Romaria das Águas e da Terra: “Por um Rio Doce vivo, limpo e sem fome”!
20/06/2023
Regência (ES) – “A nossa Romaria deve ser um farol para que outros não passem pelo que estamos passando”. Esta motivação feita pelo bispo da Diocese de Colatina (ES), Dom Lauro Sérgio Versiani Barbosa, deu a tônica da 6ª Romaria da Terra e das Águas da Bacia do Rio Doce que aconteceu em Regência – onde o Rio Doce deságua -, litoral de Linhares, no último domingo (18/06). A Romaria teve como tema “Bacia do Rio Doce, nossa Casa Comum” e lema: “No princípio, o Espírito pairava sobre as águas”.
Mais de quatro mil pessoas dos estados do Espírito Santo e de Minas Gerais participaram do evento, que se tornou um marco histórico e um grande clamor para que toda a sociedade volte seu empenho de cuidado com a Casa Comum e o bem de todos. “Devemos cultivar a mística do cuidado com a natureza e com os irmãos. As empresas não podem fazer o que querem. A economia não pode ter essa autonomia em relação à política e à ética, mas devem estar todas voltadas realmente para o bem coletivo. É preciso que nós sejamos cuidadores uns dos outros e da Casa Comum”, destacou o bispo diocesano, Dom Lauro, em sua homilia.
Da Paróquia Santa Clara de Assis de Colatina, os paroquianos e os frades Frei Pedro de Oliveira Rodrigues e Frei Augusto Luiz Gabriel foram de van até Regência, saindo às 4h da manhã para participar das celebrações. Com alegria, juntaram-se aos jovens franciscanos que vieram de Vila Velha, formando uma grande família franciscana. Aliás, vale ressaltar que os anseios desta Romaria são bem franciscanos!
A programação de encerramento da 6ª Romaria teve início com uma caminhada penitencial do centro de Regência até a praia onde foi celebrada a Santa Missa que contou com a participação de padres, seminaristas e de Dom Geraldo Lyrio Rocha, arcebispo emérito de Mariana e primeiro bispo da Diocese de Colatina; Dom Décio Sossai Zandonade, bispo emérito de Colatina; e Dom Luiz Fernando Lisboa, bispo de Cachoeiro de Itapemirim; além de Dom Lauro.
Pelo caminho os participantes dos Movimentos de Moradia; Marcha das Mulheres; Economia Popular Solidária; Quilombolas; Antirracistas; Pastoral Afro; Movimento dos Atingidos por Barragens; Movimento dos Sem-terra; Luta Campesina; Agricultores Familiares e Movimentos de Fé e Política carregavam estandartes com nomes e fotos de pessoas que lutaram até o fim pelas causas ecológicas. Dom Pedro Casaldáliga, Padre Nelton, Flávia Ambrósio, Padre Ernesto, indigenista Bruno Pereira, Dom Phillips, são apenas alguns para citar. Além disso, frases como “Queremos o Rio Doce sem minério”; “Oito anos de impunidade”, “Mineração aqui não”, “A mineração destrói os territórios dos povos das águas”, “Somos contra o marco temporal”, “Água e energia não são mercadorias”, chamaram a atenção, além de denunciar e evidenciar a missão da Igreja de ser voz daqueles que não têm voz.
“Somos a memória, a rebeldia, a profecia…. A proposta da ecologia integral inclui o ambiental, o econômico, o social, o cultural, o humano e o cotidiano. Engloba aspectos que vão da vida quotidiana até a justiça internacional, seguindo o princípio do bem comum e da dignidade da criação”, destacou um participante no comentário inicial da missa. “É fundamental buscar soluções integrais que considerem as interações dos sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais. Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única complexa crise socioambiental”, acrescentou, citando a Laudato Si´ (LS 139).
Um dos momentos mais emocionantes da Romaria foi a fincada da cruz. Uma enorme cruz de madeira foi carregada pelos romeiros até um ponto da praia próximo à foz e lá erguida e consolidada na areia, enquanto a multidão cantava e dançava. Outro momento importante foi a leitura da “Carta ao Povo de Deus” (LEIA NA ÍNTEGRA), que denunciou que este crime vitimou 19 pessoas e trouxe um rastro de destruição social e ambiental por uma extensão de quase 600 km, de Minas Gerais ao Espírito Santo.
“São proporções incapazes de serem totalmente mensuradas, mesmo passados quase oito anos desta tragédia. Além da perda de vidas humanas, a tragédia também trouxe enfermidades e sofrimentos diversos, perdas materiais e culturais, de postos de trabalho, além da destruição da natureza, afetando todo o ecossistema no entorno da Bacia do Rio Doce até atingir as águas do Oceano Atlântico. São realidades ainda não sanadas, persistindo a indignação de nossas populações que sofrem as consequências desta destruição”, lê-se na carta.
