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“Estão faltando padres”, diz teólogo Alphonse Borras

31/03/2017

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Alphonse Borras, Vigário Geral da Diocese de Liège (Bélgica) e professor emérito de Direito Canônico na Universidade de Leuven, aborda temas relacionados com o ministério presbiteral hoje. Para as edições dehonianas escreveu “Il diaconato, vittima della sua novità?” (‘O diaconato, sob o risco da sua novidade’. Lisboa: Ed.Paulinas, 2012). Sobre a falta de sacerdotes e como lidar com esta situação emergencial, encaminhamos a ele algumas questões.

 A entrevista é de Lorenzo Prezzi, publicada por Settimana News, 21-03-2017. A tradução é de Luisa Rabolini

(http://www.ihu.unisinos.br).

 Eis a entrevista!

Monsenhor Borras, o senhor escreveu para as edições Mediapaul um livro esclarecedor “Quand les prêtes viennent a manquer” (‘Quando faltam padres’ em trad. livre), retomando um tema já abordado por Pe. J. Kerkhofs em sua obra de 1995, “Europa senza preti” (‘Europa sem padres’, trad. livre). Por que considera ilusória a expectativa de um aumento significativo das vocações presbiterais no Ocidente?

 No final dos anos 50, Karl Rahner foi o primeiro (e depois dele vieram outros teólogos) a diagnosticar o fim da cristandade – ou seja, uma Igreja na diáspora – e, depois, de forma crescente ao longo da década de 1990, muitos episcopados da Europa Ocidental e do Quebec (Canadá) compartilharam o mesmo diagnóstico. João Paulo II também assumiu tal convicção em relação às Igrejas de antiga tradição cristã em Novo millennio ineunte (n. 40). Se o recrutamento sacerdotal da Igreja latina, a partir do segundo milênio, e em especial depois do Concílio de Trento, é destinado a jovens solteiros, isso se deve em parte às condições culturais e eclesiais de um mundo cristão. Admitir que essa condição está superada, significa reconhecer os limites de um recrutamento que correspondia a condições específicas da Igreja da christianitas. Nos séculos do cristianismo, onde o espaço religioso tendia a coincidir com o civil, o clero era uma condição que, na sociedade em simbiose com a Igreja, conferia um status jurídico e um papel social. Estatuto e papel que iam além – e, eventualmente, ao lado – da missão estritamente ministerial de servir à Igreja e à sua missão.

 Nenhum salto previsível

 Na minha humilde opinião, é ilusório esperar uma retomada significativa das vocações presbiterais, levando em conta vários fatores. Apontarei três que merecem uma análise mais aprofundada.

Em primeiro lugar, existe o fator sócio-cultural, ou seja, o desgaste do cristianismo como regime sociológico em conexão com a evolução sócio-cultural da pós-modernidade e da mundialização.

Depois, há a evolução das novas gerações: demograficamente os jovens são bem menos numerosos, na proporção, do que apenas 40 anos atrás; em seu desenvolvimento psicoafetivo não se encontram mais, como acontecia anteriormente, jovens de 18 anos que consideram plausível, culturalmente falando, a abstinência sexual.

Do ponto de vista eclesial, os processos de catequese e a vida da comunidade estão centrados no crescimento espiritual em termos de jornada pessoal na experiência da fé por iniciativa individual que constrói de forma dinâmica – e, às vezes, dialética – a própria identidade. O indivíduo deve, nesse sentido, “tornar-se” cristão – e possivelmente continuar assim! – principalmente por sua iniciativa e não mais em decorrência de uma socialização com base na religiosidade civil; os jovens e os adultos que “decidem” se tornar cristãos – e assim permanecer – estão “no caminho”, questionando e aprofundando a sua experiência, e às vezes colocando-se “em suspenso”; registram sua evolução religiosa de forma dinâmica, como uma espiral, e não segundo uma perspectiva linear onde tudo converge para uma construção estável da própria identidade pessoal e cristã.

