O Papa e o Monte Alverne
04/06/2012
O mau tempo que atingiu, no domingo dia 13, a região da Toscana obrigou o Papa Bento XVI a cancelar a visita programada ao Santuário franciscano de La Verna. No entanto, o discurso que teria proferido aos Frades Menores, às Irmãs Clarissas da Toscana e às religiosas residentes em “Chiusi della Verna” foi publicado e autorizado a ser difundido pela Sala de Imprensa da Santa Sé.
Queridos Frades Menores
Estimadas filhas da Santa Madre Clara
Queridos irmãos e irmãs
O Senhor vos conceda a paz!
Contemplar a Cruz de Cristo! Subimos como peregrinos ao Sasso Spicco de La Verna onde «dois anos antes da sua morte» (Celano, Primeira Vida, III, 94: FF, 484) São Francisco teve impressas no seu corpo as chagas da paixão gloriosa de Cristo. O seu caminho de discípulo levou-o a uma união tão profunda com o Senhor que partilhou também os sinais exteriores do supremo ato de amor da Cruz. Um caminho iniciado em São Damião diante do Crucifixo contemplado com a mente e o coração. A meditação contínua da Cruz, neste lugar sagrado, foi caminho de santificação para tantos cristãos que, ao longo de oito séculos, aqui se ajoelharam para rezar no silêncio e no recolhimento.
A Cruz gloriosa resume os sofrimentos do mundo, mas é sobretudo sinal tangível do amor, medida da bondade de Deus em relação ao homem. Neste lugar também nós somos chamados a recuperar a dimensão sobrenatural da vida, a dirigir o olhar para além do que é contingente, para voltar a confiar-nos completamente ao Senhor, com o coração livre e em júbilo perfeito, contemplando o Crucificado para que nos atinja com o seu amor.
Altíssimo, onipotente, bom Senhor, vossos são o louvor, a glória e a honra et omne benedictione»(Cântico do Irmão Sol: FF 263). Só deixando-se iluminar pela luz do amor de Deus, o homem e a natureza inteira podem ser resgatados, a beleza pode finalmente reflectir o esplendor do rosto de Cristo, como a lua reflecte o sol. Jorrando da Cruz gloriosa, o Sangue do Crucificado volta a vivificar os ossos áridos do Adão que está em nós, para que cada um encontre a alegria de se encaminhar rumo à santidade, de subir ao alto, rumo a Deus. Deste lugar abençoado, uno-me à oração de todos os franciscanos e franciscanas da terra: «Nós vos adoramos ó Cristo e vos bendizemos aqui e em todas as igrejas que estão no mundo, porque com a vossa santa cruz remistes o mundo».
Arrebatados pelo amor de Cristo! Não se vem a La Verna sem se deixar guiar pela oração de são Francisco do absorbeat, que reza: «Nós vos imploramos, ó Senhor, a fervorosa e doce força do teu amor arrebate a minha mente de todas as coisas que estão debaixo do céu, para que eu morra por amor do meu amor» (Oração «absorbeat», 1: FF 277). A contemplação do Crucificado é obra da mente, mas não consegue libertar-se para o alto sem o apoio, sem a força do amor. Neste mesmo lugar, Frei Boaventura de Bagnoregio, insigne filho de São Francisco, projetou o seu Itinerarium mentis in Deum indicando-nos o caminho a ser percorrido para a meta na qual encontrar Deus. Este grande Doutor da Igreja comunica-nos a sua experiência, convidando-nos à oração.
Antes de tudo, a mente deve estar orientada para a Paixão do Senhor, porque é o sacrifício da Cruz que elimina os nossos pecados, uma falta que só pode ser preenchida com o amor de Deus: «Exorto o leitor — escreve — antes de tudo ao gemido da oração por Cristo crucificado, cujo sangue lava as manchas das nossas culpas» (Itinerarium mentis in Deum, Pref. 4). Mas para que seja eficaz, a nossa oração precisa de lágrimas, ou seja, do envolvimento interior, do nosso amor que responda ao amor de Deus.
E depois é necessária aquela admiratio, que são Boaventura vê nos humildes do Evangelho, capazes de admiração diante da obra salvífica de Cristo. E precisamente a humildade é a porta de qualquer virtude. De fato, não é com o orgulho intelectual da busca fechada em si mesma que é possível alcançar Deus, mas com a humildade, segundo uma célebre expressão de São Boaventura: «Não pense [o homem] que é suficiente a leitura sem a unção, a especulação sem a devoção, a busca sem a admiração, a consideração sem a exultação, a obra sem a piedade, a ciência sem a caridade, a inteligência sem a humildade, o estudo sem a graça divina, o espelho sem a sabedoria divinamente inspirada» (Ibidem).
