No jardim de Bragança
09/02/2019
Nas casas da Província por onde passou, Frei Regis Guaracy Ribeiro Daher plantou pelo menos uma árvore. Para ele, esse amor pelas plantas e flores faz parte da herança franciscana. “É um contínuo ‘milagre’ participar desta explosão de vida!”, ensina. O espaço verde onde está a Fraternidade de Bragança Paulista é generoso para alegria do frade. Plantas, mudas, vasos, galhos, flores estão em toda parte. Com tamanha riqueza verde, não faltam esquilos, muitos pássaros e jacus. Enquanto conversava, Frei Regis estava de olho no bem-te-vi, que espertamente mergulhava na fonte do jardim para pegar os peixes. Didaticamente, como é próprio de sua personalidade, Frei Régis explica que esta ave é da família dos tiranídeos e que come de tudo, desde frutas e flores até insetos e ovos de passarinhos. É capaz de ameaçar até gaviões e urubus quando estes se aproximam do seu território.
E das plantas que cultiva, Frei Régis esbanja conhecimentos. Sabe de cor o nome científico delas. Com certeza não rivaliza com o seu grande confrade Frei José Mariano da Conceição Vellozo, o autor da “Flora Fluminensis” (1790), mas conhece tudo o que cultiva no Jardim de Bragança. Essa característica de sua personalidade tem a ver com sua primeira profissão: a de professor. É no Vale do Paraíba, precisamente em Jacareí, que nasce, no dia 8 de abril de 1952, Frei Régis, o quinto filho na ordem de nascimento de Maria Augusta e Alfredo Daher (Mário Ney, Paulo Afonso, José Ivens e Isa Maria do primeiro casamento. Alfredo Júnior é filho do segundo casamento).
Lecionou durante quatro anos Desenho e Educação Artística para alunos do 1º Grau nas escolas públicas estaduais nas cidades de Igaratá, São José dos Campos e Paraibuna. Sempre indo de um lado para o outro, às vezes “comendo” poeira em algumas estradas com o seu Volks TL. Nos finais de semana, o mestre não parava. Era um assíduo colaborador dos Retiros promovidos pelas Irmãs Mensageiras do Amor Divino de Aparecida. Tinha uma vida intensa nas equipes dos “Retiros do Amor Divino”, o que ajudou no seu discernimento vocacional, embora já, aos 8 anos de idade, pediu ao pai autorização para ingressar no Seminário Redentorista. O pai, descendente de libaneses, achou cedo demais para ele viver longe da família.
Depois, foi o próprio pai que o conduziu para o Seminário de Vocações Adultas (Sevoa) em 1975. Esse ingresso tinha como primeira inspiração o sacerdócio. Durante a formação, a partir do Noviciado em 1976, sua decisão mudou e, na última etapa, durante a Teologia, decidiu ser irmão leigo franciscano. Após os estudos de Filosofia e Teologia (77-81), trabalhou os 13 primeiros anos em casas de formação da Província: 82-83 (Guaratinguetá); 84-91 (Agudos) e 92-94 (Rondinha). Esteve a serviço da Secretaria Provincial (95-2010) por quinze anos, um trabalho que fez com perfeição, cuidado e dedicação. Viu a importância da internet quando ela assustava os ambientes eclesiais e se tornou um dos frades que mais incentivou as novas mídias na Província, ajudando a criar o Setor de Comunicação da Sede Provincial.
Hoje, nos jardins de Bragança, Frei Regis não deixa de navegar na internet, mas sua prioridade é o verde, embora seja um corintiano. Acompanhe a entrevista! Moacir Beggo
Site Franciscanos – Em que momento de sua vida se sentiu atraído pelo carisma franciscano?
Frei Regis – Aos 18 anos de idade (1970). Quando comecei os estudos na faculdade (curso de Desenho e Educação Artística), convivi com uma religiosa das Irmãs de São José de Chamberry. Ela plantou as primeiras sementes para a vida cristã mais intensa e compromissada. Inspirado pelo meu irmão mais velho, Mário, em 1971 participei do movimento dos Cursilhos. No mesmo ano, comecei a dar aulas na cidade de Igaratá (SP), onde passei a conviver com as Irmãs Franciscanas Hospitaleiras que ali atuavam. Delas, certamente vieram as primeiras inspirações.
Site Franciscanos – Que motivação o trouxe para a Ordem dos Frades Menores?
Frei Regis – É uma história meio longa. Mas resumindo, em 1974, fui visitar o Seminário Frei Galvão, em Guaratinguetá, e na capela tive a certeza que era ali o meu lugar. Sem muitas palavras ou ideias. Algo interior. Na realidade, São Francisco vem primeiro, a Ordem é consequência.
