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“O rito modifica o cotidiano, salvando-o do banal”, diz Pe. Vanildo na Semana de Catequese

24/08/2021

Notícias

Teve início ontem, 23 de agosto, a Super  Semana de Catequese, um evento da Editora Vozes que vai até o dia 29 de agosto, que é on-line e gratuito. E o início não poderia ser melhor com o Pe. Vanildo de Paiva (@vanildopaiva), professor titular da Faculdade Católica de Pouso Alegre, nas áreas de Introdução ao Exercício do Filosofar e demais disciplinas filosóficas, incluindo Psicologia Geral. Atua principalmente nos seguintes temas: cuidado religioso, desenvolvimento humano e espiritualidade, sexualidade e fé, relações humanas em ambientes religiosos, formação de educadores e catequistas etc.

“É muito grande a minha alegria, a minha satisfação em estar aqui conversando com vocês especialmente sobre este tema tão especial que nos foi proposto nesta noite, que é a “A Catequese, a liturgia, de modo mais particular, aprender com os ritos”. É um tema bastante instigante e bastante atual e acredito que vai ser importante refletirmos sobre esse assunto”, saudou os internautas do Youtube da Editora Vozes.

Confira a palestra “Catequese litúrgica: deixar-se educar pelos ritos”:

Começo trazendo uma provocação, que já há um bom tempo foi apresentada por Romano Guardini, 1923, um famoso liturgista. Apesar de ser uma provocação antiga, é muito atual. Ele diz o seguinte: “O aspecto visível, concreto da religião, o rito e o símbolo, vem compreendido sempre menos, não é mais acolhido e vivido de modo imediato”. Parece me clara esta provocação, mas onde é que Romano quer chegar com isso? O que é que ele está apresentando como preocupação ou, numa linguagem mais coloquial, que denúncia a sua fala nos traz?

O foco aqui é o rito. Quando falamos de ritos, estamos falamos de todo aquele complexo de ações, de símbolos, de sinais, que são mediações importantes, necessárias de uma determinada religião, no caso a nossa liturgia para que se faça a experiência do mistério de Deus.

Romano está dizendo que o rito vem sendo compreendido cada vez menos pelas pessoas. Não é mais acolhido e não é vivido de modo imediato. Isso me parece muito grave. Se for de fato como ele aponta, nós temos um sério problema aqui porque se o rito se esvazia, se perdemos essa dimensão mistagógica da própria liturgia, então a liturgia também se esvazia e, por conseguinte, a nossa expressão de fé se torna nada menos do que um teatro.

Então vamos tentar aprofundar um pouco, ver até onde, de fato, Romano tem razão naquilo que ele coloca.

  1. Na origem do cristianismo, nós encontramos uma experiência muito concreta. 

E que experiência é essa? Uma experiência que é uma pessoa, a figura de Jesus Cristo, o Filho de Deus que se fez homem, que assumiu uma mediação concreta para falar conosco, para estar conosco, para nos salvar e que nos deixou o rito religioso como um caminho especialíssimo para a experiência da sua presença continuada na nossa história: a Eucaristia, e depois todos os ritos que a Igreja foi elaborando e colocando à nossa disposição para expressarmos a nossa fé.

Então podemos dizer que reconhecer o Crucificado, o Ressuscitado, e aderir a ele – o que chamo aqui de identidade cristã – é um ato que se expressa mediante ritos (os sete sacramentos, fração de pão, batismo, imposição das mãos, etc). Portanto, para fazermos a memória do Cristo. E memória, nós sabemos muito, não é apenas uma lembrança mas uma atualização, uma experiência. Nós precisamos dos ritos.

Só que na contramão desta necessidade que a Igreja nos coloca e que nós mesmos, antropologicamente nos colocamos, temos o homem contemporâneo, a mulher contemporânea, que acredita ser possível ter uma boa relação com Deus fora da ação ritual, ou que cria outros caminhos paralelos aos ritos cristãos litúrgicos para fazer sua experiência de Deus. Não podemos fechar toda a experiência de Deus na liturgia, que para a própria “Sacrosanctum concilium” é muito claro quando diz que a liturgia não é uma única maneira do ser humano expressar e de viver a sua fé, mas tudo passa por ela. Porque ela tem um lugar relevante, diríamos prioritário.