Se, como falou o Papa Bento XVI, agora temos um cristianismo de escolha, é ingênuo pensar, para a maioria das pessoas, que a escolha ocorra na saída da adolescência: a realidade nos mostra – especialmente na experiência dos “recomeçantes” (pessoas que retornam ao cristianismo após um período de afastamento) – que a experiência cristã alastra-se ao longo de um amadurecimento em etapas ao longo do tempo. O tempo de grandes escolhas não é mais preso ao período dos estudos superiores…

Isso não significa que não existam jovens capazes de responder a um apelo de investir suas vidas a serviço do Evangelho, da Igreja e de sua missão; mas eles são e serão menos numerosos que outrora. Eu não acho que seja preciso aguardar mais uma década para iniciar um debate franco sobre a questão, considerando que, com o Papa Francisco, é possível falar mais livremente. Sua recente entrevista ao Die Zeit é significativa…”.

A distinção entre “precariedade relativa” no número de padres em uma igreja local e “precariedade absoluta” o que significa?

É uma distinção que eu retomo de dois colegas teólogos franceses, Marie-Thérèse Desouche e o prof. Jean-François Chiron. Analisando as mudanças em curso na França, eles identificaram, em 2011, duas situações de escassez de padres; por um lado, a “precariedade relativa” com um número de padres menor do que seria ideal, mas com outros recursos, principalmente colaboradores laicos com disponibilidade para a dinâmica pastoral; e, por outro lado, a situação de “precariedade absoluta”, onde o bispo diocesano logo não poderia “dispor do mínimo de sacerdotes capazes de assumir as missões essenciais”. O que fazer nos dois casos? O que pode funcionar para a primeira situação não é dito que também possa ser aplicado para a segunda.

O meu livro é um convite para refletir sobre uma Igreja que terá menos padres. A realidade nos obriga a fazê-lo, na França como em outros países da Europa Ocidental e da América do Norte. A diminuição do número de sacerdotes está se acentuando em várias dioceses e até mesmo em algumas províncias eclesiásticas. Isso se acentua nas áreas rurais e mais afastadas das cidades. Em tais circunstâncias, já foi ultrapassada a “precariedade relativa”; em algumas dioceses, em breve, será atingido o grau de “precariedade absoluta”. Somo minha voz à dos dois teólogos citados; creio que urge um sério reconhecimento da realidade. Caso contrário, continuaremos a pecar por cegueira… voluntária!”.

Homens, não territórios

Foram postas em prática várias tentativas para remediar à falta de sacerdotes. Poderia especificar algumas peculiaridades de cada solução?

Antes de especificar alguns aspectos, gostaria de salientar o axioma que atravessa toda a reflexão no meu livro: “Igreja é o lugar onde estão os batizados; a paróquia é onde estão os paroquianos”. É de importância primordial considerar, em primeiro lugar e antes de tudo, a comunidade eclesial; ela recebe, assume e transmite o Evangelho anunciado, celebrado e testemunhado. Devemos partir do primado do “sujeito” eclesial dentro do qual se assentam batizados, pastores e outros ministros e, na diversidade das suas vocações, carismas e ministérios.

Pessoalmente insisto nos batizados “em sua diversidade” de percursos e de caminhadas dentro de uma Igreja que é entendida como corpus permixtum, como gostava de dizer Santo Agostinho, onde estão, ao mesmo tempo, fiéis fervorosos, interessados, ocasionais, sazonais, militantes, místicos etc. Vemos seus sinais precursores no Novo Testamento, especialmente nos Evangelhos, em que conjuntos diferentes e diversificados de pessoas entram em relação com Jesus de Nazaré, como a multidão, os anônimos em contato com ele, os discípulos, os doze apóstolos e alguns mais próximos como Pedro, Tiago e João. Gosto de insistir no caráter variado, misturado, miscigenado do povo de Deus para evitar a tentação da ameaça dos puros e da ameaça sectária. Isto é verdade para cada comunidade eclesial, incluindo a paróquia. As pessoas que entram em relação de uma maneira ou outra com a Igreja, como aqueles que se comprometem com ela, fazem isso com bases motivacionais distintas, que determinam a sua identificação ou, pelo menos, a sua relação com a Igreja Católica. O pertencimento eclesial é dinâmico em termos de biografia, de caminho, de percurso. Hoje, mais do que nunca. Mas cada um está a caminho, sempre porque foi chamado à conversão para se tornar e permanecer um cristão. É, portanto, um trabalho de base que deverá ser colocado em prática para nutrir e desenvolver a fé dos fiéis, apoiando e incentivando o testemunho das comunidades em seus respectivos ambientes. Sem tal consideração pelo sujeito primário da missão, isto é, a comunidade eclesial, cada aspecto perde a sua consistência e, acima de tudo, relevância.