O bispo de Colatina justificou a escolha de Regência para sediar o encerramento da Romaria: foi ali que a lama de rejeitos de minério foi despejada após destruir a bacia do Rio Doce com o rompimento da Barra de Fundão, em Mariana (MG), no dia 5 de novembro de 2015. Essa foi a maior tragédia socioambiental da história do Brasil e seus efeitos são sentidos ainda hoje especialmente pelos que tiravam do rio o seu sustento. “Estamos cercados por pessoas gananciosas, por um sistema de produção e consumo que destrói a natureza, que exaure a criação de Deus”, denunciou dom Lauro.
Ainda em 2015, quinze dias após a tragédia este site publicou uma nota de Frei Gilson Kammer que relatava: “A lama chega a Colatina e, com ela, muita tristeza”, escreveu. “Quinze dias depois do rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Samarco na cidade mineira de Mariana, a lama chegou à cidade de Colatina nesta madrugada […]. O desastre ecológico está apenas no seu início e por muitos anos as autoridades e toda a população precisarão dispor de muitos esforços para a recuperação total deste rio e toda a sua biodiversidade”.
A próxima edição da Romaria das Águas e da Terra da Bacia do Rio Doce acontecerá em 2024 na cidade de Governador Valadares (MG).
CARTA AO POVO DE DEUS
Nós, participantes da 6ª Romaria das Águas e da Terra da Bacia do Rio Doce, vindos de muitos lugares, especialmente das dioceses do Espírito Santo (Colatina, Vitória, São Mateus e Cachoeiro de Itapemirim) e das dioceses de Minas Gerais (Mariana, Caratinga, Governador Valadares, Itabira-Coronel Fabriciano e Guanhães), estivemos reunidos no dia 18 de junho de 2023, em Regência, distrito de Linhares (ES), na foz do Rio Doce, para o momento principal da celebração desta Romaria.
À luz do tema que perpassa as romarias anteriores, “Bacia do Rio Doce, nossa Casa Comum”, e do lema específico desta sexta edição, “No princípio, o Espírito de Deus pairava sobre as águas”, inspirado em Gênesis 1,1-2, a Diocese de Colatina, sede desta Romaria, realizou, no mês de maio, três seminários temáticos ligados a esse evento nas cidades de Baixo Guandu, Colatina e Linhares; de 11 a 17 de junho, também promoveu a Semana Missionária nos distritos de Bebedouro e Regência, em Linhares; finalizando a programação na foz do Rio Doce, em Regência, neste dia 18 de junho, com uma grande celebração à beira da praia. Juntos, vimos a esta Romaria manifestar publicamente nosso clamor em denúncias e anúncios pela regeneração social e ambiental de toda a extensão da Bacia do Rio Doce.
Com essa 6ª Romaria, concluímos um processo iniciado em 2016 com a realização de romarias que percorreram, em nossas dioceses, toda a extensão da Bacia do Rio Doce, após o crime da Samarco e das empresas conveniadas a ela (Vale e BHP Biliton). Crime ocorrido em 5 de novembro de 2015, quando se deu o rompimento da Barragem de Fundão, contendo rejeitos de minério, de propriedade da empresa Samarco, na localidade de Bento Rodrigues, município de Mariana (MG).
As quatro primeiras Romarias das Águas e da Terra da Bacia do Rio Doce aconteceram na Província Eclesiástica de Mariana (MG), compreendida pela Arquidiocese de Mariana, Diocese de Caratinga, Diocese de Governador Valadares e Diocese de Itabira-Coronel Fabriciano. A 5ª Romaria realizou-se em Conceição do Mato Dentro, na Diocese de Guanhães (MG).
A 6ª Romaria das Águas e da Terra ultrapassa o Estado de Minas Gerais e chega ao Estado do Espírito Santo, onde se encontra a foz do Rio Doce. O Rio Doce atravessa a Diocese de Colatina e deságua no Oceano Atlântico, na localidade de Regência, município de Linhares. Esta região também foi duramente atingida pelo rompimento da Barragem de Fundão.
Esse crime vitimou 19 pessoas e trouxe um rastro de destruição social e ambiental por uma extensão de quase 600 km, de Minas Gerais ao Espírito Santo. São proporções incapazes de serem totalmente mensuradas, mesmo passados quase oito anos desta tragédia. Além da perda de vidas humanas, a tragédia também trouxe enfermidades e sofrimentos diversos, perdas materiais e culturais, de postos de trabalho, além da destruição da natureza, afetando todo o ecossistema no entorno da Bacia do Rio Doce até atingir as águas do Oceano Atlântico. São realidades ainda não sanadas, persistindo a indignação de nossas populações que sofrem as consequências desta destruição.
As responsabilidades humanas e sociais devem ser apontadas. Elas estão a exigir, por justiça social, a punição exemplar dos culpados por esse crime: as devidas indenizações, reparações e compensações para os atingidos e atingidas e suas comunidades, como os habitantes, em toda a extensão da Bacia do Rio Doce, das áreas afetadas, entre eles, os povos originários, as comunidades quilombolas, os ribeirinhos, pescadores e artesãos, além da regeneração ambiental de toda essa bacia que sofreu o maior crime socioambiental da história do Brasil.