 

Portanto, não é possível fazer uma boa experiência de fé sem mergulhar na dimensão ritual, na dimensão litúrgica, que constitui a nossa fé de maneira concreta, de maneira expressiva.

No entanto há uma dificuldade hoje de as pessoas aderirem aos ritos cristãos porque nós vivemos em outros tempos, ou num outro espaço. Há outros símbolos, sinais, que nos dispersam daqueles propostos pela liturgia: a pressa, a dificuldade das pessoas de formarem comunidades ritual. Hoje com a invasão das mídias, nós temos um leque de opções que acabam às vezes tentando substituir aquelas primeiras e originais, conservadas pela tradição, que são os ritos. Estou dizendo estar lá na comunidade, reunido em assembleia, participando de um sacramento, diante de alguns sinais, gestos, ações, que nos querem colocar em contato com Deus e expressar a nossa fé.

  1. Por isso é preciso reconsiderar hoje a questão do rito para a fé. 

E para isso, nós temos forçosamente que dizer que não existe a compreensão da fé sem a compreensão do rito. Vamos pegar por exemplo a Missa e nós, catequistas, sabemos muito bem como é difícil, às vezes, despertar no catequizando o interesse pela Missa, a participação alegre e frequente na celebração eucarística. A que se deve isso? De um lado, há uma mentalidade que hoje descarta o rito, mas também um desconhecimento do rito. Normalmente, as nossas catequeses ainda não preparam os catequizandos para a vida litúrgica, de maneira experencial, vivencial, mistagógica. E, no entanto, nós temos que entender que não é possível compreender a fé sem os ritos que expressam essa fé, que celebram essa fé. Portanto, nada mais sério e corajoso do que cumprir uma ação sagrada.

Quando estamos em assembleia para uma celebração, nós estamos fazendo um ato grave – grave no sentido de profundo, de muito sério, de muito bonito. Mas não estamos brincando de faz-de-conta quando estamos num rito litúrgico. Não estamos teatralizando, não estamos fazendo uma coisa performática simplesmente, mas estamos celebrando a nossa fé, criando conexão com o sagrado, expressando aquilo que acreditamos e nos fortalecendo para viver aquilo que nós acreditamos. Por isso, o rito é bastante sério.

Há o perigo do formalismo, do rubricismo, da exterioridade vazia, de fazer por fazer um rito. É estar ali e não saber por que levanta a mão, por que é que temos uma cruz diante de nós, qual o sentido do pão e do vinho, oferecidos pela comunidade, depois consagrados pelo Espírito Santo, por mediação do sacerdote. Enfim quando a gente não conhece o porquê e não se envolve com a ação ritual, nós corremos o risco de ficar numa repetição mecânica, numa exterioridade vazia, num formalismo muito grande, que não satisfaz, que não preenche o coração que não traz sentido para a nossa vida. Por isso, mais do que nunca é preciso que sejamos educados para o/pelo rito, enquanto o rito é objeto da nossa reflexão, do nosso conhecimento. Mas também educados pelo rito, porque não há outro caminho que desenvolva em nós o senso vivencial do rito a não ser celebrando. Um rito, ele só pode ser aprendido e assimilado no coração, na mente, na vida, pela força dele próprio e não por ouvir falar a respeito dele.

E sabemos que cabe a nós, catequistas, aos agentes da liturgia, às lideranças de um modo geral ajudarem as pessoas nessa educação para o rito. Nós só teremos assembleias realmente capazes de entender aquilo que o Concílio pediu, isto é, participar de maneira consciente, ativa, de maneira piedosa da liturgia, se essa assembleia for educada. Se esta assembleia estiver aberta numa condição de acolhedora do rito cristão que lhe é proposto.

  1. O rito faz memória dos eventos sagrados

O que é o culto cristão? Quando nós perguntamos o que é o culto cristão, estamos perguntando o que é o cristianismo, porque o culto revela o cristianismo. A liturgia é a epifania da nossa fé. É a revelação daquilo que nós acreditamos. Por isso mesmo, se nós não compreendemos a linguagem litúrgica e não acolhemos a linguagem do rito de maneira vivencial, nós acabando ignorando a nossa fé e desconhecendo o nosso próprio cristianismo. Porque essas coisas não aprendemos somente por ouvir falar, mas na experiência que nós vivenciamos.