 Coordenadores pastorais

E o recurso aos laicos como coordenadores das equipes pastorais?

 Há duas hipóteses. Tanto a hipótese de que esses coordenadores assumam o papel de coordenação do trabalho da equipe pastoral para favorecer sua missão de estreita colaboração pastoral no cargo pastoral do pároco, na preparação das reuniões, na sua dinâmica, no seu andamento etc.; como a segunda hipótese, em que os coordenadores exerçam o seu ministério na ausência do pároco no sentido exato do cânone 519, mas no contexto da fórmula de suplência de acordo com o cânone 517 § 2, na figura de um padre “moderador”, ou seja, responsável pelo serviço pastoral, mas sem ser pároco.

No segundo caso, o coordenador assume a função de direção da vida e do testemunho das comunidades interessadas, gerindo o compromisso dos voluntários laicos e dos agentes pastorais (ou seja, eventuais assalariados). Na França, várias dioceses, não tendo padres suficientes para o papel de párocos para as unidades pastorais ou novas paróquias – em ambos os casos realidade que acomunam diversas igrejas – lançaram mão desta nova figura do coordenador pastoral.

É uma solução para lidar com a escassez… mas, no curto prazo, irá criar problemas, porque, apesar da utilidade do serviço dos coordenadores, está ocorrendo uma ruptura entre a direção pastoral e direção eucarística. Na tradição eclesial a direção da eucaristia cabe àquele que assume a direção da comunidade e não o inverso. A eucaristia não é apenas para a satisfação de devoção individual, mas é a ação por meio da qual a comunidade eclesial toma forma como corpo de Cristo. A participação ou comunhão com o corpo eucarístico de Cristo dá origem à comunhão ou participação ao corpo eclesial de Cristo”.

 Padres estrangeiros

E o recurso a sacerdotes estrangeiros (primeiro da Europa Oriental, agora da África e da Ásia)…

É evidente a utilidade do recurso a esses sacerdotes: as dioceses precisam deles. Geralmente eles se inserem bem nas comunidades onde suas qualidades humanas e sensibilidades especiais com os idosos os tornam bem aceitos. São ainda mais apreciados, pois permitem a continuidade da eucaristia que, sem eles, seria ainda mais rara. Mas não podem ser ignorados os problemas de integração no presbitério e, a partir daí, na realidade da diocese, na sua história, cultura, costumes e tradições etc. A sua presença claramente requer discernimento, mas também demanda o acompanhamento e a formação. Considerando que as dioceses não são mais capazes de ter seus próprios sacerdotes autóctones, o que precisa ser observado quando se recorre a padres estrangeiros?

A primeira questão é saber se a presença desses padres não nativos contribui para a catolicidade de nossas Igrejas locais. Isso pressupõe a vontade de se inserir neste lugar, tomando efetivamente parte na realidade da diocese e no seu destino. Nesse contexto, destaca-se a memória da Igreja local: em que medida poderá ser assumida por um clero alóctone mais e mais numeroso? Temos que confiar em sua capacidade de entrar plenamente no espírito da Igreja diocesana, para perceber o que caracteriza a sua própria originalidade no contexto mais amplo da cultura circundante. Para além de sua boa vontade e das condições favoráveis à sua integração, esses padres – pelo menos aqueles chamados para permanecer de forma permanente com a gente – serão e continuarão a ser “mestiços”, no mesmo nível de outros imigrantes; não do lugar mas, também, não estranhos.

