Entrevista: Missão de Angola entra para a história da Ordem
03/03/2007
Site Franciscanos – Como foi chegar à Missão de Angola?
Frei Evaristo Spengler – Quando cheguei na Missão, em maio de 2001, ainda era tempo de guerra. Malange, cidade no Interior de Angola, sofria ataques e tinha uma série de restrições por parte da ONU, inclusive de horários, nos locais onde se podia passar. Não podíamos ir às aldeias e ficar à noite ou se deslocar muito cedo. Então, só das 9 horas da manhã até às 17 horas era permitido transitar. Em outras áreas nem era permitido o acesso. A guerra terminou em abril de 2002. Foi quando nós descobrimos o território onde estava a nossa Missão. Da sede, em Luanda, até o final, a distância é de 500 quilômetros. Em 30 anos de guerra, as estradas de terra tinham sido destruídas, não houve manutenção, assim como as pontes, que foram destruídas enquanto o governo perseguia a Unita ou vice-versa. O cenário era de muita fome nas aldeias. O povo plantava, mas nunca chegava a colher porque tinham de fugir devido aos ataques. A comida ficava e se estragava. Isso causava muita fome, muita insegurança, pouca estabilidade. Mesmo em se tratando de evangelização, das pastorais, não se podia ter uma coisa muito organizada. Então, com o fim da guerra é que se começou a estruturar um pouco essa parte de evangelização com os catequistas das aldeias. A fé do povo foi alimentada neste período pelos catequistas, mesmo sem informações, sem material de liturgia, sem material de catequese. Havia um grupo muito grande que esperava, no final da guerra, ser batizado, fazer a primeira comunhão, receber a Eucaristia. Voltar às cidades do Interior foi sempre assim: busca pelos sacramentos e por formação, para eles continuarem o trabalho que já vinham fazendo. O papel de um catequista, nas aldeias, é fazer a oração da manhã com o povo, dar a catequese, fazer o culto dominical. É ele que mantém a vida cristã na comunidade. Quando os missionários chegam, celebram a Eucaristia e ministram os sacramentos.
Frei Gustavo Medella – E esse modelo permanece até hoje?
Frei Evaristo – Permanece até hoje. É o modelo do catecumenato. Num período de quatro anos, eles preparam a pessoa que quer receber os sacramentos de iniciação.
Site Franciscanos – Como foi o fim da guerra?
Frei Evaristo – Com final da guerra, o povo voltou para as suas aldeias e começou a reconstruir as casas, refazer as roças e se criou, assim, uma certa estabilidade. Hoje, quando se pergunta se existe fome, a resposta é: não existe mais. Plantam aquele mínimo para a subsistência, como mandioca, abóbora, milho, batata, banana, abacate, mamão e outras frutas, além de peixes. A terra é fértil e boa.
Frei Alexandre – Tive que esperar seis meses para receber o visto de entrada no país. Quando cheguei, em julho de 2002, fiquei em Luanda e peguei um pouco deste controle que havia e que Frei Evaristo já falou, porque foi justamente alguns meses depois do final da guerra. Havia muito controle nas estradas, você não podia transitar com tanta liberdade, mas já vivíamos outra expectativa. Morava numa paróquia em Luanda, coordenada por um sacerdote que não era franciscano. Muito rica, essa paróquia abrigava as pessoas que saíram do Interior, fugindo da guerra, e ficaram residindo na capital. Era interessante ver a mistura étnica muito grande naquele bairro. Quando tivemos o Congresso Eucarístico Nacional, um ano depois, os cantos foram feitos em cinco, seis, sete idiomas, por causa desta diversidade. Mas tudo com uma relação muito próxima e fraterna.
Frei Gustavo – Isso é em Malange?
Frei Alexandre – Em Luanda, que como São Paulo, é o nome de uma cidade e de um estado. E no caso de Viana, ela pertence à Província de Luanda, mas já é outra cidade, fazendo parte da Grande Luanda. E ali vivem numa casa de formação junto com os frades professos temporários e logo no ano seguinte eles puderam também começar a fazer a Filosofia e foi uma junção de institutos religiosos, porque já havia Filosofia da diocese.