A dificuldade do ato ritual tem a ver com a compreensão inadequada do sentido do evento central da nossa fé, que é o Mistério Pascal. Vamos pegar outro exemplo diferente da Missa, para que isso fique mais claro para nós. Creio que todos nós fomos várias vezes em celebrações de casamento. O rito do matrimônio é belíssimo, marcado por muitos sinais, símbolos, muitas ações que estão ali encadeados para revelar uma só verdade. Assim como os noivos estão formando uma aliança de amor, Cristo também ama a sua Igreja, a sua esposa. E por ela deu a vida. Aí está o mistério pascal. Um amor sem limites que dá a vida e que é atualizado na experiência de um casal que se casa na Igreja. Mas agora eu pergunto: O desconhecimento do rito e o modo como o casamento normalmente é celebrado como é se que consegue transmitir essa verdade? Será que os convidados que estão ali estão preparados para mergulhar naquele rito, de fato chegar nessa experiência do mistério pascal? Será que as pompas, as distrações que vão sendo penduradas no rito não ofuscam a grandeza desse evento sagrado? São perguntas que precisamos fazer para perceber o quanto estamos distantes de conhecer o  rito na sua profundidade e deixar que ele cumpra a sua finalidade em nossa vida.

  1. Fazer memória do evento sagrado

Jesus não é uma verdade para crer ou um exemplo moral a seguir apenas. Ele é o Sacramento, o Mistério a ser celebrado. Então não é apenas uma verdade que eu vou assimilar, conhecer coisas sobre Jesus ou apenas um líder que me traz uma proposta ética e moral. Sim, Ele tudo isso, mas não apenas tudo isso. Ele é o mistério a ser celebrado e aí, muitas vezes, a assembleia fica distante disto porque ela não dá conta de entrar no rito de maneira plena. As estatégias rituais a serviço da experiência (ex+periência) do Mistério que salva e que liberta, porque toda vez que celebramos a nossa fé, Deus nos salva, Deus nos liberta, Deus nos insere nesta dinâmica pascal.

Ex+periência, uma palavra mágica, que tem outras palavrinhas dentro dela. Experiência significa um saber, uma ciência que eu só posso ter acesso a ela permitindo que a realidade externa, o que acontece ao meu redor, entre em mim e se incorpore em mim. Isso é a experiência. Será que fazemos verdadeiras experiências de fé na liturgia ou ainda estamos como espectadores que assitem de longe ou que se apegam, às vezes, a detalhes secundários sem o foco no mistério? Aí está a questão. Nós deixamos que o rito nos eduque. Nós somos preconceituosos, resistentes, ignorantes aqui em relação ao poder que o rito tem de nos comunicar a fé e de nos transformar.

  1. O Mistério de Cristo: fato + rito

O Mistério de Cristo, portanto, é um fato que se torna rito e que é celebrado ou concretizado hoje para nós na mediação do rito. A Memória do evento sagrado exige o intelecto que compreende, exige uma vontade que delibera, mas uma ação que realiza. Quando estamos celebrando a liturgia, não é só passado e nem só futuro que ali estão. Não estamos apenas lembrando algo que aconteceu lá atrás ou algo que é antecipado no rito, mas estamos fazendo uma Ação Ritual, um agir repetido, tradicional e autorizado e é ação, é novidade, é transgressão, é a possibilidade inesperada. 

  1. A relação entre a Páscoa e a nossa vida se dá “aqui” e “agora”

O Culto ritual faz com que a fé em Cristo Senhor permaneça um ato fundamental da vida. A nossa relação com o evento salvífico, com a nossa salvação, com o mistério que nos salva, não é apenas um “dado adquirido”, nem a vida colocada na celebração um “opcional de luxo”, como se fosse um acréscimo que fazemos em alguma coisa. Não! O Rito só será autêntico se mantiver uma relação com o evento que ele traz, isto é o fato da nossa participação no mistério pascal, com a vida que nós colocamos neste mistério. Nós celebramos o Cristo que continua nos salvando hoje, mas nas circunstâncias atuais, a partir da nossa vida, da nossa realidade, daquilo que nós colocamos de nosso no próprio rito que nós celebramos.

