Papa: não subvalorizo a doutrina, sigo o Concílio
21/11/2016
Jubileu, ecumenismo, Concílio: entrevista do Papa a Avvenire às vésperas do fechamento da Porta Santa: “A Igreja não é um time de futebol que procura torcedores”.
“O Jubileu? Não fiz um plano. As coisas vieram. Simplesmente me deixei levar pelo Espírito. A Igreja é o Evangelho, não é um caminho de ideias. Este Ano da Misericórdia é um processo amadurecido com o tempo, desde o Concílio… Também no campo ecumênico, o caminho vem de longe, com os passos dos meus predecessores. Este é o caminho da Igreja. São sou eu. Não dei nenhuma aceleração. À medida em que andamos adiante, o caminho parece andar mais veloz, é o motus in fine velocior”.
Casa Santa Marta, meio-dia. A conversa com o Papa Francisco entra logo nas dinâmicas de um período eclesial intenso e não poderia deixar de passar sobre os encontros e passos ecumênicos, e também as viagens apostólicas realizadas neste Ano da Misericórdia que está terminando e também sobre a busca de unidade entre os cristãos nestes tempo histórico dilacerado por conflitos.
Após à viagem à Suécia, disse a ele ao telefone que, durante o voo de retorno a Roma, dialogando com os jornalistas sobre aquele importante encontro de reconciliação com os luteranos, comentei que havia permanecido ainda por preencher algumas lacunas na manifestação do brilho daquele encontro, e que há tempo já pensava e fazer a ele algumas interrogações sobre o ecumenismo. Ele me pegou no contrapé dizendo-me que poderia responder a tudo de pronto. “Mas e agora?”, perguntei a ele, e a aí me concedeu esta nova oportunidade.
Chego para o encontro com antecedência. Entro com meu filho, enquanto chova do lado de fora. Logo nos atende à porta. Como já ocorrera me outras circunstâncias, é na entrada que o encontro, como o pai de sempre, como na primeira vez em que o encontrei, não poucos anos atrás. A paciência no esperar parece ser a sua fibra, uma razão de ser, o seu ofício. Põe os óculos e folheia sem pressa o elenco de perguntas. À margem fez alguns apontamentos. Enquanto se levanta para dispor as flores banhadas de chuva, penso no encerramento do Ano da Misericórdia, na Porta da Misericórdia que está para se fechar, e releio uma observação de cinquenta anos atrás feita pelo patriarca ortodoxo Atenágoras no diálogo com Olivier Clément, que me surpreendeu: “Deveríamos perscrutar mais profundamente o destino de Pedro no Evangelho. Pedro – escreveu São Gregório Palamas – é o protótipo em si do homem novo, ou seja, o pecador perdoado. Ele pode estar aqui só para recordar à Igreja que ela vive do Perdão de Cristo e que não há outra forção senão a da Cruz. Se na Igreja há um bispo que é o análogo de Pedro então estamos bem longe do poder e da glória do mundo. E se Pedro se esquecesse que o seu testemunho fundamental é aquele do pecador perdoado, então, ao modo de Paulo em Antioquia, profetas viriam se opor a ele “de rosto aberto” (Gal 2,11)”. Olho o Papa em silêncio e depois lhe pergunto:
Santo Padre, o que significa para o senhor este Ano da Misericórdia.
Quem descobre ser muito amado começa a sair da solidão maléfica, da separação que leva a odiar os outros e a si mesmo. Espero que muitas pessoas tenham descoberto que são muito amadas por Jesus e que tenham se deixado abraçar por Ele. A misericórdia é o nome de Deus e é também a sua fraqueza, o seu ponto fraco. A sua misericórdia O leva sempre ao perdão, a esquecer-se dos nossos pecados. Gosto de pensar que Deus tem uma memória ruim. Uma vez que perdoa, se esquece. Porque é feliz em perdoar. Para mim isto basta. Como para a mulher adúltera do Evangelho “que muito amou”. “Porque Ele muito amou”. O Cristianismo está aí.