Site Franciscanos – Você é mestre?
Frei Alexandre – Fui até um período. Há um ano e meio fui para Malange. Os frades viveram o primeiro ano como Mestre dos postulantes e depois os frades vieram do Noviciado, que fizeram no Brasil. Neste primeiro ano que foram era um ano de estágio pastoral. Começou-se logo a fazer o estudo filosófico e teológico. E aí tivemos oportunidade de em 2003 ir a Malange. Então, você se dá conta que em 2003 já havia dois anos quase – um ano e meio – que a guerra já havia terminado. E quando chegamos a estas aldeias, fizemos um mutirão missionário. Os frades estudantes, os frades de Viana, fomos todos a Malange para ir ao Interior. Já havia 2 anos que a guerra havia terminado, uma coisa que nos marcou, ao chegar nestas aldeias, a festa com que nos acolheram. E eles disseram assim: “Agora, nós acreditamos que a guerra acabou”. Os missionários estavam de volta. Fui um momento muito forte, de muitos testemunhos. Para fazer isso, tivemos de andar 250 quilômetros, sendo uma parte de carro e o resto de bicicleta ou moto e a pé.
Frei Evaristo Spengler – Para se ter uma idéia, havia uma mulher grávida que veio para se casar. Ela, o marido catequista e alguns filhos. Esperaram todo o tempo da guerra para isso. Ela saiu na sexta-feira de manhã e sexta-feira à tarde sentiu dores do parto, parou numa aldeia, teve o bebê. No sábado, o catequista colocou-a nas costas e carregava o bebê nos braços. Caminhou no sábado inteiro, domingo todo e chegou na segunda. Para se casar.
Frei Alexandre – Esse povo esperou esse período todo para receber os sacramentos. Foram os catequistas que alimentaram isso. A partir daquele momento havia uma pressão muito forte, numa cidade muito grande, de formação e de atualização dos catequistas e junto à pressão para que nós atingíssemos maior espaço possível para responder à necessidade sacramental que essas populações tinham. Depois retornamos a Luanda. Foi uma experiência que marcou os frades angolanos e agora estou em Malange há um ano e poucos meses. E nesse momento, a Igreja de Angola, foi pedido por parte do governo, que a Igreja o governo a reconstruir a rede de saúde e escolas. Hoje, existe um grande esforço dos missionários para investir nessas áreas. Da parte da Igreja, nós temos o compromisso de reabilitar as escolas destruídas da Missão e reconstruir escolas novas. Então, eles reconstroem essas estruturas e o Estado deverá entrar com a colocação dos professores e o material para equipamento destas salas. Existe este convênio e as coisas estão avançando assim. O que a Igreja de Angola tem feito ali é uma coisa formidável. E claro, junto com isso, tem o desafio de formar os professores para superar algumas práticas pedagógicas, que muitas vezes ainda hoje acontecem, como palmatória, e a pouco fidelidade nas aulas. Todo um trabalho tem de ser refeito.
Site Franciscanos – Existe violência?
Frei Alexandre – Eu imaginava uma Angola mais violenta, do que no Rio de Janeiro. Eu esperava uma estrutura, mas surpreendentemente não encontrei. Lá não se ouve tiros. Coisa que nossas realidades aqui são muito mais violentas. Mas é preciso um investimento muito grande em educação para isso não acontecer.
Frei Gustavo – Em que momento se encontra a missão?
Frei Angelo – O trabalho na cidade, onde nós estamos, é tipicamente urbano. O bairro de Palankafaz parte da Grande Luanda, como Viana, onde o Frei Alexandre morou também é um município mas faz parte da Grande Luanda. E a Igreja ali tem características de cidade. Os problemas que se têm numa cidade, como falta de hospitais, falta de escolas, de saneamento básico. Isso é em toda Luanda, principalmente na periferia, onde nós moramos. Na cidade há sinais de recuperação dessa infra-estrutura. Luz elétrica tem uma estabilidade regular.