 Necessário discernimento

Por isso, é crucial operar o discernimento necessário para a sua inclusão, especialmente quando esta se anuncia durável, se não perpétua. Tal discernimento não pode, portanto, ser limitado às qualidades humanas e espirituais dos sacerdotes estrangeiros. Será necessário verificar a sua capacidade de se inscrever em um novo universo cultural e, mais ainda, sua capacidade para entrar no ethos democrático que caracteriza as nossas práticas eclesiais na Europa Ocidental. É necessário considerar o necessário arraigamento desses padres alóctones em nossas dioceses para compartilhar a memória eclesial e promover a catolicidade. Mas, ao mesmo tempo, esses padres vindos do exterior, trazem consigo seus próprios carismas, biografias específicas, os caminhos de fé, experiências de Igreja etc. Em outras palavras, radicados em nossas dioceses, eles contribuem para o intercâmbio de bens espirituais com os fiéis locais, para seu enriquecimento evangélico e para a comunhão das nossas dioceses com toda a Igreja. Papa Francisco recorda enfaticamente que “a diversidade cultural não ameaça a unidade da Igreja” (EG 117).

A segunda questão é, portanto, saber em que medida as nossas comunidades podem ser tocadas e desafiadas ou transformadas pela contribuição desses sacerdotes, mas também, dado o fluxo migratório, pelos outros fiéis alóctones. Uma vez que esses outros fiéis, incluindo os sacerdotes, estão entre nós, como comunicar junto com eles o Evangelho aqui e agora? É um verdadeiro “trabalho” análogo à gestação. É um trabalho de longo prazo, porque pode dar frutos só depois de alguns anos, ou até mesmo décadas.

Levando em conta o que já foi mencionado, a contribuição dos sacerdotes não-nativos deve ajudar a viver “a conversão pastoral e missionária” (cf. EG 5-27, 30-32, 97). É com eles que temos que trabalhar para a catolicidade da Igreja local, e, em especial, para o “nós” do presbitério, que já não pode mais ser pensado como uma divisão entre autóctones e alóctones. Frente à escassez de sacerdotes locais, o acolhimento destes sacerdotes de fora não resolve por si só a precariedade das dioceses. Estas devem promover as condições para acolher candidatos locais para o sacerdócio”.

 Diáconos e religiosas

E investir em diáconos como responsáveis pelo cuidado da pastoral territorial?

Os diáconos não se destinam ad sacerdotium, à direção eclesial eucarística (cf. cânones 1008 e 1009 § 3). No entanto, existe uma diversidade de perfis diaconais, dependendo das necessidades da comunidade; alguns deles alinham-se melhor com um perfil voltado para a dinâmica das comunidades e de direção da oração. O Vaticano II não excluía esse papel para os diáconos, devido ao fato de que os padres conciliares tinham como modelo os catequistas das jovens Igrejas para projetar o restabelecimento do diaconato permanente. Da mesma forma, hoje, não devemos excluir tal possibilidade, mas, se todos os diáconos começarem a exercer um papel de liderança, vai haver certa preocupação quanto à manutenção do restabelecimento do diaconato permanente. Seria teologicamente mais consistente que cripto-presbíteros serem ordenados padres.

Reconhecer a responsabilidade pastoral às religiosas?

Eu não descartaria isso. Nos países do norte da Europa o colapso das vocações femininas “apostólicas” torna essa eventualidade pouco provável. De acordo com o carisma de sua congregação que pode ser, por exemplo, de apoio da pastoral paroquial, estas religiosas podem encontrar o seu lugar em uma equipe pastoral, eventualmente como coordenadoras da unidade pastoral (ver acima). Seria problemática uma generalização do recurso às religiosas frente ao problema já mencionado, ou seja, a separação entre direção eclesial e direção eucarística. Ressalto que não é suficiente “distribuir a Sagrada Comunhão”, como é feito nas comunidades latino-americanas… O que deve ser salvaguardado é a ação eucarística como um todo, através da qual o povo de Deus “toma corpo”, em Cristo, pelo Espírito, em torno da dupla mesa da Palavra e do pão!

Monsenhor Borras, por que o senhor considera adequado como solução “excepcional”, o recurso aos “viri probati” e sugere fazê-lo antes do definhamento de uma Igreja local?