Site Franciscanos – Fale um pouco de sua família. Como ela recebeu a sua escolha?
Frei Regis – Família de cinco filhos, dos quais eu sou o caçula. Do segundo casamento do meu pai, depois de viúvo, nasceu um irmão com diferença de 23 anos. Portanto, são 5 homens e uma única filha (já falecida). Todos os filhos e o pai dedicaram suas vidas à educação (professores, diretor de escola) em escolas públicas. Da minha mãe recebi a influência religiosa. Fui coroinha a partir dos 7 anos de idade. Em 1974, quando me preparava para a entrada no seminário, meus irmãos já eram todos casados e meu pai viúvo. Nos anos 1971 a 1974, participei ativamente da vida eclesial: movimentos de jovens, casais, catequese e retiros. De modo que a opção pela vida religiosa foi se constituindo naturalmente. Creio que todos receberam bem, com exceção do pai que imaginava outra coisa. Com o tempo, não só aceitou mas compreendeu do que se tratava e me deu apoio. Foi ele quem me conduziu ao Sevoa em 1975.
Site Franciscanos – Quando você ingressou no seminário já tinha clareza que entrava na Ordem para ser frade menor?
Frei Regis – Quando se é jovem, a única clareza é o próprio São Francisco no seguimento de Cristo. É a paixão do ‘primeiro amor’, que age mais por impulso do que por racionalidade. Só aos poucos, muito lenta e gradativamente, é que as coisas vão se sedimentando, “com os pés no chão” vamos tomando consciência do que seja ‘ser frade menor’ e membro de uma fraternidade, a Ordem dos Frades Menores. O processo de maturidade dura a vida toda.
Site Franciscanos – Em que momento de sua caminhada decidiu ser irmão leigo?
Frei Regis – Durante os estudos da Teologia (1977 a 1981), com a aproximação das ordenações (diaconato e presbiterado) dos meus colegas ao final do curso. Senti que não devia (nem podia) assumir os ministérios apenas como consequência cronológica dos anos da formação. Ao final do 5º ano (1981), pedi ao Ministro Provincial um tempo mais intenso de aprofundamento para uma decisão madura e consciente. Recebi, então, minha primeira transferência para Guaratinguetá, para ajudar na formação dos seminaristas. Só ao longo dos anos é que se foi sedimentando a vocação do religioso leigo. Hoje, tenho clareza que não me enganei em percorrer esse caminho.
Site Franciscanos – Quem é o Frei Regis? Como você se autodefine?
Frei Regis – Enquanto “frei”, são meus irmãos é quem devem saber quem eu sou. O frade só existe enquanto membro de uma fraternidade, entendida em seu sentido mais amplo, “irmão de toda a criatura”. Não acho possível me autodefinir. O ser humano vive e convive. O contorno de quem somos de fato só aparece nas relações que estabelecemos com tudo e com todos. É o nosso “conviver” que revela quem somos. Para não escapar de todo da pergunta, considero-me uma pessoa feliz, sinto alegria em viver e conviver. Entendo que a cada dia Deus renova a criação da qual faço parte. Nascemos a cada dia. Alguns preferem dizer: “Morremos a cada dia”.
Site Franciscanos – Você sempre gostou de trabalhar com jardinagem ou isso veio depois?
Frei Regis – Veio com o tempo. Acho que faz parte da herança franciscana. Na medida em que a gente vai percebendo que a vida pulsa em cada criatura e que tudo está em comunhão. É um contínuo ‘milagre’ participar desta explosão de vida! Acredito que a contemplação ‘passa’ por esta experiência do mistério da existência.
Site Franciscanos – Como ser um bom frade? Quais os desafios da vida em fraternidade?
Frei Regis – Primeiro: carregando paciente, alegre e humildemente o peso da própria existência. É a cruz de cada dia. Segundo: abraçando a todos e qualquer situação, como condição da verdade do seguimento. Quanto aos desafios da nossa vida: fraternidade é um dom e uma tarefa. Não ‘entramos’ numa Ordem ideal e pré-existente como uma dádiva sem compromisso. É um dom de Deus se dispor construir a fraternidade. O maior desafio é o de acreditar nisso até o fim da vida. É esse o sentido mais profundo dos votos religiosos, sobretudo na profissão solene. Não é possível ‘cobrar’ nada da fraternidade sem antes ter dado a própria vida para construí-la.
Site Franciscanos – Você acha que o clericalismo ameaça a Ordem como disse o Definidor Geral Frei Valmir Ramos?