  1. Ação ritual: presente, passado e futuro

Portanto, a ação ritual é uma ação que está ligada ao passado, ao evento Jesus Cristo, à salvação trazida por Jesus Cristo e também nos coloca no futuro, enquanto aquilo que nós celebramos provoca em nós uma lembrança e nos convoca para uma vida nova. Por exemplo, oO batismo é uma ação ritual que evoca Jesus Cristo Ressuscitado, porque no batismo nós morremos com ele e ressuscitamos com ele e ao mesmo tempo nos torna homens novos e mulheres novas. O que é passado, o que é velho se foi, as coisas antigas já se passaram como costumamos cantar e nós, homens mulheres novas, para vivermos como batizados, iluminados como sal da terra e luz do mundo. Então, é ali na ação ritual que acontece passado, presente e futuro, se juntam numa só vivência, numa só experiência.

O problema é que a maioria das nossas assembleias não dão conta de entrar nessa dinâmica. Ou porque não consegue linkar com o evento do passado, que se faz presente, atual, que é o mistério pascal, ou porque não percebe consequências do rito, justamente porque ignora a riqueza do rito. No batismo, por que nós temos uma pia batismal, uma água benta, uma vela acesa, um óleo que é passado no peito? Enfim, o desconhecimento de tudo isso empobrece a nossa vivência e porque nós não mergulhamos, não nos deixamos tocar pelo rito. Ficamos impermeabilizados pelo rito. 

  1. A ação ritual reconduz a Igreja à sua fonte e ao seu ápice.

O rito celebrado é “dom da graça” que pode dar à nossa vida a continuidade com a Páscoa. Agora nós somos vítimas, muitas vezes, da incompreensao do rito. O rito ainda nos é escondido demais. Nós vamos para os sacramentos muito aquém daquela participação ativa e consciente que deveríamos fazer porque desconhecemos.

Pelo rito, Igreja e cristão recebem-se a si mesmos, e nele encontram, de modo mais íntimo, o Senhor Jesus. O rito é uma experiência eclesial. É um lugar em que a Igreja recebe a própria identidade. Eu costumo sempre dizer: se você quer saber como é uma comunidade, participe de uma Missa ou de uma celebração da Palavra nessa comunidade. Ali você vai saber quem são aquelas pessoas, como é que se dão as relações de poder ali dentro daquela comunidade, quem manda, quem obedece ou se todo mundo participa, se aquela comunidade é comprometida com a vida, com a realidade, ou é uma comunidade alienada. Se é acolhedora ou não, se tem ali alguns que se impõem e outros que se deixam oprimir. Enfim, tudo está estampado na própria liturgia, basta você participar e analisar a celebração. É claro que você não vai ficar analisando, mas a gente percebe como é que que as coisas acontecem.

  1. O “máximo gratuito”, não o nínimo necessário.

Segundo Andrea Grillo, um liturgista importante também, do “máximo gratuito” e não do “mínimo necessário”. E muitas vezes nós ficamos no mínimo necessário. É estar ali, cumprir preceito e ir para um acontecimento social como alguém como alguém está dizendo no chat. E não deixamos que o rito provoque tudo o que ele tem que provocar, porque já vamos com preconceitos, armados, blindados, com uma visão distorcida ou buscando o rito de uma maneira ideal. E o rito não é uma ideia. É uma experiência. O rito passa pelo gesto e não fica só no conceito. O rito passa pelo tato, pelo gosto, pelos sinais sensíveis e não é apenas uma ideia.

A experiência ritual coloca o cristão em relação com os outros, com o espaço, com o tempo. Entramos numa dimensão totalmente nova, ainda que seja uma dimensão que repita de algum modo a vida, mas numa outra perspectiva, só que infelizmente ainda desconhecemos o poder do rito na nossa vida. 