Mas foi um jubileu “sui generis”, com tantos gestos emblemáticos
Jesus não exige grandes gestos, mas só o abandono e o reconhecimento. Santa Teresa de Lisieux, que é doutora da Igreja, na sua “pequena via” para Deus indica o abandono da criança, que adormece sem reservas entre os braços de seu pai e recorda que a caridade não pode permanecer fechada ao fundo. O amor a Deus e o amor ao próximo são dois amores inseparáveis.
Foram alcançados os objetivos que o senhor havia planejado?
Mas eu não fiz um plano. Fiz simplesmente aquilo que me inspirava o Espírito Santo. As coisas vieram. Deixei-me levar pelo Espírito. Tratava-se apenas de ser dócil ao Espírito Santo, de deixá-lo fazer. A Igreja é o Evangelho, é obra de Jesus Cristo. Não é um caminho de ideias, um instrumento para afirmá-las. E na Igreja as coisas entram no tempo quando o tempo é maduro, quando se oferece.
Também um Ano Santo extraordinário…
Foi um processo amadurecido no tempo, por obra do Espírito Santo. Antes de mim, São João XIII, com a Gaudet mater Ecclesia, na “medicina da misericórdia”, indicou o sentido a seguir desde a Abertura do Concílio, depois o Beato Paulo VI, que viu o seu modelo na história do Samaritano. Em seguida, veio o ensinamento de São João Paulo II, com a sua segunda encíclica Dives in misericórdia, e a instituição da festa da Divina Misericórdia. Bento XVI disse que “o nome de Deus é misericórdia”. São todas pilastras. Assim o Espírito leva adiante os processos na Igreja, até a realização.
Então o Jubileu foi também o Jubileu do Concílio, hic et nunc, onde o tempo de sua recepção e o tempo do perdão coincidem
Fazer a experiência vivida do perdão que abraça toda a família humana é a graça que o ministério apostólico anuncia. A Igreja existe apenas como instrumento para comunicar aos seres humanos o desígnio misericordioso de Deus. No Concílio a Igreja percebeu a responsabilidade de ser no mundo um sinal vivo do amor do Pai. Com a Lumen Gentium às fontes de sua natureza, ao Evangelho. Isto move o eixo da concepção cristã de um certo legalismo, que pode ser ideológico, à Pessoa de Deus que se faz misericórdia na encarnação do Filho. Alguns – pensa em certos questionamentos à Amoris laetitia – continuam a não compreender, ou branco ou preto, mesmo que seja no fluxo da vida que se deve discernir. O Concílio nos disse isto, mas os historiadores dizem que um Concílio, para ser bem assimilado no corpo da Igreja, é necessário um século… Estamos na metade.
Neste tempo foram significativos as viagens e os encontros ecumênicos empreendidos. Em Lesbos com o Patriarca Bartolomeu, e Jerônimo, em Cuba, com o Patriarca de Moscou, Cirilo, em Lund na comemoração conjunta da Reforma Luterana. Foi o Ano da Misericórdia que favoreceu todas estas iniciativas com as outras igrejas cristãs?
Não diria que estes encontros são fruto do Ano da Misericórdia. Não. Porque eles todos também são parte de um percurso que vem de longe. Não é uma coisa nova. São apenas passos a mais por um caminho que se iniciou há tempo. Desde quando foi promulgado o decreto conciliar Unitatis Redintegratio, há mais de cinquenta anos, e se redescobriu a fraternidade cristã baseada sobre o único batismo e sobre a mesma fé em Cristo, o caminho nesta estrada da busca da unidade seguiu em frente, com pequenos e grandes passos e deu seus frutos. Continuo a seguir estes passos.