Unidos, como atingidos e atingidas, de toda a extensão da Bacia do Rio Doce, denunciamos e nos manifestamos contrários à violência da mineração predatória. Violência que tem causado violação de direitos humanos e da natureza, com a contaminação e o assoreamento de nossos rios, perda da biodiversidade, desmatamento; violência contra a cultura, a autonomia e a soberania de nossas populações; e pobreza e caos social em áreas no entorno da mineração.
Denunciamos, igualmente, a morosidade do processo de reparação integral da Bacia do Rio Doce, de obrigação das empresas responsáveis por esse crime, agrupadas na Fundação Renova. São quase oito anos de espera, com muitos atingidos e atingidas que, nesse período, morreram sem a devida reparação. Outros a aguardam com apreensão, cansaço e desilusão, sem contar os muitos que se encontram ainda injustamente não reconhecidos oficialmente como atingidos e atingidas. Eles, além de perderem familiares e amigos, perderam seus bens, empregos, sua fonte de sustento, de vida e, sobretudo, sua perspectiva de vida futura a partir do Rio Doce. Há ainda tantos outros hoje atingidos em sua saúde física, mental e emocional por consequência dessa tragédia.
Denunciamos também uma repactuação, orquestrada pelos Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, com anuência do governo federal, sem ouvir, ativamente, como interlocutores diretos, os próprios atingidos e atingidas, não dando transparência suficiente ao processo quanto à aplicabilidade dos recursos requeridos junto às empresas responsáveis por esse crime, em vista, realmente, de beneficiar, com políticas públicas, a população atingida em toda a extensão da Bacia do Rio Doce. O que as pessoas atingidas mais clamam é pelo Rio Doce limpo e sem rejeitos. Há recursos e tecnologia para a retirada dos rejeitos de minério do rio, mas falta empenho em atender ao clamor do povo que sofre.
A proposta de repactuação que vem acontecendo sob sigilo, novamente sem a participação dos atingidos e atingidas, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), vem demonstrando como principal objetivo revisar os pactos reiteradamente descumpridos pela Samarco, Vale e BHP Billiton, incluindo a Fundação Renova que foi concebida para indenizar, reparar e compensar os atingidos e atingidas. O que se vê são críticas, haja vista a quantidade de recursos investidos em propaganda e o grande número de ações ajuizadas por um escritório de Londres contra a BHP Billiton.
Fazemos fileira com o Bispo de Colatina, Dom Lauro Sérgio Versiani Barbosa, que em sua Carta Convite para esta 6ª Romaria das Águas e da Terra, afirma que: “A revelação cristã expressa nas Sagradas Escrituras aponta para o ‘Evangelho da Criação’. A Doutrina Social da Igreja, particularmente no Magistério do Papa Francisco, indica o caminho da ecologia integral e de uma economia que respeite a destinação comum dos bens, a dignidade de cada ser humano, a beleza e a rica diversidade de toda a criação de Deus”.
Reafirmamos assim com esta 6ª Romaria nosso compromisso de avançar no processo de conscientização, mobilização e participação das nossas comunidades de fé e de toda a sociedade no sentido de contemplar, a partir de nossa Bacia do Rio Doce, a vida humana e o planeta dentro da mística do cuidado e da fraternidade. Concretamente: cuidar da mãe terra, nossa Casa Comum e de toda a criação; defender nossos rios e matas; empenharmo-nos pela justiça ambiental e social e pela soberania popular de nossos territórios.
Que Deus, criador do céu, da terra, do mar, das águas e de todas as criaturas que os habitam, e viu que tudo era muito bom (Gn 1,31), nos ajude nesta missão de sermos guardiões de nossa Casa Comum, a Bacia do Rio Doce, comprometidos com a promoção e a defesa da vida, lembrados de que tudo está interligado. Que Ele, em seu Filho Jesus, nos fortaleça para combater a ganância e o egoísmo humanos e a exploração predatória dos bens da mãe terra, que ferem seu projeto de vida, felicidade e bênção para todos e todas. Que movidos pelo seu Espírito, que pairava sobre as águas (Gn 1,2), sejamos sustentados na missão de trabalhar pela regeneração socioambiental da nossa Bacia do Rio Doce, sempre movidos pelo ideal de viver a ecologia integral. Acompanhe-nos nesta missão, Nossa Senhora da Saúde, Padroeira da Diocese de Colatina, protegendo-nos e inspirando no compromisso com a vida em todas as suas dimensões e expressões.
POR UM RIO DOCE VIVO, LIMPO E SEM FOME!
Regência, distrito de Linhares, Diocese de Colatina, Espírito Santo
18 de junho de 2023
Participantes da 6ª Romaria das Águas e da Terra da Bacia do Rio Doce
Frei Augusto Luiz Gabriel | Fotos de drone: Diocese de Colatina