“Sem abaixamento não há lava-pés”
13/11/2018
Agudos (SP) – Dando continuidade ao retiro, na tarde desta terça-feira, 13 de novembro, Frei Vanildo Zugno teve um momento de reflexão com os capitulares no Salão São Francisco, dando continuidade ao tema da minoridade. Depois, cada participante teve um momento pessoal para fazer a sua reflexão e, no final da tarde, todos se reuniram em grupos para partilhar o tema. O dia terminou no Seminário Santo Antônio de Agudos (SP), às 20h30, com a Celebração Penitencial, na qual Frei Vanildo fez uma belíssima reflexão sobre lava-pés: “Para Lavar os pés é preciso abaixar-se. Ninguém lava os pés de outra pessoa ficando em pé. Temos de nos abaixarmos, nos ajoelharmos diante do outro, nos colocarmos na posição de inferioridade. Sem esvaziamento, sem abaixamento não há lava-pés e não há participação na vida de Jesus”, disse.
Os 133 frades, que estão reunidos até o próximo dia 21 de novembro, continuam o retiro nesta quarta-feira a partir das 8 horas, quando tem início a Oração da Manhã. O assessor espiritual para este Capítulo da Província Franciscana da Imaculada Conceição terá três momentos antes da Celebração Eucarística às 18h30 desta quarta-feira.
MUNDO COM EXCESSO DE RELIGIÃO E CARÊNCIA DE FÉ
À tarde, Frei Vanildo falou da minoridade na relação com Deus e consigo mesmo. “Hoje em dia, o mundo tem excesso de religião e carência de fé. O que mais se veem são templos, igrejas surgindo. No debate político, muitas vezes, mais se discutia quem era adequado diante da religião e menos quem tinha melhores políticas públicas”, lamentou.
O problema, segundo o pregador, é que conteúdos se colocam nessa palavra de Deus. “Sendo a religião construção humana, como acrisolar essa experiência para chegar ao cerne último de nossa fé?”, perguntou, citando o Papa Francisco, que aborda esse assunto na Exortação Apostólica “Gaudete et Exsultate”, quando toca o tema da santidade. Fala de dois inimigos sutis da santidade, onde aparece um imanentismo antropocêntrico, ou seja, o ser humano incapaz de sair de sua realidade humana, fechado em si mesmo; e o gnosticismo e pelagianismo, que se apresentam sempre com roupagens novas, mas que sempre levam ao ser humano autocentrado, incapaz de transcendência (de abrir-se para Deus) e incapaz de abrir-se para os irmãos. “O gnosticismo é uma das piores ideologias, pois, ao mesmo tempo que exalta indevidamente o conhecimento ou uma determinada experiência, considera que a sua própria visão da realidade seja a perfeição. Assim, talvez sem se aperceber, esta ideologia autoalimenta-se e torna-se ainda mais cega. Por vezes, torna-se particularmente enganadora, quando se disfarça de espiritualidade desencarnada. Com efeito, o gnosticismo, ‘por sua natureza, quer domesticar o mistério’,[38] tanto o mistério de Deus e da sua graça, como o mistério da vida dos outros” (GE, 40).
Para o pregador, o excesso de religião pode levar ao afastamento de Deus. “Somos profissionais da religião. De tanto falar de Deus, podemos esquecer quem é Deus. É o gnosticismo. Não precisa ser filosófico ou doutrinal. São Francisco de Assis, querendo proteger os frades do gnosticismo, apela a Santo Antônio que ensine aos frades teologia, contanto que não se acabe o espírito de oração e devoção. Reconhecia São Francisco a tentação de transformar a religião em um conjunto de proposições abstratas, especulativas”, explicou.
Continuando com o Papa Francisco, falou dos perigos do Pelagianismo: A pessoa pode ser boa em tudo o que faz, mas a salvação não vem disso, vem da misericórdia de Deus. “Ainda há cristãos que insistem em seguir outro caminho: o da justificação pelas suas próprias forças, o da adoração da vontade humana e da própria capacidade que se traduz numa autocomplacência egocêntrica e elitista, desprovida do verdadeiro amor. Manifesta-se em muitas atitudes aparentemente diferentes entre si: a obsessão pela lei, o fascínio de exibir conquistas sociais e políticas, a ostentação no cuidado da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja, a vanglória ligada à gestão de assuntos práticos, a atração pelas dinâmicas de autoajuda e realização autorreferencial. É nisto que alguns cristãos gastam as suas energias e o seu tempo, em vez de se deixarem guiar pelo Espírito no caminho do amor, apaixonarem-se por comunicar a beleza e a alegria do Evangelho e procurarem os afastados nessas imensas multidões sedentas de Cristo” (GE, 57).
Para o pregador, Francisco celebra o profundo distanciamento entre Deus e humano, valorizando a humildade que disso decorre. “Diante de Deus, o ser humano é dependente, não pode ser autorreferente. A Regra não Bulada, número 23, é uma profissão de fé que Francisco faz. É um ritmo que nos envolve. O Cântico do Irmão Sol, o Bilhete ao Frei Leão são textos que louvam a grandeza de Deus, que louvam sua magnitude”, observa Frei Vanildo, dizendo que Francisco eleva Deus às alturas e se coloca em extrema humildade diante Dele. “Esse modo como Francisco considera o ser humano e a si mesmo chega a causar estranheza, inclusive o uso de termos muito fortes e pesados para marcar essa pequenez diante de Deus. ‘Saibamos firmemente que não nos pertence senão os vícios e pecados’, diz em Fragmentos de outra Regra não Bulada. Mas esses vícios e pecados, talvez, possam ser a ocasião para construirmos nosso encontro interno com Deus. É a necessidade constante de conversão”, realçou o frade.