Aqueles dados pelos seus predecessores…
Todos aqueles que foram dados pelos meus predecessores. Como um passo a mais foi dado naquele encontro do Papa Luciani com o metropolita russo Nikodim que morreu entre seus braços e, abraçado ao irmão bispo de Roma. Nikodim lhe disse coisas muito bonitas sobre a Igreja. Recordo os funerais de São João Paulo II, em que estiveram todos os líderes das Igrejas do Oriente: esta é a fraternidade. Os encontros e também as viagens ajudam a esta fraternidade, fazem-na crescer.
O senhor, no entanto, em menos de quatro anos, encontrou todos os líderes e responsáveis pelas Igrejas Cristãs. Estes encontros atravessam o seu pontificado. Por que esta aceleração?
É o caminho do Concílio que segue adiante, que se intensifica. Mas é o caminho, não sou eu. Este caminho é o caminho da Igreja. Eu encontrei os líderes e responsáveis, é verdade, mas também os meus predecessores tiveram seus encontros com estes ou outros responsáveis. Não dei nenhuma aceleração. À medida em que caminhamos adiante o caminho parece andar mais veloz, é o motus in fine velocior, para dizer segundo aquele processo expresso na física aristotélica.
Como o senhor vive pessoalmente esta solicitude nos encontros com os irmãos de outras igrejas cristãs?
Eu a vivo com muita fraternidade. A fraternidade se sente. Jesus está no meio. Para mim somos todos irmãos. Abençoamo-nos um ao outro, um irmão abençoa o outro. Quando com os Patriarcas Bartolomeu e Jerônimo estivemos em Lesbos, na Grécia, para nos encontrar com os refugiados, nos sentíamos uma coisa só. Éramos um. Um. Quando fui com o Patriarca Bartolomeu ao Fanar, em Istambul, para a Festa de Santo André, para mim foi uma grande alegria. Na Georgia, encontrei o Patriarca Ilia que foi a Creta para o Concílio Ortodoxo. A sintonia espiritual que tive foi profunda. E me senti diante de um santo, um homem de Deus me pegou pela mão, me disse coisas belas, mais com os gestos do que com as palavras. Os patriarcas são monges. Você percebe na conversa que são homens de oração. Cirilo é um homem de oração. Também o Patriarca copta Twadros, com quem encontrei, ao entrar na capela tirava os calçados e começava a rezar. O Patriarca Daniel, da Romênia, há um ano me presenteou com um volume em espanhol sobre São Silvestre do Monte Athos, a vida deste grande santo monge que já havia lido em Buenos Aires: “Rezar pelos homens é doar o próprio sangue”. Os santos nos unem dentro da Igreja, atualizando o seu mistério. Com os irmãos ortodoxos estamos a caminho, somos irmãos, nos amamos, nos preocupamos juntos, vêm estudar sobre nós e conosco. Também Bartolomeu estudou aqui.
Com o Patriarca ecumênico Bartolomeu, sucessor do Apóstolo André, muitos passos vocês já deram juntos, em plena sintonia nos pronunciamentos recíprocos. O que os sustenta é aquele amor que transformou a vida dos Apóstolos: Pedro e André eram irmãos…
Em Lesbos, enquanto juntos saudávamos a todos, havia um menino e eu me inclinei na direção dele. Mas eu não interessava ao menino. Eu me viro e vejo por quê. Bartolomeu tinha o bolso cheio de balas e estava distribuindo-as às crianças. Este é Bartolomeu, um homem capaz de levar adiante, entre tantas dificuldades, o Grande Concílio Ortodoxo, de falar de Teologia em alto nível, e de simplesmente estar com as crianças. Quando vinha a Roma, ocupava o quarto no qual agora eu estou. A única reprimenda que ele me fez é que teve de mudar de quarto.
O senhor continua a encontrar com frequência os líderes das outras Igrejas. Mas o bispo de Roma não deve se ocupar em tempo integral da Igreja Católica?