Eu acho que ao longo dos séculos, a disciplina do clero celibatário generalizou-se após as decisões do Concílio Lateranense III (1179) e IV (1215) e foi relançada pelo Concílio de Trento, época em que ainda havia, apesar do direito canônico, padres concubinos. Reservar o sacerdócio para os celibatários foi o resultado de um estudo espiritual e pastoral da ligação entre ministério e celibato: é um tesouro da Igreja Católica latina que ainda pode mostrar toda a sua riqueza de significado: disponibilidade profissional, dedicação mais intensa aos fiéis, solidariedade com os celibatários “forçados” pela existência, expressão de um dom de toda a própria pessoa por uma adesão a Cristo, sinal de que Deus pode preencher uma vida, significado escatológico que revela o caráter efêmero da existência e antecipa a esperança de uma plenitude de vida – Deus todo em tudo – e muito mais. Um tesouro a ser valorizado.

Por outro lado, Igrejas ou comunidades eclesiais não católicas redescobrem o interesse e alcance de um ministério eclesial vivido no celibato. Seria lamentável que a Igreja Católica Latina mudasse sua disciplina geral. Mas, por causa de circunstâncias pastorais e, especialmente, pelas necessidades efetivas de direção eclesial e eucarística, não poderiam ser aceitas para o bem das almas – lei suprema da Igreja – possíveis exceções? Mesmo que fossem numerosas, elas continuariam exceções mutatis mutandis, como, por exemplo, os muitos casamentos mistos por disparidade de culto que não são a regra, mas fruto de uma exceção por dispensa da lei eclesiástica. O maior número desses casamentos, hoje, não coloca em causa o bom fundamento da regra.

 “Viri probati “

Para o bem dos fiéis e de suas comunidades, podem-se prever exceções ao celibato sacerdotal. Espero que o papa, por exemplo, através de um motu proprio, possa declarar que não reserva mais para si a dispensa do impedimento para o casamento, e que dá a oportunidade de acordá-lo às Conferências Episcopais ou às províncias eclesiásticas. Já em seu discurso de 17 de outubro de 2015, o Papa Francisco disse que as questões disciplinares, de acordo com as necessidades da Igreja local, poderiam ser resolvidas pelas Conferências Episcopais.

Autorizada a dispensa, os bispos interessados poderiam definir os perfis dos homens casados que escolheriam para serem ordenados. Em algumas dioceses mais carentes, os bispos poderiam optar pelos próprios diáconos que já conhecem, e dos quais apreciam a fé e o zelo pastoral. Isto pressupõe um sólido discernimento para não eliminar a renovação do diaconato permanente.

Por isso é muito importante que isso seja discutido ao nível das Conferências Episcopais ou das províncias eclesiásticas para evitar o caso a caso, com bispos que apresentariam diretamente a Roma seus viri probati. Finalmente, entre o momento em que o Papa toma esta decisão e a ordenação do primeiro homem casado vão se passar alguns anos. Tempo suficiente para nos perguntarmos: que tipo de presença da Igreja precisamos? Que tipo de sacerdote queremos e para que missão no mundo de hoje? … Em suma, chamar um ou outro homem casado para a ordenação presbiteral prevendo que um dia será possível, não deveria ser feito à custa de uma reflexão geral sobre o sentido da missão da Igreja e do seu serviço de direção eclesial e eucarística.

O padre H. Legrand escreveu em 1978: “Intervir tarde demais em comunidades anêmicas, quando os instrumentos de formação já estão rarefeitos, pode causar a total inoperância de tal decisão”. E o colega acrescentou: “Uma lei geral sobre o assunto não é o ideal: a análise rigorosa das situações locais parece, do ponto de vista cristão e pastoral, mais prudente”. A minha proposta de confiar às Conferências Episcopais a dispensa do impedimento matrimonial vai precisamente neste sentido”.

 Mulheres padre

O que pode ser dito, de acordo com o magistério e consciência eclesial de hoje, sobre a ordenação de mulheres?

 “É um tema “inevitável”: proteger-se com o rótulo de “definitivo” pode dar a impressão de que a Igreja seja intelectualmente incapaz de pensar as condições de sua missão. As mutações antropológicas em curso – a igualdade dos sexos tornou-se uma espécie de “virtude cardinal” – exigem a experiência cristã e a sua capacidade de reinterpretar a si mesma em contato com o ambiente. A teologia não foi uma repetição de verdades absolutas e atemporais, mas diálogo e reinterpretação constante com a sociedade coeva.