Frei Regis – Bem antes do Frei Valmir se manifestar sobre o clericalismo, o Papa Francisco em 13.12.2016, em sua homilia na missa da Casa Santa Marta, criticou veementemente o que ele chamou de “um mal que afasta o povo da Igreja”. Comparou as atitudes dos fariseus e doutores da lei com o mal que também afeta a Igreja nos dias de hoje: “Os intelectuais da religião tinham a autoridade jurídica, moral e religiosa, decidiam tudo. Com a lei feita somente por eles, ‘intelectual, sofisticada, casuística’, cancelam a lei do Senhor. E a vítima, assim como foi Jesus, todos os dias é o povo humilde e pobre que confia no Senhor, aqueles que são descartados. Aqueles que tinham o poder, que levavam adiante as catequeses do povo com uma moral feita pela sua inteligência e não a partir da revelação de Deus. Os clérigos se sentem superiores, se afastam das pessoas e não têm tempo para escutar os pobres, os que sofrem, os presos, os doentes”. Portanto, esse risco do clericalismo atinge a todos nós na medida em que nos afastamos do seguimento de Cristo pobre, humilde e crucificado.
Site Franciscanos – Francisco tem lugar no mundo de hoje?
Frei Regis – Mais do que nunca. Quanto mais a humanidade se distancia da sua origem primeira tanto mais sente a frustração e o vazio. Francisco é uma referência na busca que todo ser humano realiza pelo sentido de sua existência. Daí a permanente atração que ele exerce em qualquer tempo. Francisco é o que todo homem gostaria de ser.
Site Franciscanos – Como vê o Pontificado do Papa Francisco? Você acha que ele vai ter forças para suportar as pressões daqueles que se opõem às mudanças e reformas propostas por ele?
Frei Regis – Penso que o caminho que o Papa inspirou na Igreja, e para além dela, é um caminho sem volta. Trata-se de um retorno à integralidade do Evangelho. Fica cada vez mais clara e patente a incoerência dos que se opõem a essas mudanças. Não se trata de algo opcional. É um imperativo para a permanência da Igreja e do seu testemunho no mundo. Está cada vez mais claro “quem é o joio e quem é o trigo”.
Site Franciscanos – Você acha que os franciscanos estão aproveitando bem essa evidência do carisma que o Papa sempre faz questão de colocar em pauta?
Frei Regis – Esse processo de ‘purificação’ a que me referi anteriormente atinge a todos no interior da Igreja, também a nós, franciscanos. Quem não viver este processo vai “perder o trem da história”. O governo geral da Ordem está atento a essas mudanças. Cabe a cada um acolher esse tempo de graça e de conversão.
Site Franciscanos – Como você vê a iniciativa e disposição de se buscar a unidade dos três ramos masculinos da Ordem Franciscana?
Frei Regis – É um caminho longo e difícil porque ao longo da história foram se cristalizando mais as diferenças do que tudo aquilo que nos é comum. Acredito que podemos nos unir na medida em que formos capazes de assumir projetos comuns de vida e na evangelização. O movimento de unidade deve acontecer de ‘fora’ para ‘dentro’. Não será nunca fruto de acordos e compromissos oficiais e institucionais.
Site Franciscanos – No jardim de sua vida, você encontrou mais espinhos ou rosas?
Frei Regis – A imagem do jardim não é a melhor para simbolizar a vida. Prefiro a de uma estrada ou caminho, mais dinâmica com movimentos e paradas, descobertas, surpresas. Na vida encontramos simultaneamente ambas as coisas, espinhos e rosas. O espinho não é de todo ruim. Há espinheiros que dão flores, por vezes, tão ou mais belas que as rosas. Basta ver alguns tipos de cactos. Talvez as dificuldades mais agudas da vida sejam oportunidades valiosas de amadurecimento humano e espiritual. Muitas vezes, o encanto e a admiração da beleza são efêmeros e passageiros.
Site Franciscanos – Como você apresentaria a Ordem dos Frades Menores a um jovem hoje?
Frei Regis – A Ordem é um caminho entre outros. Não somos detentores de uma única verdade, nem Francisco é nossa ‘patente registrada’. Francisco é uma inspiração de vida que pode ser acolhida de muitos modos. Meu mestre de noviciado dizia que “muitos têm a vocação franciscana, mas poucos os que aceitam vivê-la numa instituição, a Ordem”. O nosso tempo vive uma crise de valores, o que dificulta grandemente assumir compromissos definitivos. São poucos os que desejam consagrar a própria vida numa instituição com seus limites. Em geral, o jovem tem dificuldade de abrir mão de sua liberdade e autonomia para assumir um projeto de vida. No entanto, há quem – uma minoria – ainda hoje aceite viver esse desafio.