O próprio Jesus reza ao Pai para pedir que os seus sejam uma coisa só, para que assim o mundo o creia. É a sua oração ao Pai. Desde sempre, o bispo de Roma é chamado a cuidar, a buscar e a servir esta unidade. Sabemos que as feridas de nossas divisões, que laceram o Corpo de Cristo, não podemos curá-las por nós mesmos. Portanto, não se podem impor projetos ou sistemas para a unidade. Para pedir a unidade entre nós cristãos só podemos olhar para Jesus e pedir que entre nós opere o Espírito Santo. Que seja Ele a fazer a unidade. No encontro de Lund com os luteranos repeti as palavras de Jesus, quando disse aos seus discípulos: “Sem mim nada podeis fazer”.
Que significado teve comemorar com os luteranos na Suécia os quinhentos anos da Reforma? Houve um “acelerar de passos”?
O encontro com a Igreja Luterana em Lund foi um passo a mais no caminho ecumênico que começou há cinquenta anos num diálogo luterano-católico que deu os seus frutos com a Declaração comum, assinada em 1999, sobre a doutrina da Justificação, isto é, sobre como Cristo nos torna justos salvando-nos com a sua Graça necessária, ponto do qual partiram as reflexões de Lutero. Portanto, retornar ao essencial da fé para redescobrir a natureza daquilo que une. Antes de mim, Bento XVI esteve em Erfurt, e sobre isto ele falou acuradamente, com muita clareza. Repetiu que a pergunta sobre “como posso ter um Deus misericordioso” havia penetrado no coração de Lutero e estava por detrás de toda sua busca teológica e interior. Ocorreu uma purificação da memória. Lutero desejava fazer uma reforma que deveria ser como um remédio. Pois as coisas estavam cristalizadas, estavam misturadas aos interesses políticos daquele tempo, e tinha terminado no cuius regio eius religio, pelo qual se devia seguir a confissão religiosa quem tinha o poder.
Mas há quem pensa que nestes encontros ecumênicos o senhor queira “subvalorizar, vender barato” a doutrina católica. Alguns disseram que se quer “protestantizar” a Igreja.
Não me tira o sono. Eu prossigo sobre a estrada de quem me precedeu, sigo o Concílio. Quanto às opiniões, é sempre necessário distinguir o espírito com o qual elas vêm expressas. Quando não há um mau espírito, elas também ajudam a caminhar. Outras vezes logo se percebe que as críticas aparecem aqui e lá para justificar uma posição já assumida, não são honestas, são feitas com espirito mau para fomentar divisões. Percebe-se logo que certos rigorismos nascem de uma falta, do querer esconder dentro de uma armadura a própria triste insatisfação. Se assistir ao filme A festa de Babete, lá existe este comportamento rígido.
Também com os luteranos tem sido feito um forte apelo para trabalharem juntos por quem se encontra em estado de necessidade. É necessário então colocar à parte as questões teológicas e sacramentais e apontar somente para o comum esforço social e cultural?
Não se trata de deixar algo de lado. Servir aos pobres significa servir a Cristo, porque os pobres são a carne de Cristo. E se servimos os pobres juntos, quer dizer que nós cristãos nos reencontramos unidos no tocar as chagas de Cristo. Penso no trabalho que após o encontro de Lund podem fazer juntas a Caritas e as organizações caritativas luteranas. Não é uma instituição, é um caminho. Certas maneiras de contrapor as “coisas da doutrina” às “coisas da caridade pastoral” não são segundo o Evangelho e criam confusão.
A comemoração conjunta de Lund sinalizou um momento de aceitação mútua e um nível de profunda compreensão recíproca. Mas a partir daí como se podem resolver as questões eclesiológicas ainda conflitantes, inclusive aquelas em relação ao ministério e aos sacramentos, em particular a Eucaristia, que nos separam da Igreja Luterana? Como é possível superar estas questões para podermos caminhar em direção a uma unidade que seja visível ao mundo?