  1. O rito é lugar da intersubjetividade dos relacionamentos e também das trocas do mundo externo.

A exterioridade corpórea é via de espiritualidade, de uma fé viva, epifania e revelação. O que eu chamo de exterioridade corpórea? Numa celebração eu entro em contato através do meu corpo com o mundo ritual, dos símbolos, dos sinais, e das pessoas que estão ali comigo. Por exemplo, se eu tenho uma vela na celebração, o que uma vela significa? Como é que eu trato liturgicamente o sinal de uma vela? A vela é luz, é sinal da fé, é presença do Ressuscitado. Se eu tenho uma vela apagando, uma vela que não tem chama, uma vela escondida, uma vela maltratada. Como é que aquela vela minguada, vai sinalizar para a assembleia a fé, o Ressuscitado, a vida nova? Mas é pela chama, pelo brilho que entra pelos meus olhos que eu consigo fazer o salto para a experiência do mistério. Se eu recebo uma água benta numa aspersão numa celebração, o contato que o meu corpo tem com aquela água me coloca em contato com o mistério da misericórdia e da salvação. Agora, se a água não chega em mim, se é jogada a conta-gotas em uns e outros, mas não se dá uma aspersão devida à assembleia, como é que aquela assembleia vai fazer uma experiência de fé e ver ali a epifania da bênção e da graça de Deus?

O rito é lugar da intercomunhão solidária, segundo o Pe. Taborda, é condição para que a liturgia exista. É estar com os irmãos na fé formando um só corpo celebrante, onde uns e outros se ajudam na mesma experiência de salvação.

  1. Mediação ritual modifica a vida.

E aqui me vem esta imagem bonita de Moisés diante da sarça ardente. Eu gosto de pensar a liturgia assim. Nós aproximamos do mistério e precisamos tirar as sandálias para contemplá-lo e vivenciá-lo na sua plenitude. Se nós não nos despojamos, não nos rendemos, não nos entregamos ao mistério, o rito não nos modifica, não nos transforma.

Por isso, nós precisamos dar conta de entrar no rito de outro jeito, não às pressas, não no amadorismo, não na resistência, não na mentalidade racional demais, que a modernidade nos trouxe, mas numa outra dimensão, que é a acolhida plena do simbólico. E aí é o grande desafio para nós e para os catequizandos que estão em outra simbologia, da técnica, das redes sociais, do computador, do mundo contemporâneo, e não na nossa simbologia. E quando é que vão entrar? Quando nós os iniciarmos nesse mundo do ritual. Só que às vezes nem nós somos iniciados devidamente e aí fica muito difícil.

O rito deve assumir toda a riqueza de linguagens, dos códigos, das mensagens que conduzem ao essencial. Meus queridos, minhas queridas, os nossos ritos litúrgicos foram cuidadosamente preparados pela Igreja para nós ao longo desses 2 mil anos. É como aquela parábola que ouvimos outro dia no Evangelho: o banquete está pronto, vinde comer! E muitos se acham donos do rito, querem enfeitá-lo do seu jeito, distorcendo o essencial do rito e dificultando o acesso pleno daquilo que é central na experiência do rito. O rito modifica o cotidiano, salvando-o do banal. Coloca-o numa outra dimensão de graça e de kairós, isto é, experiência da graça de Deus. O rito exige disponibilidade, experiência e uma nova percepção.

  1. O que é, então, educar-se pelo/para o rito?

É entrar na dimensão da gratuidade. É buscar a dimensão mistagógica, que é deixar-se levar. Entrar no rito, com a acolhida, com o coração aberto, envolvendo-se, deixando-se levar por esse mistério, deixando-se que Deus nos conduza para dentro de seu coração e de seu mistério.

Redescobrir o valor originário dos símbolos e dos ritos. Os ritos são muito bonitos, muito completos, mas nós desconhecemos. Se você ficar na porta da igreja, no dia de uma celebração, e perguntar às pessoas que estão saindo, a respeito de detalhes do rito, muitas não saberão dizer o que sentiram, o que experimentaram e o que entenderam. E ainda os ritos são tratados de modo muito superficial e pior de tudo: tem muita gente colocando maquiagem em nossos ritos, enchendo nossos ritos de fantasias. O Dom Armando Pujol cunhou uma expressão interessante, que é criatividade selvagem que muita gente coloca na celebração, escondendo o verdadeiro sentido do rito.

É preciso deixar-se formar(dar uma forma) pela palavra, pelo sacramento. Enfim, converter-se à vida da beleza.