As populações saíram das zonais rurais e vieram para a capital. O governo aceitou que as pessoas ocupassem a periferia de forma irregular. Então, hoje, a periferia é um mar de casinhas. Os bairros são irregulares.
Frei Evaristo – Praticamente um terço da população de Angola está em Luanda.
Frei Angelo – A Grande Luanda tem 5 milhões de habitantes atualmente. E ali também temos falta de estruturas nas paróquias, nas comunidades, faltam salas de aula, para catequese, para reuniões. Há muitas matrículas de crianças para a catequese, matrículas e matrículos. Não temos condições de acolher todo mundo. Há essa procura, sem dúvida. A Igreja lá na cidade também tem essa característica de o pessoal ir à procura dos sacramentos iniciais. Batismo, primeira comunhão e crisma. Casamento é outra história, pois tem a questão da bigamia.
Na cidade, nós temos a preparação das lideranças, mas é muito rotativa. Não têm aquelas lideranças fixas como há nas comunidades do interior. Na cidade, eles entram, depois arrumam empregos, arrumam uma escola para estudar, já não podem mais dar catequese. Tem que botar outro. Essa preocupação a gente sempre tem. Essas preocupações a gente sempre tem com os cursos de formação de lideranças.
Site Franciscanos – Como é a Igreja de Luanda?
Frei Angelo – A Igreja de Luanda tipicamente assim, digamos, administrada, coordenada, não só Luanda, mas toda Angola, por missionários estrangeiros. Então, não existe uma linha de pastoral minha definida, determinada. Porque cada um vem com sua experiência pastoral do seu país.
Frei Gustavo – É mais ou menos por conta de cada pároco?
Frei Angelo – Cada grupo de irmãs que está junto tocando o projeto, cada um faz um pouco seu projeto, sua colégios grandes. As congregações fortes faz grandes colégios, com 20, 30 salas e atende o povo.
Site Franciscanos – São particulares?
Frei Angelo – Não são bem colégios particulares. São colégios que o governo paga os professores, paga o diretor. A direção fica por conta da congregação das irmãs e as crianças colaboram com uma mensalidade pequena para a manutenção diária da escola, lanches etc. E as Igrejas organizam muitas escolas de explicação. Temos muitas escolas de explicação. É uma escolinha para crianças que não conseguem vaga na escola regular. E lá é assim o sistema: se a criança tem 6 anos, ela não conseguiu uma vaga para entrar na escola regular, ela não entra mais. Só vai entrar com 12 anos, quando começa a alfabetização de adultos. Não é como no Brasil. Então, tem muita criança fora do sistema escolar. Então, a Igreja monta salas e saletas.
Site Franciscanos – E Angola é um país jovem?
Frei Angelo – Sim, 60% têm até 18 anos. Então, o pessoal busca aprender, participa. Na sede paroquial temos 17 grupos de jovens só de uma comunidade. Todas as comunidades têm vários grupos de jovens, grupos de catequeses, pastorais familiares, Jufra, OFS. Depois temos os trabalhos sociais que são as escolas. Na cidade, na Escola Santa Teresa, temos 1.600. Depois, uma tem 300, outra tem mais ou menos 500 crianças. Só na nossa paróquia, em Luanda. Temos três creches que estão funcionando na Paróquia e o projeto Nossos Miúdos, que é um trabalho com menores abandonados. Frei Márcio encontra eles na rua. As crianças ficam perto daqueles depósitos de lixo, onde pegam pequenos objetos e se alimentam. Muitos não têm família, outros têm. Então, Frei Márcio faz um trabalho de reintegração na família. Fica com eles, recupera, coloca na escola e cria uma auto-estima na criança. Uma vez por mês a criança tem de visitar a família, nem que seja um tio, um avô, uma avó. Tem que visitar. Quando fazem 17 anos, eles passam para outra casa. Eles vão morar sozinhos num quartinho, onde mora uma família. Mas eles têm de começar a tocar a vida deles. Esse projeto “Nossos Miúdos” também tem uma padaria, onde fazem pães, vendem os pães todos os dias e ajudam no auto-sustento da casa.