A contemplação do Crucificado tem uma eficácia extraordinária, porque nos faz passar da ordem das coisas pensadas, à experiência vivida; da salvação esperada, à prática bem-aventurada. São Boaventura afirma: «Aquele que olha atentamente [para o Crucificado]… realiza com ele a páscoa, ou seja, a passagem» (Ibid., VII, 2). É este o centro da experiência de La Verna, da experiência que aqui fez o Pobrezinho de Assis. Neste Monte Sagrado, São Francisco vive em si mesmo a unidade profunda entre sequela, imitatio e conformatio Christi. E assim diz também a nós que não é suficiente declarar-nos cristãos para sermos cristãos, nem sequer procurarmos fazer obras boas. É necessário conformar-se com Jesus, com um lento, progressivo compromisso de transformação do próprio ser, à imagem do Senhor, para que, por graça divina, cada membro do Corpo d’Ele, que é a Igreja, mostre a semelhança necessária com a Cabeça, Cristo Senhor. E também neste caminho se começa — como nos ensinam os mestres medievais no seguimento do grande Agostinho — a partir do conhecimento de si mesmos, da humildade de olhar com sinceridade para o próprio íntimo.
Levar o amor de Cristo! Quantos peregrinos subiram e sobem a este Monte Sagrado para contemplar o Amor de Deus crucificado e para se deixar arrebatar por Ele. Quantos peregrinos subiram em busca de Deus, que é a verdadeira razão pela qual a Igreja existe: servir de ponte entre Deus e o homem. E aqui encontramos também a vós, filhos e filhas de São Francisco. Recorda-vos sempre de que a vida consagrada tem a tarefa específica de testemunhar, com a palavra e com o exemplo de uma vida segundo os conselhos evangélicos, a história fascinante de amor entre Deus e a humanidade, que atravessa a história.
A Idade Média franciscana deixou uma marca indelével nesta vossa Igreja de Arezzo. As repetidas travessias do Pobrezinho de Assis e o seu prolongar-se no vosso território são um tesouro precioso. A vicissitude de La Verna foi única e fundamental, devido à singularidade dos estigmas impressos no corpo do seráfico Pai Francisco, mas também à história coletiva dos seus frades e do vosso povo, que ainda redescobre, junto do Sasso Spicco, a centralidade de Cristo na vida do crente. Montauto de Anghiari, Le Celle de Cortona e as Ermidas de Montecasale e de Cerbaiolo, mas também outros lugares menores do franciscanismo na Toscana, continuam a marcar a identidade das Comunidades de Arezzo, Cortona e Sansepolcro. Tantas luzes iluminaram estas terras, como santa Margarida de Cortona, figura pouco conhecida de penitente franciscana, capaz de reviver em si mesma com extraordinária vivacidade o carisma do Pobrezinho de Assis, unindo a contemplação do Crucificado com a caridade pelos últimos. O amor a Deus e ao próximo continua a animar a obra preciosa dos franciscanos na vossa Comunidade eclesial. A profissão dos conselhos evangélicos é uma via-mestra para viver a caridade de Cristo. Neste lugar abençoado, peço ao Senhor que continue a enviar operários para a sua vinha e, sobretudo aos jovens, dirijo o urgente convite, para que todo aquele que é chamado por Deus responda com generosidade e tenha a coragem de se entregar à vida consagrada e ao sacerdócio ministerial.
Fiz-me peregrino a La Verna, como Sucessor de Pedro, e gostaria que cada um de nós voltasse a ouvir a pergunta de Jesus a Pedro: «Simão, filho de João, tu amas-Me mais do que estes?… Apascenta os Meus cordeiros» (Jo 21, 15). É o amor a Cristo que está na base da vida do Pastor, assim como da do consagrado; um amor que não receia o compromisso nem a fadiga. Levai este amor ao homem do nosso tempo, muitas vezes fechado no seu individualismo; sede sinal da misericórdia imensa de Deus. A piedade sacerdotal ensina aos sacerdotes a viver aquilo que se celebra, repartir a própria vida com quem encontramos: na partilha do sofrimento, na atenção aos problemas, no acompanhamento do caminho de fé.
Agradeço ao Ministro-Geral José Carballo as suas gentis palavras, a toda a Família Franciscana e a todos vós. Perseverai, como o vosso Santo Padre, na imitação de Cristo, para que todos os que se encontrarem convosco encontrem São Francisco e encontrando São Francisco, encontrem o Senhor.
Papa Bento XVI
MONTE ALVERNE
Domingo, 13 de maio de 2012