Um diálogo nem sempre honrado; a história da teologia atesta, infelizmente, a existência de períodos de “repetição autorreferencial” de afirmações doutrinais. Isto não é sem consequências quando se trata de pensar teologicamente novamente a ordenação de mulheres cristãs. O que está em jogo não é apenas a credibilidade da teologia, mas a capacidade da comunidade eclesial de se repensar no mundo de hoje. O debate sobre a eventualidade da ordenação deve (ou deverá) enfrentar primeiramente o androcentrismo ambiental, as marcas da discriminação patriarcal ligadas à diferença e, principalmente, a subordinação sexual das mulheres. É hora de se empenhar em uma crítica – teórica e prática – do androcentrismo e das suas consequências na vida eclesiástica.

A segunda etapa da reflexão teológica sobre o assunto é a de considerar os vários argumentos para negar a ordenação de mulheres cristãs e, sobretudo, os seus pressupostos hermenêuticos. A Igreja não se considerada “autorizada” para alterar sua posição…, mas uma consideração serena, ponderada, refletida dos pressupostos argumentativos usados, vai abrir o caminho para uma apreciação mais equilibrada do assunto. Por enquanto, o sacerdócio fica reservado aos homens. Para o nosso propósito, não há qualquer remédio em curto prazo para a escassez de sacerdotes quando se olha para a possibilidade da ordenação de mulheres.

As mulheres são, no entanto, a grande maioria dos laicos que trazem diariamente o testemunho do Evangelho. Na verdade, em termos de serviços essenciais para a missão da Igreja, elas representam um corpo importante de colaboradoras pastorais. Sua colaboração está ligada à sua personalidade, gostos e afinidades, experiência de vida, história pessoal, e não apenas ao seu sexo, entendido aqui como gênero (ou ‘sexo social’), nem às características culturais (estéreo) típicas da feminilidade.

A sua contribuição não é reduzida à pretensa natureza “feminina” das tarefas e responsabilidades a elas permitidas. Claro, é reconhecido a elas um tipo de liderança mais dinâmica, porque mais relacional, transformadora, capaz de se envolver emocionalmente através da atenção, da disponibilidade, da gratuidade, da empatia, mas também através da capacidade de construir o conjunto e estreitar os laços. Sua liderança mais interativa incentiva a participação e promove a resolução de conflitos.

No atual contexto de mudança, e em função de uma eclesiologia participativa, não seria esse o estilo de liderança mais esperado? Tudo isso nos leva de volta ao dado fundamental da co-responsabilidade batismal de todos com a missão.

 Além do medo

Para possíveis escolhas futuras, quanto pode pesar o tradicionalismo, o eclesiocentrismo e o clericalismo?

 Refletindo cuidadosamente, parece-me que o denominador comum dessas três atitudes que perpassam a vida Igreja seja o… medo! Primeiro, o tradicionalismo. É o medo de enfrentar com confiança o presente, que é o tempo que nos é dado viver, concretamente, a presença de Deus no mundo de hoje. Não há nenhuma razão para pensar que o Deus cristão – o Deus de um povo abraâmico – seja hoje menos fiel do que antigamente.

O eclesiocentrismo ó o medo de enfrentar a presença do mundo em que a Igreja é chamada a proclamar as maravilhas de salvação, medo de entrar em diálogo com o hoje, de aprender com nossos contemporâneos para procurar e descobrir com eles os vestígios do Reino; é também o medo de sair, o medo de viver o nosso DNA, que é a missão. Diz o Papa Francisco, a Igreja não tem o seu fim em si mesma!

O clericalismo, por fim, também é marcado pelo medo: o dos laicos, o medo de perder o poder, o medo de ser desafiado ou questionado, o medo de caminhar humildemente com os nossos irmãos e irmãs na fé, assim como o de ser ensinados por eles, pelo sensus fidei fidelium. Em resumo, o medo de ser um batizado como os outros, na escuta da Palavra, mendicante do pão eucarístico, nutrição de todo um povo em sua caminhada!

O modelo de exercício do ministério presbiteral é cada vez mais concentrado no pároco.

Poderia ser diferente?