Site Franciscanos – Qual o limite de idade no projeto?
Frei Angelo – Eles ficam até os 17 anos e depois são encaminhados para outro projeto.
Frei Alexandre – O Frei Márcio conseguiu resultado de retorno à família muito grande.
Frei Angelo – A cidade está com esta campanha de adquirir pequenas máquinas para a geração de renda. A gente está criando uma consciência de que passou esta fase da guerra, do dar, de distribuir comida, roupa, enfim, uma fase mais assistencialista. Foi necessário isso. O povo ainda tem um pouco disso, de que temos de levar comida etc.
Frei Evaristo Spengler – Porque naquela época da guerra tinha os caminhões de alimentação da ONU, que passavam a comida para a Cáritas e eles distribuíam para as missões. Na missão de Malange, com 1.500 a 2 mil pessoas almoçavam diariamente lá. Era um trabalho de socorro imediato. E hoje o trabalho é de estruturação.
Frei Ângelo – Pequenas cooperativas para a geração de renda, junto com as mulheres que são agentes de saúde da Pastoral da Criança. Então, para que elas tenham uma forma de ganhar dinheiro para ajudar no sustento da família e também atender a Pastoral da Criança. Estamos adquirindo pequenas máquinas para fazer fraldas, sacolas de plásticos, sacos de lixo. Essa matéria-prima tem lá, porque existe uma fábrica de plástico. Isso facilitaria.
Frei Evaristo Spengler – Na área de educação, em Malange, durante a guerra ainda, começou um trabalho de alfabetização de adultos nas aldeias, porque nelas os catequistas lêem muito mal e quase ninguém mais. Conseguir lideranças que possam estudar e ensinar é muito difícil. Então, começou-se com um grupo de 13 alfabetizadores voluntários. No início, não recebiam nada pelo trabalho que faziam e depois conseguiu-se a contratação deles. Hoje são 23 professores e aí temos uns 500 jovens e adultos que fazem essa alfabetização em rodeios.
Frei Alexandre – Depois, no final da guerra, acontece um trabalho de preparação das lavras, de preparação das terras. As pessoas se organizam em cooperativas e os frades gerenciam três tratores da Diocese para preparar os funcionários que vão fazer este tipo de trabalho. E com isso existe um aumento considerável na preparação e na produção.
Frei Evaristo – No início, eles recebiam a terra e preparavam, recebiam a semente, tudo na mão. Com o passar dos anos, foram se tornando cooperativas. Cada ano, eles guardam uma parte que colheram para vender e para pagar a colheita seguinte e comprar a semente. Hoje tem várias pequenas cooperativas organizadas, que plantam mandioca, milho, feijão, batata doce, batata.
Frei Angelo – Quando Frei Wilson estava lá, enchia o caminhão de abacaxi e numa tarde, encosta o caminhão na feira, e as mamás compram tudo para revender. Mandioca, carvão… Só que isso não é bem o nosso trabalho lá. Mas teria que ter alguém para se dedicar a isso. Ajuda no sustento da missão? Claro que ajuda. Poderíamos aliviar em muita coisa.Frei Samuel, com o caminhão, ajudava aliviar quando estamos em crise financeira.
Site Franciscanos – Como um empresário, por exemplo, pode ajudar a missão?
Frei Angelo – Se ele tem como declarar o que ele está doando, ele pode mandar. Nós não precisamos declarar o que ganhamos.
Frei Gustavo – Como está sendo a experiência de Noviciado no Brasil?
Frei Alexandre – Inicialmente já tivemos aqui três grupos. Eles saíram muito satisfeitos pela acolhida da Província. Os que vêm para cá voltam encantados do Brasil. O estrangeiro que tem a possibilidade de conhecer nosso país, volta encantando com a cordialidade do brasileiro. Não foi diferente com os nossos frades. Eles guardam muitas recordações. A idéia é que os frades viessem para cá fazer o noviciado até que tenhamos a possibilidade de montar o Noviciado lá, o que seria ideal.
Site Franciscanos – O que muda na Missão depois do Capitulo Provincial de 2006?
