Frei Luiz Iakovacz
A cada primeiro Domingo do Advento, inicia-se um novo Ano Litúrgico. Nas leituras dominicais, é proclamado um dos três evangelistas sinóticos (Mt, Mc e Lc), enquanto que o de João ocupa um espaço maior nos ciclos do Natal e da Páscoa.
No Ano C, é o Evangelho de Lucas. Quem é ele?
Não é judeu, não conheceu Jesus e nem sequer ouviu suas pregações. Como pôde escrever duas obras, Evangelho e Atos dos Apóstolos? Merecem crédito?!
Segundo os críticos bíblicos do século II, Lucas é um antioqueno que se converteu ao cristianismo através dos vários missionários que passaram por aquela cidade siríaca: Barnabé, Paulo, Pedro, Marcos, Silas e outros. Nesta comunidade havia “profetas e doutores” (At 13,1), instruídos por Barnabé e Paulo (11,27), Tiago e Silas (15,32). É provável que Lucas fizesse parte desse grupo.
A Bíblia fala pouca coisa dele. Diz que era médico (Cl 4,14) e companheiro das viagens missionárias de Paulo. Isso se depreende porque o autor se inclui ao descrever algumas atividades, como “íamos à oração”, “embarcamos para Filipos” “encontramo-nos em Trôade”, “encontramos um navio e fizemo-nos ao mar” (cf. At 16,10-12; 20,5-8; 21,1-18; 27,1-27).
Foi colaborador de Paulo (Fm 24) e esteve em Jerusalém com ele (At 21,15-35). Numa de suas prisões, queixa-se que todos o abandonaram, “somente Lucas está comigo” (2Tm 4,11).
Por estes textos, podemos concluir que Lucas cultivou sua fé e participava de uma comunidade onde havia “profetas e doutores”. Mesmo assim, não é o suficiente para dar-lhe crédito total.
A crítica bíblica atesta que, ao escrever o Evangelho, Lucas tinha em mãos o de Marcos e a Fonte Quelle. Comparando um ao outro, percebemos que o Evangelho de Lucas tem 1.149 versículos, dos quais somente 424 são comuns. Os outros 548 são próprios de Lucas. Onde foi buscá-los?!
O prólogo (Lc 1,1-4) traz várias e substanciosas informações. Diz, textualmente, que muitos escreveram sobre a doutrina de Jesus. Não bastaria isso? Por que escrever mais? Isto não excita a curiosidade?
Diz, também, que quer apresentar uma obra de “maneira ordenada”. Para isso, “investigou tudo, cuidadosamente”, consultando, inclusive, “testemunhas oculares” e que se tornaram “servidores da Palavra”. Dedicou seu trabalho a Teófilo para que “conheça melhor a solidez da doutrina em que foste instruído”.
Estamos, portanto, diante de um pesquisador sério. Não só! É, também, um teólogo-pastoralista. Escreve para as comunidades recém-fundadas, composta de recém-convertidos gentios.
Seu Evangelho apresenta Jesus fazendo uma grande viagem da sua cidade (Nazaré) até a capital Jerusalém, onde vive os últimos dias. Durante o peregrinar, evangeliza nas sinagogas e praças, nas famílias e nas perguntas que lhe fazem. Os Atos dos Apóstolos mostram discípulos e comunidades evangelizando a partir de Jerusalém, passando pela “Judeia, Samaria, até os confins do mundo” (At 1,8). As duas obras estão bem concatenadas entre si e com um invejável fio-condutor.
Jesus age com a “força do Espírito Santo” (Lc 4, 1.14), faz o bem e cura a todos. Os Atos mostram as comunidades testemunhando Jesus com a mesma força do Espírito Santo (At 4,8), curando doentes (3, 1-10) e sofrendo martírio (7, 54-60). O Espírito Santo é o grande protagonista. É citado 36 vezes, praticamente, o dobro dos outros Evangelhos e, nos Atos, 70 vezes.
O curioso é que nenhum outro texto bíblico mostra, tão claramente, o caminho de Jesus e o das comunidades.
Cristo é o Salvador de todos, judeus e não judeus. O objetivo de Lucas, porém, é “solidificar a fé” das comunidades convertidas. Tem um carinho especial aos grupos marginalizados: mulheres, estrangeiros, pobres, doentes e pecadores.
As perícopes que lhe são próprias encaixam-se, perfeitamente, com os destinatários: missão dos 72 discípulos, o bom samaritano, o filho pródigo, Zaqueu, o rico opulão e o pobre Lázaro, a viúva de Naim, o bom ladrão, os discípulos de Emaús.
É também o protagonista das mulheres. Algumas delas, “cheias do Espírito Santo”, profetizam e bendizem a Deus, como Maria (1,35. 46-56), Isabel (1,41-45) e Ana (2,36-38). Outras (Maria Madalena, Joana, Susana) são suas discípulas e O sustentam com seus bens (8,1-3). São elas que vão ao encontro de Jesus no caminho do Calvário (23,27-28) e estão ao pé da cruz (23,49).
É curioso este fato: os Livros Apócrifos pululavam em todos os recantos e, para serem bem acolhidos, davam-lhes nomes de um dos apóstolos, de profetas ou patriarcas e, até, de mulheres.
Por que será que ao autor de uma obra tão bem estruturada e fundamentada nenhum apócrifo lhe é atribuído?
Por fim, a curiosidade da dedicatória, “caríssimo Teófilo”, que pode ser o mecenas que custeou a obra, bem como um personagem romano para que favorecesse a expansão do cristianismo. Ou – como é o consenso mais provável – seja a própria etimologia da palavra, “amigo de Deus”.
Incluo-me entre aqueles que, durante este Ano C, procurarão ser um “mecenas” gratuito do Evangelho, um “personagem” líder que cria estruturas para que a “solidez da doutrina” prospere e, acima de tudo, um apaixonado “amigo de Deus” que faça “arder os corações quando explicar o sentido das Escrituras” (Lc 24,32).