Quando que a Igreja é um serviço essencial?
16/07/2020
São Paulo (SP) – O Encontro dos frades que atuam na Frente de Evangelização das Paróquias, Santuários e Centros de Acolhimento teve continuidade nesta quinta-feira, 16 de julho, com a segunda parte formativa, já que na última terça-feira, o filósofo e teólogo leigo católico, Jung Mo Sung, abriu o tema “Pandemia e transformações – entre necessidades, expectativas e realidade”, oferecendo um olhar mais político e econômico.
Nesta quinta, foi a vez do mestre e doutor em Teologia, Frei João Reinert, frade desta Província e professor do Instituto Teológico Franciscano em Petrópolis, abordar o tema com um olhar mais teológico e eclesial.
Das 10 às 11h30, em videoconferência, os frades das 45 Paróquias, Santuários e Centros de Acolhimento foram recebidos pelo Ministro Provincial, Frei César Külkamp, e pelo secretário de Evangelização da Província da Imaculada Conceição, Frei Gustavo Medella. Antes da palestra, um momento de oração, fazendo memória a Nossa Senhora do Carmo.
“É uma alegria muito grande estar aqui e ver, ainda que de longe, um pouco de cada frade, de cada fraternidade, principalmente nesse trabalho voltado às nossas Paróquias, Santuários e Centros de Acolhimento”, saudou Frei César, que explicou não ter participado do primeiro encontro porque viajou para o sepultamento de Frei Leonir Ansolin em Guaratinguetá. “Foi um dia de profunda comunhão a partir de Guaratinguetá com todas as nossas presenças fraternas e evangelizadoras. Já pude acompanhar um pouco da discussão e vi que foi boa e melhor ainda a participação das nossas paróquias. E, com isso, a gente vai caminhando também para uma comunhão de missão, que é o grande trabalho que a gente precisa fazer, mais adiante e aos poucos, no aprofundamento da missão e razão de ser dessa Frente das Paróquias e Santuários”, acrescentou Frei César.
Frei Medella fez um resumo da apresentação de Jung Mo Sung e deixou Frei Reinert à vontade para falar.
MULTIPANDEMIAS
Frei João partiu sua explanação enfatizando que não existe apenas uma pandemia sanitária. “Vivemos num tempo de multipandemias. Talvez a mais evidente, é claro, é a sanitária, a da saúde, haja vista tantas mortes (mais de 75 mil mortes no Brasil). Mas existem outras. Por exemplo, a pandemia econômica, muito evidente, com o aumento do desemprego, da perda de renda etc. Não tem como não pensar nessa pandemia ao pensarmos na evangelização”, observou.
Depois, há a pandemia política. “Ela é mundial, marcada pela ausência de lideranças mundiais. Quem é o nosso grande líder mundialmente falando? É o Papa Francisco”, ilustrou. Segundo ele, essa política tende a minimizar as metas. Ou seja, tenta resolver os problemas de forma isolada. “Não existe um projeto mundial, nacional. Exemplo concreto: Vamos salvar a economia ou vamos salvar a saúde? Então, sempre a tentativa de dar uma resposta isolada”, explicou o palestrante. Esse mesmo problema é visto com a pandemia institucional, que no Brasil se faz ver com a crise dos poderes, fake news, ameaças de fechar o Congresso etc. Há também uma pandemia ambiental e não é difícil observar que a Terra está chegando ao seu limite.
Mas para Frei João, a pandemia religiosa é muito evidente e afeta diretamente o trabalho evangelizador da Igreja. “Outro dia vi uma expressão para falar do fundamentalismo religioso. O artigo falava dos ‘neocatolicobãs’, que estão voltando com força e agressividade. Quando a gente fala em pandemia religiosa é porque está em jogo uma recusa, um desmonte, do Vaticano II. Todo ataque ao Papa Francisco – e hoje se critica abertamente o Papa -, na verdade não se está querendo atingir o Papa, mas o Vaticano II. O Papa é o representante mais lúcido do Vaticano II”, explicou Frei João, descrevendo as quatro linhas de ação do Pontificado de Francisco e do Vaticano: a dimensão da sinodalidade, uma Igreja descentralizada, a conversão das estruturas e a questão dos pobres. “E isso que está sendo atacado. É interessante perceber que esse ataque religioso é simultaneamente político. As mesmas causas estão sendo atacadas. Por exemplo, quando se ataca a sinodalidade se ataca a questão da democracia. Então, trata-se de um projeto religioso-político de mãos dadas. Hoje quer se implantar uma nova cristandade e, nessa tentativa de retorno, conta-se com projeto político e um projeto religioso”, detalhou o frade.