  1. Entendeis o que vos fiz? (Jo 13,12)

Jesus era um mistagogo. Jesus, no lava-pés, fez um rito com seus discípulos. Ele levou, com uma experiência, o grupo a aprofundar o sentido da sua vida e da sua morte que estava chegando e deixou a memória do lava-pés como o lado prático da Eucaristia. Mas depois Jesus perguntou aos discípulos:  Entendeis o que vos fiz? Vocês entenderam o que eu fiz? Isso porque Jesus é mistagogo. Ele proporciona uma experiência para a compreensão do seu Mistério.

Muitas vezes, a liturgia para nós é só um discurso e a iniciação litúrgica na catequese é falar sobre a missa, é falar sobre o batismo, é falar sobre a unção dos enfermos. Você já levou os catequizandos no batizado? Já foi com eles participar de um casamento para que eles tenham uma experiência? Já celebrou com eles na sua catequese, usando água, usando cruz, usando luz, usando flores, para que eles pudessem ir entrando nesse mundo do ritual e serem iniciados à linguagem litúrgica? Isso que é deixar-se educar pelos ritos.

  1. Em nossas celebrações…

E aqui não só na igreja, mas nas celebrações catequéticas. Em nossas celebrações, a Palavra de Deus e a palavra da Igreja se unem ao gesto e/ou ao elemento material. Se eu falo da fé, eu uso a vela; se eu falo da misericórdia, eu uso a água; se eu falo da alegria, eu uso as flores; enfim, a palavra vai dando sentido ao gesto. Um pequeno gesto ou um símbolo se transluz, ele muda de sentido quando ele é acolhido na fé e iluminado pela palavra. Então, faz-se a experiência de Deus.

  1. O rito…

O Doc. 107 diz algo muito bonito no nº 82. Ele diz que o rito traz uma preciosa experiência do belo, do sublime, do mistério de amor divino que tudo envolve.

Sabe, amigos, nossa liturgia está precisando de beleza, mas não de beleza da exterioridade, das pompas, das roupas sofisticadas, daquilo que é glamour. Não é isso não. É a beleza que brota do mistério celebrado, da originalidade da nossa fé. A beleza que em última análise é o próprio Deus que é belo em si mesmo.

O mundo nosso está muito feio. Há muita feiura acontecendo. É preciso de um pouco de beleza para salvar o mundo. E essa beleza está no rito litúrgico.

  1. Catequese e uma liturgia a serviço do mistério
  1. Tornar acessível o mistério pela mediação do sinal, que é sensível.

Catequistas, trabalhem com símbolos litúrgicos. Celebrem com seus catequizandos, trabalhem todos os sacramentos com eles não na perspectiva do blá-blá-blá, mas do fazer, do experienciar. Leve para a catequese os sinais sagrados.

  1. Não falar o que iria fazer, mas fazer o que iria falar.

Uma catequese mais prática, mais vivencial, mais celebrativa, menos informativa, menos discursiva, mais ação.

  1. Esclarecer a compreensão do sinal com a Palavra de Deus e a mensagem da Igreja.

Se você vai usar uma vela, trabalhe essa dimensão bonita do sinal com os catequizandos. Busque na palavra de Deus o que é que fala sobre a luz. Pegue os principais momentos da história da salvação onde a luz foi importante para a experiência do povo de Deus. Mostre como Jesus é luz.

  1. Comunicar a verdade do sinal.

Que a experiência seja concreta e verdadeira. Se vai usar a água, a água em abundância para todos serem aspergidos, não precisa jogar com uma mangueira, usar uma brocha ou com uma máquina de pulverizar o campo. Isso é debochar do rito. Mas aquilo que é necessário para que o sinal seja verdadeiro e não apenas uma brincadeira ou faz-de-conta.

  1. Possibilitar a emergência da subjetividade e do sentimento (sem cair no sentimentalismo estéril).

A liturgia é lugar da emoção, do sentimento, de olhar para o sujeito que está ali com sua vida, com sua história. É preciso trabalhar esse lado sem ser sentimentalista.

  1. “Perder” tempo para ganhar vivências.