Frei Evaristo – O Capítulo Provincial (em novembro de 2006) assumiu oficialmente a Missão e, neste sentido, ela entra na estrutura global da Ordem Franciscana. E vai fazer com que mais Províncias enviem frades para lá. Conseguiu-se também um número maior de frades para Angola visando estruturar todas as fases da formação, de modo especial a reestruturação do Postulantado e em vista de ter um Noviciado na Missão. Com isso, os candidatos não precisariam mais sair de Angola para fazerem este ano de experiência no Brasil. Ficariam dentro da própria cultura, ou seja, da própria realidade deles. Na verdade, a Conferência dos Bispos aconselha que a formação inicial seja toda feita em Angola.
Frei Ângelo – Acredito que um outro desafio que o Capítulo trouxe para nós e uma expectativa é que o que era no passado. A Fundação vivia no anonimato e era conversa de poucos. Hoje a gente sentiu neste Capítulo que é um assunto que todos falam, todos comentam, perguntam. Há um interesse maior dos frades. Acho que este Capítulo, ele possibilitou isso. Podemos dizer que a Fundação saiu do anonimato, do sonho, da paixão de um pequeno grupo que estava lá levando a coisa adiante e voluntários – vocês estão lá porque vocês querem – e começou a ficar mais na boca do povo, como se diz. Isso mostra que a Província está assumindo. Este Capítulo deixou isso bem claro para nós.
Frei Alexandre – O Capítulo também assinalou que a iniciativa de ir para a Missão não passa só pelos frades, mas pelo próprio governo da Província. A gente vê realmente que a Missa é de todos e o carisma missionário não é exceção para alguns. Mas é um carisma do franciscanismo. É um momento belo que se vive neste contexto. Não sou interno da expectativa que Angola vive, mas da Província em relação a nossa Missão está muito envolvida.
Frei Evaristo – Talvez neste sentido o que se falou da evangelização da Ordem Frei Nestor. Se faz missão não por necessidade lá. Necessidade aqui nós também temos. Alguns perguntam por que ir a Angola, se nós temos também uma África dentro do Brasil, ou nós temos pobreza no Brasil. A questão não é a necessidade lá porque temos também aqui. Porque a Igreja nasceu missionária. E a Ordem Franciscana também nasceu missionária. Ou nós somos missionários ou nós somos franciscanos. Quer dizer, na Igreja há várias formas de sermos missionários, mas este missionário ‘ad gentes’ é uma característica essencial da Ordem Franciscana.
Site Franciscanos – Qual o principal desafio da Missão hoje?
Frei Ângelo – Eu vejo assim que um dos grandes desafios – nós estamos lá com um objetivo: semear a Ordem Franciscana – agora, os grandes desafios nossos hoje é como nós vamos dar esse testemunho lá em Angola, um país em que está em ebulição, mudanças, e transformações profundas, culturais, tudo está mudando, se transformando, se contaminando e perdendo a cultura. E não é um processo, assim, lento como em outros países viveram. É uma coisa violenta, rápida, do dia para a noite você tem tantas coisas. Todo mundo está vivendo isso. Se a gente não se cuidar, também vai entrar um pouco dentro deste ritmo e corre-se o risco de se descaracterizar como frades, como Ordem Franciscana. Então, acho que um dos grandes desafios é como que a gente vai estar diante de tudo isso. Como que a gente vai viver junto com o povo essa transformação, como a gente vai prepará-los e vai também, junto, se preparar para poder não ser engolido por esse progresso ilusório, por essa reconstrução, que no fundo traz benefícios, sim, mas para um grupo de privilegiados.
Site Franciscanos – De qualquer forma, vocês já têm uma boa base em 16 anos?
Frei Angelo – Nestes 16 anos, a gente já tem uma presença e já começa a criar um jeito franciscano de estar, fazer, de coordenar, de viver lá com eles. Aos poucos, a gente vai criando estas características, essa maneira de ser nossa. Agora, em 16 anos, contudo, temos uma missão “adolescente”, então, adolescente sonha muito, às vezes, comete certas irresponsabilidades até, não tem muita responsabilidade, a gente conhece como é um adolescente. Então, a Fundação em 16 anos ela está passando para uma fase mais adulta na reflexão. Esses grandes desafios que a gente tem.