Por último, a pandemia antropológica, que talvez seja a causa das outras. “Quem está em crise é o ser humano, os valores. Na semana retrasada, acompanhamos a questão dos bares lotados no Leblon, o deboche da classe média-alta e o descaso com a dor do outro. Também vimos o racismo na sua forma mais violenta e tantos outros exemplos que poderiam ser dados”, assinalou o frade.
LER A REALIDADE
Para Frei João, esse quadro, vai exigir da gente a capacidade de ler essa realidade. “Nunca foi tão importante que o trabalho da evangelização consiga ler a realidade a partir desse conjunto de pandemias”, disse, e o vírus corona veio mostra essa realidade mais ampla. “Quantas mortes poderiam ter sido evitadas se não houvesse essas outras pandemias? Ou se houvesse um projeto de sociedade maior, mais amplo e não apenas tentar resolver parcialmente as questões?”, lamentou.
Segundo ele, tudo isso gera em nós um quadro de insegurança. “Nosso professor [Jung Mo Sung] falava dessa sociedade do medo, da insegurança. Então, todo esse conjunto de pandemias, onde a gente não vê um projeto universal e coeso, aumenta a sensação de medo. E com isso surgem alguns gurus. Eles vêm de ambos os lados, seja da esquerda ou da direita, e com isso a gente tenta se apegar a eles por uma pseudo-segurança”, disse, exemplificando: lockdown ou não lockdown; usar cloroquina ou não usar; abrir as igrejas ou não; portas abertas ou não.
Frei João convidou então o seu confrade, Frei Gabriel Dellandrea, para ilustrar com dois depoimentos como se vive o medo e a insegurança nesse tempo de pandemia. Frei Gabriel resumiu o depoimento de Aline Machado, publicado no Conexão Fraterna. “Trabalhar com a finitude da vida me faz entender como a fé é sagrada”, diz a profissional da área de enfermagem do Hospital da Cruz Vermelha Brasileira de São Paulo.
Segundo Frei Gabriel, que tem participado do trabalho da Tenda Franciscana no Rio, aumentou a população em situação de rua do Rio de Janeiro. “Essa população mais vulnerável e os profissionais da frente da saúde vão precisar de nossa atenção. Esse pessoal está fazendo o que o Papa pede quando fala para a Igreja ser um Hospital de Campanha”, assinalou Frei Gabriel.
Para Frei João, a pergunta que se coloca nesse momento é: Qual deve ser a resposta da evangelização?
“A igreja hoje é um serviço essencial? Não essencial no sentido de que pode abrir ou não as portas. Que Igreja temos que ser para que ela tenha, em termos de pertinência, um serviço essencial? Para onde caminhar? Qual a vacina que a gente deve oferecer, digamos assim?”, questionou o palestrante.
DIMENSÃO DO CUIDADO
Frei João deu as pistas, partindo da dimensão do cuidado. “Nesse tempo de pandemia, mais do que nunca, podemos descobrir e resgatar qual o sentido da palavra “pastoral”. Nós fazemos pastoral nas nossas paróquias, usamos o termo 24 horas. Mas talvez até de forma inconsciente. Então, esse atual quadro de pandemias nos ajuda a resgatar o que significa “pastoral”. Vem de pastor, cuidado, a mãe que cuida, a mãe que cura feridas, a mãe que devolve esperança, a mãe que confere sentido de vida. Mais do que nunca, pode-se entender o que significa aquela expressão do Papa “Hospital de Campanha”. É a dimensão do luto, do cuidado, ser presença solidária. Então seria um suicídio se continuássemos nossas pastorais sem ter como espinha dorsal essa dimensão o cuidado, das relações humanas.
Para Frei João, a Igreja vai ser pertinente quando unir a força do profetismo e a aliança com os pobres. “O que a igreja tem feito de fato nesse tempo? Onde está o profetismo? Será que deixar igrejas fechadas para evitar contaminação é o suficiente? Onde está o profetismo da igreja? A Igreja está dividida, também sofre uma pandemia. Por exemplo, nós vemos de um lado pessoas que fazem uma reunião com Bolsonaro para pedir verbas ou patrocínios e vemos sermões do Pe. Edson que fala que quem votou em Bolsonaro está em pecado. A própria Igreja está dividida e essa divisão dificulta ela ser profética. Tem medo de dar um passo além”, avalia o frade. Frei João lembrou, contudo, que a Igreja foi profética quando a CNBB fez duras críticas aos vetos do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ao Projeto de Lei 1142/2020.