 A diversidade sempre existiu. Não deve ser pensada “em si”, mas em função da comunidade, ou seja, em função da disposição da Igreja local – em cada local – através de uma pluralidade de comunidades. E, primeiramente, a paróquia: ela garante grande parte da visibilidade da Igreja local; é a “casa aberta”, a “fonte para todos”, o “redil” para quem quiser chegar. O ministério na paróquia, mais claramente do que nos movimentos e associações, nos coloca em contato com pessoas que não escolhemos, que nos foram confiadas como elas são e não como gostaríamos que elas fossem (ou como sonharia o movimento). Diz François Moog, um colega da pastoral de Paris, é o ‘privilégio concedido aos pobres’: qualquer um que está ‘em algum lugar’ por estar ‘em algum lugar’ pode-se sentir em sua própria casa, na Igreja como um simples domicílio.

A paróquia não é o único lugar para ser parte do Evangelho anunciado, celebrado e testemunhado. O Papa Francisco recorda-nos: ‘A paróquia não é uma estrutura caduca’ (EG 28). A instituição da paróquia reestrutura-se em novas figuras. Mas, como no passado, temos também que contar com a presença e com a inferência de outras realidades da Igreja, que, por sua vez, permitem à Igreja que se realize em outro lugar: santuários, escolas, hospitais, capelas hospitalares, prisionais e escolares, meios de comunicação católicos, centros de formação, mosteiros e abadias etc. Ao contrário do passado, essas realidades eclesiais são eventualmente a porta para um primeiro ou regular acesso à vida da Igreja e ao tesouro da fé.

São lugares que não excluem a paróquia que conserva a sua originalidade, ou seja, a territorialidade e a catolicidade. Mas hoje, mais do que ontem, especialmente nas cidades, é nesses lugares que os nossos contemporâneos, na crista das vicissitudes da vida, descobrem algo da riqueza do Evangelho, caminham junto com outros crentes e professam a fé da Igreja. Estes locais estão incluídos no espectro plural da anunciação do Evangelho em uma Igreja local. Cabe à autoridade episcopal, em razão do seu ministério de unidade, promover e assegurar sua articulação, ou melhor, a comunhão entre as diferentes realidades eclesiásticas.

De passagem, deve-se dizer que não escapa a ninguém que essas outras realidades eclesiais não podem contar com numerosos sacerdotes como no passado. Mas a experiência nos ensina que, na maioria delas, os fiéis que participam contribuem pessoalmente para a sua vitalidade e desenvolvimento. Os padres ainda são reconhecidos no seu papel: eles são o ponto de ligação entre elas e o resto da diocese em virtude de seu pertencimento ao mesmo presbitério, presidido pelo bispo.

Antes do anúncio

A urgência da evangelização e das decisões em vista do futuro pode suportar uma discussão corajosa e livre sobre o ministério ordenado?

 Além da divulgação midiática e magisterial do Papa Francisco, poderíamos nos questionar se as Igrejas locais e os seus pastores estão suficientemente conscientes do indispensável discernimento para encontrar novos caminhos para a missão. Eu tenho a impressão que a palavra do Papa transmite segurança, mas que não são levadas suficientemente a sério as condições da missão, as perguntas dos nossos contemporâneos “que moram entre nós”, as exigências concretas de nos tornarmos “discípulos-missionários” (EG 120). O que eu considero mais importante no meu livro não são as soluções ou receitas para fazer a mesma coisa com menos padres, mas de envolver a natureza intrínseca de toda a comunidade eclesial.

A urgência da evangelização abre uma discussão corajosa sobre a missão. Certamente precisamos de sacerdotes. Mas para qual missão ou missões? O texto sugere uma segunda questão igualmente essencial: sacerdotes sim, mas para qual comunidade? Isto questiona a Igreja e o testemunho dos batizados no mundo de hoje. Será que realmente devemos nos preocupar com a carência de padres? Não deveríamos talvez nos inquietar mais com a comunicação do Evangelho, no sentido literal do termo (ser ou permanecer sem descanso, portanto sem trégua)? É uma inquietação que temos que viver no meio da multidão de uma imensa procissão de testemunhas – de “discípulos-missionários” – que, no séquito do Paulo, não cessam de repetir: “Ai de mim se eu não anunciar o Evangelho!