A Declaração conjunta sobre a Justificação é a base para poder continuar o trabalho teológico. O estudo teológico deve ir adiante. Existe o trabalho que está fazendo o Pontifício Conselho para a unidade dos cristãos. O caminho teológico é importante, mas sempre junto com o caminho da oração, realizando junto obras de caridade. Obras que são visíveis.
Também ao Patriarca de Moscou, Kirill, o senhor disse que “a unidade se faz caminhando”, “a unidade não virá como um milagre no fim, caminhar juntos já é fazer a unidade”. O senhor sempre repete estas afirmações. Mas o que significa?
A unidade não se faz porque entramos num acordo entre nós, mas porque caminhamos seguindo Jesus. E caminhando, por obra daquele que seguimos, podemos nos descobrir unidos. É o caminhar no seguimento de Jesus que nos une. Converter-se significa deixar que o Senhor viva e opere em nós. Assim nos descobrimos unidos também em nossa missão comum de anunciar o Evangelho. Caminhando e trabalhamos juntos nos damos conta que já estamos unidos no nome do Senhor e que não fomos nós que criamos a unidade. Percebemos que é o Espírito que nos impulsiona e que nos leva adiante. Não se pode seguir a Cristo se o Espírito não o conduz, não o impulsiona com a sua força. Por isso é o Espírito o artífice da unidade entre os cristãos. Eis porque digo que a unidade se faz no caminho, porque a unidade é uma graça que se deve pedir, e também por que repito que todo proselitismo entre cristãos é pecaminoso. A Igreja não cresce nunca por proselitismo, mas “por atração”, como escreveu Bento XVI. O proselitismo entre cristãos, portanto, é em si mesmo um pecado grave.
Por quê?
Porque contradiz a dinâmica de como tornar-se e permanecer cristão. A Igreja não é um time de futebol que procura torcedores.
Quais são então os caminhos para ir em direção da unidade?
Realizar processos em vez de ocupar espaços é a chave também para o caminho ecumênico. Neste momento histórico, a unidade se faz sobre três vias: caminhar juntos com as obras de caridade, rezar juntos e reconhecer a confissão comum assim como se exprime no comum martírio sofrido em nome de Cristo, no ecumenismo de sangue. Aí se percebe que o próprio Inimigo reconhece a nossa unidade, a unidade dos batizados. O Inimigo nisto não erra. E estas são todas expressões de unidade visível. Rezar juntos é visível. Realizar obras de caridade juntos é visível. O martírio dividido em nome de Cristo é visível.
No entanto, ente os católicos não parece ainda de maneira muito viva uma sensibilidade para a busca da unidade entre os cristãos e uma percepção da dor da divisão…
Também o encontro de Lund, como todos os outros passos ecumênicos, foi um passo adiante para fazer compreender o escândalo da divisão, que fere o corpo de Cristo e que também diante do mundo não podemos nos permitir. Como podemos dar testemunho da verdade do amor se brigamos, se nos separamos entre nós? Quando eu era menino, com os protestantes não se falava. Havia um sacerdote em Buenos Aires que quando os evangélicos vinham a rezar com as tendas mandava o grupo de jovens queimá-las. Hoje os tempos mudaram. O escândalo vai ser superado simplesmente fazendo as coisas juntos com gestos de unidade e fraternidade.
Quando em Cuba o senhor encontrou o patriarca Cirilo, as suas primeiras palavras foram: “Temos o mesmo batismo. Somos bispos”.