Não correr com rito, não ter pressa para fazer as coisas, não se deixar levar pelo cronológico, pelo relógio, que limita tudo, mas dedicar-se com tempo, com serenidade às experiências rituais.

Duas provocações finais

Certamente vocês conhecem aquela música “Amor de Índio”, do Beto Guedes, que começa dizendo assim: tudo que move é sagrado… Até convido vocês para dormirem com essa música essa noite. Busquem no Youtube. Toda a letra dela é litúrgica. É uma peça belíssima. E lá no meio da música diz assim: “Abelha fazendo mel vale o tempo que não voou”.

Pensem nessa frase. “Abelha fazendo mel, vale o tempo que não voou”. Nós voamos uma vida inteira. Como abelhas operárias, nós corremos de um lado para o outro e nem nos damos conta de que são nos momentos de pausas – de pausas litúrgicas – é que fazemos o mel, é que nós elaboramos nossas experiências. E o rito é lugar de elaborar experiências, é o lugar de fazer mel, de transformar aquilo que colhemos nas flores da vida em mel para nossa vida, para nossa existência.

Não sei se vocês entendem bem de abelhas. Eu entendo pouco. Mas eu sei que as abelhas comem aquele polén e dentro delas que o mel é fabricado e depois elas vomitam nos alvéolos o mel já pronto. É dentro da abelha que as coisas se modificam. É dentro de nós que elaboramos as experiências da vida. E a liturgia são as pausas que fazemos para elaborar a vida. Em momentos que não estamos voando, mas estamos cantando, rezando, contemplando, ritualizando é que vamos transformando a vida em mel. E mel é saúde, mel é vida, mel é força, mel é alegria. “Abelha fazendo mel vai no tempo que não voou…”

Nós precisamos confrontar um pouco essa sociedade da pressa, essa mentalidade do descartável, tudo isso que está ai e que está ameaçando nossos ritos cristãos.

E uma última provocação. Nã dá para a gente se emocionar quando retoma o Pequeno Príncipe.

Veja que diálogo lindo sobre o rito e veja se isso não resume tudo aquilo que nos falamos.

“No dia seguinte o principezinho voltou. Aí a raposa disse: – Teria sido melhor voltares à mesma hora – disse a raposa. – Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas, se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar o coração… É preciso ritos. E o principezinho pergunta:  Que é um rito? – É uma coisa muito esquecida também – disse a raposa. – É o que faz com que um dia seja diferente dos outros dias; uma hora, das outras horas. Os meus caçadores, por exemplo, possuem um rito. Dançam na quinta-feira com as moças da aldeia. A quinta-feira então é o dia maravilhoso! Vou passear até a vinha. Se os caçadores dançassem qualquer dia, os dias seriam todos iguais, e eu não teria férias!

A verdadeira viagem de descoberta consiste não em procurar novas paisagens, mas em ter novos olhos”.

As paisagens são as mesmas – a Missa, o batizado, o casamento, as exéquias, – mas os olhos têm que ser novos todos os dias. E isso só é possível quando deixamo-nos conduzir pelos ritos.

Pe. Vanildo de Paiva possui graduação em Psicologia – FAAT – Faculdades Atibaia (2011), graduação em Bacharelado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1992), graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1989) e mestrado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2014), pesquisando a ideia chave de “cuidado” em Winnicott. Foi vice-presidente da fundação educacional da Faculdade Católica de Pouso Alegre (FEJAN) e coordenador da extensão da Faculdade Católica de Pouso Alegre. É professor titular da Faculdade Católica de Pouso Alegre, nas áreas de Introdução ao Exercício do Filosofar e demais disciplinas filosóficas, incluindo Psicologia Geral. Atua principalmente nos seguintes temas: cuidado religioso, desenvolvimento humano e espiritualidade, sexualidade e fé, relações humanas em ambientes religiosos, formação de educadores e catequistas etc. Autor de diversos livros, entre eles: Catequese e Liturgia: duas faces do mesmo Mistério (Editora Paulus).


Hoje, 24 de agosto, a Super Semana de Catequese traz, às 19 horas, Pe. Douglas e Pe. Almerindo da Silveira Barbosa, com o tema: “Quem é esse Jesus que apresentamos aos catequizandos?”

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