheiro talvez tenham estado a poucos metros do local onde “Deus morreu”, num louco desfecho de amor e no mais denso abandono. Os dois deixam o cenário. Dão as costas a Jerusalém. Vão na direção de um vilarejo que ficou para sempre no coração dos discípulos de Jesus, Emaús. Um caminho, liso ou não, seco ou molhado. Talvez outros peregrinos e peregrinas voltando de Jerusalém um pouco à frente, um pouco atrás. Os dois caminhavam pausadamente, falando pouco ou nada. Nesses momentos de aperto doído do coração a gente costuma falar para si mesmo. Um diálogo que é mais monólogo. Sem falar e sem chorar a dor sufoca.
Um peregrino desconhecido mostra-se interessado em conversar com os dois, esses dois com a decepção cavada no semblante. Esperavam e nada havia acontecido… O desconhecido tem vontade conversar com eles. Seus olhos não conseguiam ver naquele homem nada além de peregrino meio desinformado dos acontecimentos… Nada mais…
E era ele, aqueles que eles pensavam estar morto… Ali estava. O peregrino evoca as Escrituras… Era fundamental dar crédito às Escrituras… Fazê-las arder dentro do coração. Crer que o Altíssimo estava acompanhando os passos da humanidade… Desfilaram evocações e evocações…. Abraão, Moisés, Davi, promessas, um servo… esperança… ele vem…. Cléofas e seu companheiro poderiam evitar esse rosto triste se tivessem acolhido mais profundamente em seu coração a Palavra.
“A intenção do narrador é clara: Jesus se aproxima quando os discípulos o recordam e falam dele. Torna-se presente ali onde se comenta o seu Evangelho, onde há interesse por sua mensagem, onde se conversa sobre seu estilo de vida e seu projeto. Não está Jesus tão ausente entre nós porque falamos pouco dele?” (Pagola, Lucas, p.362).
“Esse “acendedor” de ardor ameaça ir embora. Sua missão havia terminado. Cleófas e seu companheiro pedem, no entanto, que ele se digne de entrar na pousada… É tarde e a noite desce. Há uma súplica deles que vivemos repetindo: “Fica conosco, Senhor, porque é tarde e o dia vai declinando”. Que ele fique em nossa história, nosso mundo, nossa Igreja. Os discípulos sentiram que algo começava a arder dentro deles. É tarde e a vida ia acabando. Chegamos então ao ponto da refeição feita em Emaús. O reconhecimento de Jesus foi preparado pelo “ardor” que neles nascera na lembrança ou explicação das Escrituras. Torna-se mais claro na fração do pão. O convidado toma o lugar principal à mesa. Eram os gestos da Ceia!!!E eles o reconhecem… E o peregrino desaparece diante dos olhos dos dois… Os olhos se abriram…o cansaço sumiu como um gato assustado. Voltam a Jerusalém… se unem aos outros que por sua vez andam levando ao fundo do coração as experiências que andaram tendo de Jesus. “Os dois contaram o que tinha acontecido no caminho e como tinham reconhecido Jesus a partir do pão”.
Tempo pascal. Tempo de aleluias, ainda que com apertos no coração, nesse tempo sombrio de dores lancinantes, de medo, de mortes, de urnas funerárias enfileiradas esperando o sepultamento ou a cremação terrível guerra, de um minúsculo vírus que fez o mundo e a vida parar. Temos vontade dizer ao Senhor, que vive perto de nós, que se esconde nas unidade de tratamento intensivo, que atua pelas mãos de médicos e de heróis de todo jeito que estamos sofrendo muito e que ele tenha piedade de todos nós.
No meio de vós está alguém que não conheceis!
“Acreditei que minha lareira estava apagada, revolvi as cinzas e queimei a mão”.