Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Fonte de vida

06/01/2023

Imagem: Vitral da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Petrópolis (RJ)

1. Todos os discípulos de Cristo devotamos uma especial veneração pelo seu lado aberto no alto da Cruz. Não somos cristãos da sexta-feira das dores, mas do domingo da ressurreição. Isto não impede que, em nossa contemplação do mistério de Cristo, nos demoremos em olhar seu lado aberto. Foi o evangelista João que nos transmitiu de maneira toda própria as coisas que aconteceram no alto da cruz. Os judeus não queriam que os condenados ficassem na cruz. Pediram a Pilatos que fossem quebradas as pernas dos crucificados e que seus corpos fossem retirados. Isto fizeram com os dois malfeitores que haviam sido crucificados com ele. “Quando chegaram, porém, a Jesus e viram que estava morto, não lhe quebraram as pernas, mas um dos soldados traspassou-lhe o lado e logo saiu sangue e água” (João 19, 33-34).

2. A cena da crucificação é fundamental. Um homem jovem não consegue escapar da morte violenta e injusta. Injunções e circunstancias tornam-no sem defesa. Não se tratava de uma mera fatalidade, mas na coerência levada até o fim. Uma vida truncada. Uma existência eliminada. Morte… a morte…sempre a presença da morte. Os próximos mais próximos se vão. Reina o medo. Impera a covardia. Ele, elevado da terra, entre a terra e o céu. Seu peito arfa, seus olhos se movem, seus braços e penas se estiram para não sentir a dormência…O Menino das Palhas, o jovem rabi está atado, sujo, com suor, catarro no rosto, abandono em todos os sentidos. Parece mesmo que o Pai, o Pai do Tabor e do Jardim de Gestsêmani estava distante, muito distante. “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”

3. Há o momento dos momentos. O condenado sente-se asfixiado. Tudo incomoda. O fim se avizinha. Jesus reúne ainda na tona de sua vida tudo o que vivera, lembra-se da missão e compreende de maneira extremamente existencial: “Não existe maior amor do que dar a vida por seus irmãos”. Estava na hora. Era a hora das horas. Pronto. “Em tuas mãos entrego o meu espírito”. Não existe nada mais belo, mais redentor, mais nobre, mais essencial do que o dom do amor. O mais belo de todos os filhos dos homens, o menino das palhas, o Verbo de Deus tornado carne, entrega-se, ama, redime, restaura. Mas João ainda chama atenção para o golpe da lança.

4. Houve a morte… mas logo, imediatamente, saiu sangue e água. Depois da morte, logo a vida. Anúncio da ressurreição? Somos convidados a contemplar todo o mistério da páscoa na cena última do Calvário. Contempla-se “um coração morto e ferido pela morte, mas um coração que, do mais profundo da morte, no próprio instante em que é aniquilado, deixa prorromper uma fonte de vida, água e sangue, sinais a ressurreição. Como disse Orígenes, o novo Adão adormecido sobre a cruz, ‘não foi como os outros mortos, mas do mais profundo da morte, manifestou sinais de vida na água e no sangue e foi, por assim dizer, um morto novo”. Importante captar a radical novidade do acontecimento que se realiza apontando para o antigo sono. Ele constitui um dos sinais de João. Aquele cadáver suspenso no maldito madeiro já é o corpo do ressuscitado” (É. Glotin, Il m’a aimé, Paris, Apostolat des éditions, 1979, p. 17-22).

5. No lado aberto, a tensão entre morte e vida é evidente. João diz logo, imediatamente saiu sangue e água. O texto marca a continuidade. Opera-se uma dupla ação histórica e simbólica. De um lado a transfixação que constitui o último rito de imolação praticado no verdadeiro Cordeiro pascal. Havia uma profecia que dizia que nenhum de seus ossos seriam quebrados. E, de outro lado, a abertura da fonte da água viva que representa a primeira efusão do Espírito, profetizada pelo próprio Jesus: “No último dia, o mais importante da festa, Jesus falou de pé e em voz alta: Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crê em mim, como diz a Escritura, do seu interior correrão rios de água viva. Referia-se ao Espírito que haviam de receber aqueles que cressem nele. De fato, ainda não tinha sido dado o Espírito porque Jesus ainda não tinha sido glorificado” (Jo 7, 27-39). Este acontecimento, paradigma de toda efusão vital do Espírito, se dá no momento em que Jesus passa desse mundo para o Pai. Morrendo na fraqueza da carne, Jesus efunde o Espírito.

Texto inspirado no livro Il cuore di Cristo e i suoi simboli, Charles André Bernard, Ed. AdP, AdP, Roma, 2008, p. 39-41).


Frei Almir Ribeiro Guimarães

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