Quando eu era bispo em Buenos Aires, davam-me grande alegria todas as tentativas realizadas por muitos sacerdotes para facilitar a administração dos batismos. O batismo é o gesto com o qual o Senhor nos escolhe, e se reconhecemos que somos unidos no batismo, quer dizer que somos unidos naquilo que é fundamental. É aquela a fonte comum que une todos os nós, cristãos, e nutre cada possível novo passo nosso para retornar à plena comunhão entre nós. Para redescobrir a nossa unidade não devemos “ir além” do batismo. Ter o mesmo batismo significa confessar juntos que o Verbo se fez carne: isto nos salva. Todas as ideologias e teorias nascem a partir de quem não se firma nisto, não permanece na fé que reconhece Cristo vindo na carne, e quem “ir além”. Daí nascem todas as posições que tiram da Igreja a carne de Cristo, que “desencarnam” a Igreja. Se olhamos juntos para o nosso batismo comum, somos também libertos da tentação do pelagianismo, que quer nos convencer que nos salvamos pela nossa própria força, com os nossos ativismos. E permanecer no batismo nos salva também da gnose. Esta última desnatura o cristianismo reduzindo-o a um percurso de conhecimento, que se pode fazer sem o encontro real com Cristo.
O Patriarca Bartolomeu, em uma entrevista a Avvenir, disse que a raiz da divisão foi a penetração de um “pensamento mundano” na Igreja. Também para o senhor é esta a causa?
Continuo a pensar que o câncer na Igreja é o dar-se glória um ao outro. Se alguém não sabe quem é Jesus, ou nunca o encontrou, pode sempre encontrá-lo; mas se alguém está na Igreja, e se move nela porque é neste âmbito que cultiva e alimenta a sua fome de domínio e afirmação de si, tem uma doença espiritual, crê que a Igreja seja uma realidade humana autossuficiente, onde tudo se move de acordo com a lógica da ambição e do poder. Na reação de Lutero havia também isto: a rejeição de uma imagem de Igreja como uma organização que podia seguir adiante sem contar com a Graça do Senhor, ou considerando-a como um processo de antemão realizado, garantido a priori. E esta tentação de se construir uma Igreja autorreferencial, que leva à contraposição e então à divisão, retorna sempre.
Em relação aos ortodoxos, é citada com frequência a assim conhecida “fórmula Ratzinger”, enunciada pelo teólogo que depois se tornou Papa: aquele segundo a qual “no que diz respeito ao primado do Papa, Roma deve exigir das Igrejas ortodoxas nada além daquilo que no primeiro milênio veio estabelecido e vivido”. Mas a perspectiva da Igreja do início e dos primeiros séculos o que pode sugerir de essencial, ainda no tempo presente?
Devemos olhar para o primeiro milênio, pode sempre nos inspirar. Não se trata de retornar para trás de maneira mecânica, não é simplesmente fazer “retrocesso”: ali existem tesouros válidos ainda hoje. Antes falava de autorreferencialidade, a mania pecaminosa da Igreja em olhar demais para si mesma, pensando possuir luz própria. O patriarca Bartolomeu disse a mesma coisa falando de “introversão” eclesial. Os Padres da Igreja dos primeiros séculos tinham claro que a Igreja vive instante por instante da Graça de Cristo. Por isso – já disse outras vezes – dizíamos a Igreja não possui luz própria, e a chamávamos mysterium lunae, o mistério próprio da lua. Por que a Igreja dá luz, mas não brilha a partir de luz própria. E quando a Igreja, em vez de olhar para Cristo, olha demais para si mesma, vêm também as divisões. É o que ocorreu depois do primeiro século. Olhar Cristo nos liberta desta mania e também da tentação do triunfalismo e do rigorismo. E nos faz caminhar juntos na estrada da docilidade ao Espírito Santo, que nos leva à unidade.
Em diversas Igrejas ortodoxas existem resistências ao caminho da unidade, como no caso daqueles a quem o metropolita Ioannis Zizioulas define como “talibãs ortodoxos”. Algumas resistências podem ainda existir na parte católica. O que se pode fazer?
O Espírito Santo leva as coisas à realização, com os tempos que Ele estabelece. Por isto não podemos ser impacientes, descrentes, ansiosos. O caminho requer paciência no cuidar e melhorar aquilo que já existe, que é muito mais do que aquilo que divide. E testemunhar o seu amor por todos os seres humanos, para que o mundo creia.
Entrevista à jornalista Stefania Falasca, da Revista Avvenire. Tradução Frei Gustavo Medella.