Os textos da conversão de Francisco revelam pontos cruciais a respeito da luta necessária para superar a si mesmo. “O maior desafio à minoridade somos nós mesmos”, salienta, recordando a passagem de Francisco dos maiores aos menores. “Isso ocorre concretamente desde a mudança das vestes até o modo de comer. Quando é preso em Perugia, Francisco usa vestes de nobre, até por isso é posto numa prisão diferente a fim de pedirem resgate por ele. Depois, Francisco passa a se vestir como pobre. Quando rico, era servido e tinha acesso a banquetes, depois passa a esmolar comida, que era misturada numa vasilha. As mudanças são visíveis. Mas a fonte de toda minoridade é a passagem do antropocentrismo (referência em nós mesmos) para um teocentrismo (referência em Deus). Sem esse ser menor referencial a Deus, todas as outras minoridades não se sustentam. Só Deus é maior”, apontou.
Por fim, para Frei Vanildo, o episódio da Perfeita Alegria ilustra bem esse processo de considerar como bens tudo aquilo que antes era pesar. Citamos aqui o final do texto: “E, por isso, ouve a conclusão, Frei Leão. Acima de todas as graças e dons do Espírito Santo, que Cristo concede aos seus amigos, está a de vencer a si mesmo e de boa vontade, por amor de Cristo, suportar penas, injúrias, opróbrios e mal-estares; porque de todos os outros dons de Deus nós não podemos nos gloriar, pois não são nossos mas de Deus, como diz o Apóstolo: Que é que tu tens que não recebeste de Deus? E se recebeste dele, por que te glorias, como se o tivesses por ti? Mas na cruz da tribulação e da aflição nós podemos nos gloriar, pois diz o Apóstolo: Não quero me gloriar a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo”.
Como proposta de exercício para o momento pessoal dos capitulares, em silêncio, Frei Vanildo deixou alguns questionamentos: “Que lugar tem Deus na minha vida? É central? Acessório? Que lugar tem Deus na minha vida? E não confundir com religião… Muita religião, às vezes, é sinal de ateísmo prático”, sublinhou, continuando: “Eu consigo localizar em minha história pessoal o momento em que Deus passou a ser o centro da minha existência? Qual o momento que mudou a minha vida?
Temos coragem de nos encarar com a autoimagem que temos de nós mesmos. Fazer um exercício bem concreto: fazer uma lista das cinco qualidades que eu tenho; e depois dos cinco defeitos que eu tenho. Francisco disse que o que era amargo se tornou doce e o que era doce se tornou amargo. Cada um pode fazer, então, uma listinha das coisas que lhe são amargas que precisam se tornar doce”, completou.
CELEBRAÇÃO PENITENCIAL: SEM ABAIXAMENTO NÃO HÁ LAVA-PÉS
Na Celebração Penitencial, que encerrou o primeiro dia do Capítulo Provincial, Frei Vanildo tomou apenas três pequenas ideias em relação ao Evangelho de João, que, segundo ele, é um Evangelho que fala por si mesmo. “É um Evangelho performático. Sobre aquele gesto de Jesus de lavar os pés, que qualquer pessoa entende mesmo que, no primeiro momento, não tenha entendido, queria destacar dois pontos: Para Lavar os pés, é preciso abaixar-se. Ninguém lava os pés de outra pessoa ficando em pé. Temos de nos que nos abaixar, nos ajoelhar diante do outro, nos colocarmos na posição de inferioridade. Sem esvaziamento, sem abaixamento não há lava-pés e não há participação na vida de Jesus. Para fazer parte da vida de Jesus é preciso entrar no jogo do lava-pés”, explicou.
No segundo ponto recordou que, mesmo que não seja do conhecimento de todo mundo, até o fim do primeiro milênio, início do segundo milênio, o lava-pés era considerado um sacramento ao lado de tantos outros gestos que também tinham status de sacramentos. Segundo ele, Santo Agostinho fazia uma lista de mais de 240 sacramentos. Outros tinham 120, outros 72, outros 40, outros 12, até que São Tomás de Aquino definiu 7, deixando de fora o lava-pés. “Talvez por que era o momento em que a Igreja assumia o poder da sociedade e se configurava a partir do princípio do poder. É muito estranho um rei, um príncipe abaixar-se para lavar os pés de seus súditos e dizer que esse é um gesto sagrado, que isso é sacramento, que isso é mistério da fé. É difícil admitir o lava-pés como sacramento porque ele mexe com a compreensão da própria Igreja”, salientou, recordando que no início do Papado de Francisco, dois gestos causaram impacto: um é a primeira visita papal fora do Vaticano em Lampedusa, que naquele momento era a porta de entrada de milhares de africanos, asiáticos, fugindo das guerras, da fome e das perseguições religiosas. “E Papa Francisco foi até a ilha num sinal de acolhida. Outro gesto do mesmo nível foi numa Quinta-feira santa quando, numa prisão em Roma, ele lavou os pés de jovens presos. Moças e rapazes, europeus, italianos, estrangeiros, cristãos e mulçumanos”, lembrou.
No terceiro e último ponto da reflexão, fez um paralelo entre o Evangelho de João e o evangelho de Mateus. “Em João, Jesus lava os pés dos discípulos. No Evangelho de Mateus, Pilatos lava as mãos. São dois lavatórios que podem ser pensados em paralelo. Jesus se compromete com a sorte de seus discípulos. Pilatos se torna indiferente com a sorte de Jesus. São duas opções que se colocaram para Jesus e para Pilatos e se colocam para nós, hoje, neste convite, nesse chamado que nós temos de fortificar para levar adiante o nosso voto de minoridade”, encerrou.
Equipe de Comunicação do Capítulo: Frei Augusto Gabriel, Frei Clauzemir Makximovitz, Frei Gabriel Dellandrea e Moacir Beggo