Frei João lembra que a Igreja tem uma grande chance de fazer aliança com os pobres dentro desse quadro de pobreza e desigualdade. “A ONU advertiu esta semana que, com a pandemia, está aumentando a concentração econômica e política nas mãos de uma elite apenas. As consequências serão o aumento da desigualdade social”, destacou.
Frei João lembra que essa aliança com os pobres é uma questão sociológica, uma questão teológica – de fé -, e uma questão eclesial. “De fé por causa da nossa profissão de fé no Cristo que se fez pobre e nos leva a fazer o mesmo”, enfatizou.
Segundo o frade, uma das formas privilegiadas de ser Igreja nesta pandemia foi a social. “Não tivemos muitas missas, umas e outras transmissão. Fomos presença pela ação social. Na distribuição de alimentos, cestas básicas, etc. Então, com isso vem uma provocação: será que a dimensão social não pode ser um caminho mais ordinário para sermos presença eclesial? Não pode ser um caminho mais natural, mais cotidiano de evangelização? Aqui, em Imbariê, graças a Deus (o Sefras e o Ministério Público nos ajudaram), o jeito de ser Igreja foi assistindo de forma imediata e assistencialista a população vulnerável”, contou, decretando: “É possível ser Igreja através dessa dimensão solidariedade”.
SERVIÇO ESSENCIAL
Outro questionamento feito por Frei João: quando a Igreja vai ser um serviço essencial? Segundo ele, através da pastoral da simplicidade missionária. “Simplicidade não é ser simplório, mas voltar ao essencial, à fé. Na terça, o professor Jung falava que a fé é a resposta para a crise. É preciso resgatar a fé”, ensinou.
Essa simplicidade, segundo o palestrante, ficou evidente na vivência com poucas coisas. “Reduziu-se o ritmo de consumo, os animais apareceram em volta de nossas casas, nas cidades. Estamos aprendendo a viver de forma muito mais simples. Logo, o retorno ao essencial na evangelização pede simplicidade de vida e simplicidade pastoral”, acredita.
Frei João denomina isso de essência da densidade cristológica, ou seja, apresentar de fato o querigma. “É somente a centralidade em Jesus Cristo que a Igreja vai poder dar uma resposta a esse quadro de medo, de insegurança, etc”, acrescentou, pedindo uma pastoral centrada no querigma.
SENTIDO DE VIDA E LAICATO
Nesse tempo pandêmico se percebeu mais a busca pelo sentido da vida. “O ser humano se confronta com a fragilidade humana, com o medo, com a morte, e tem se perguntado pelo sentido da vida. Deu mais abertura para o transcendente.
Essa situação de busca de vida é uma porta que se abre para a evangelização. Basta que a gente saiba oferecer o essencial, que é o querigma”, orientou.
Para ele, a religião vai se um serviço essencial quando estiver centrada na fé. “Durante muito tempo, a nossa evangelização esteve centrada mais nas consequências da fé do que na própria fé”, observou.
Segundo ele, padres e religiosos representam muito mais a instituição, muito mais os sacramentos, como consequências da fé. “O leigo está mais livre para representar o querigma. Apresentar a centralidade de Jesus Cristo”, diz, lembrando que esse tempo do laicato não vem só pela eclesiologia do Vaticano II, mas que uma configuração social-religiosa oferece essa possibilidade.
O frade partiu de três palavras essenciais: fé, religião e religiosidade. “Nós sabemos que quem trabalhava com essas três palavras era o falecido Libânio (teólogo José Libânio). Nem sempre a religião oferece esperança, a religiosidade oferece esperança. Às vezes até oprime. Então, como fazer com que a nossa evangelização esteja centrada na fé e não tanto religião e na religiosidade? Quem está em crise hoje é a própria religião enquanto instituição e a religiosidade. Está em crise porque ela não tem credibilidade. Ela não confere sentido de vida muitas vezes. O que confere sentido é a fé”, disse.
Outras três palavras que Frei João usou para ajudar na busca da evangelização: pressupor, propor e impor. “Não podemos pressupor que as pessoas estejam abertas procurando sentido da vida. Estejam abertas a encontrar a Jesus Cristo. Não podemos pressupor. O caminho pastoral só pode ser o propor e não impor”, disse.
Nessa simplicidade pastoral talvez a gente deva reduzir o ritmo. “Nós fazemos mil coisas. Não seria o caso de fazer menos, mas com mais densidade pastoral?”, pergunta.
Para que a igreja seja um serviço essencial, ensina o pregador, é preciso repensar a questão do ritmo. “O ativismo pode ser um inimigo à fé, porque está marcado pela desempenho, qualidade, e não pelo essencial que é a própria fé. O ativismo não deixa focar nas relações humanas. Eu quero fazer tudo sozinho às vezes. Nos rouba o essencial que são as relações humanas”, disse.
Frei João lembrou que o Papa tem chamado muito atenção sobre o retorno ao neopelagianismo. “Sabemos quem foi Pelágio, alguém que dispensava a graça de Deus. Pregava que podemos nos salvar pela nossa própria capacidade”, observou, indicando que vai ser um inimigo na evangelização nesse tempo.
IGREJA DOMÉSTICA
Outra dimensão é a Igreja doméstica, que nos ajuda a perceber quando a evangelização é um serviço essencial. “Quem usou o termo foi Paulo VI. Veja que interessante. Foi preciso uma pandemia para descobrir a Igreja doméstica. Precisou fechar igrejas para redescobrir a Igreja doméstica”, indicou, lembrando que ela foi a base do primeiro século do cristianismo, a fonte primordial de ser Igreja.
Para o frade, nesse tempo de pandemia, a Igreja foi doméstica. As famílias passaram a rezar juntas, assistir juntas. “As casas foram uma fonte de vida eclesial. Foi uma forma de ser igreja”, disse.
Frei João fez uma ressalva, no entanto. É preciso valorizar essas igrejas domésticas mas ter o cuidado de não fazer a partir do clericalismo, criando uma igreja dependente do padre. “Que ela seja protagonista da ação eclesial”, pediu, lembrando que no século 4, o que matou a Igreja doméstica foi o clericalismo. “Nesse tempo da pandemia vimos tanto sinais de clericalismo: passeios de avião com o Santíssimo foi um deles e outros. Sinais de uma Igreja fechada, mas ainda clerical. Há muitos questionamentos: Missa sem o povo pode, agora missa sem o padre não pode. O povo é secundário e o Vaticano II é totalmente contrário a isso. Outro exemplo: o povo foi privado da comunhão eucarística, mas nós não. Não seria mais coerente todos serem privados da Eucaristia?”
ÚLTIMA DIMENSÃO
As novas tecnologias vieram para ficar e é importante perceber que essas ferramentas podem descobrir novas formas de conectividade. “Leandro Karnal diz que em tempos como esses ou de guerras, acelera-se os processos sociais. Há séculos se falava no ensino on-line. Em dois meses está todo mundo dando aula!”, ilustrou.
Essa nova configuração através das redes sociais está, segundo Frei João, de acordo com o Documento 100 da CNBB, “Comunidade de comunidades: uma nova paróquia”, que propõe reflexão e ações práticas para uma conversão pastoral da paróquia. “É a rede de relações que são estabelecidas numa comunidade paroquial. As redes sociais ajudam a ampliar a compreensão de ser comunidade de comunidades”, disse, lembrando que o momento pede um investimento na Pastoral da Comunicação, mas observando o cuidado de não cair no clericalismo, ao achar que pode fazer tudo sem a presença dos leigos.
Frei João terminou deixando a pergunta: Quando que a Igreja é um serviço essencial?
Frei Gustavo deixou para o próximo encontro, na terça-feira, duas perguntas que vão nortear as reflexões: 1) A partir do que foi apresentado pelos assessores e de nossas experiências locais, o que poderíamos destacar como iluminação para nossa missão Evangelizadora em Paróquias, Santuários e Centros de Acolhimento?
2) Que ações práticas poderíamos assumir a partir destas luzes em relação à animação de nossa Frente?
O secretário da Evangelização terminou o encontro pedindo que Frei Cássio Vieira de Lima, que hoje completa 71 anos de sacerdócio, desse a bênção final.
Moacir Beggo