Frei Evaristo Spengler – A busca não é de dar rumo ao povo, mas de estarmos juntos com o povo e sermos menores e servidores entre eles. Assim, como Francisco, anunciando a paz e o bem. Assim, buscando fomentar os valores do Evangelho no meio da cultura.
Site Franciscanos – Quanto tempo será necessário para a missão de Angola ser independente?
Frei Evaristo – Para você ter uma idéia, os franciscanos do Egito é muito antigo e agora estão abrindo uma missão no Sudão. Na África do Sul tem uma Província estruturada há muito tempo, eles estão abrindo uma missão na Namíbia. A Ordem reforçou uma frente missionária no Quênia, que a Província de lá abrange dez países. Então, não temos a pretensão de logo ir para fora, mas de fato estruturar o franciscanismo e a Ordem dentro de Angola neste momento. “Partir em missão” é uma coisa para o futuro, não é o pensamento de agora. O pensamento de agora é “ir em missão para lá”. Quer dizer, no futuro, eles lá vão dar um passo de chegar a um outro país. A Ordem já tem presença missionária em mais de metade dos países da África, e essa presença é uma presença crescente porque tem vocações, em toda a África subsaariana. A dificuldade de vocações é no Norte da África, onde a maioria é mulçumana. O Congo democrático tem a maior província da África: tem praticamente 200 frades num país. Em todos os países da África subsaariana as vocações são florescentes. Então, se espera num futuro que todos os países da África possam ter missionários a partir das missões africanas.
Frei Alexandre – Talvez um dos desafios que passamos é que não tínhamos, até o presente momento, um Capítulo. Agora, a partir daqui temos uma expectativa diferenciada. Não tínhamos formadores suficientes para colher um número maior de vocacionados e ter todas as etapas de formação lá. No momento, vivemos uma expectativa positiva. Creio que mais irmãos irão para o acompanhamento em Angola e de modo particular na formação. Porém, em outros países nós verificamos que antes de 50 anos essa autonomia não aconteceu. Então, acho que a gente não pode criar falsas expectativas achando que daqui a 20, 30 anos. Acho que só depois dos 50 anos. E claro um pedido que existe da Ordem é que nesse período até a busca da autonomia, digamos vocacional, independência, que as instituições também criem uma estrutura para manutenção, que é outro desafio. Porque até bem pouco tempo atrás, a África vivia da ajuda externa. Drasticamente essa ajuda está caindo. Nós devemos criar uma estrutura que possibilite que os frades depois consigam, com os recursos locais, não só vocacionalmente mas materialmente, conseguir levar essa Fundação adiante.
Site Franciscanos – Por qual motivo optou-se pela formação inicial em Angola
Frei Alexandre – A própria Conferência Episcopal nos pediu isso. E a primeira situação a gente sabe, que o ideal é que nós recebamos os valores do Evangelho e os valores do franciscanismo dentro da nossa cultura. Então, todos estes primeiros grupos agora. Porque a síntese quem faz não é o estrangeiro que está lá, mas quem vai fazer é cada um em contato da sua cultura com o Evangelho ao movo de vida franciscana. E o melhor espaço para se fazer isso é dentro do próprio país de origem, porque quando você recebe os valores já por quem faz a mediação já são os estrangeiros. E ainda em terra estrangeira, então, essa mediação se torna, me parece, ainda mais complicada. Então, estando na sua terra, até o processo contrário, desses irmãos compreenderem um pouco a cultura, estarem ali e partir dali ajudá-los nesta assimilação, para que cada um possa colher esta síntese. O local ideal é sempre na realidade. Já na Teologia a gente refletia que a gente pensa a partir de onde nossos pés pisam. Então, estar naquela realidade, a formação acontecer lá parece mais legal. Porém, nem todas as etapas fazemos lá, como o Noviciado, por causa da impossibilidade numérica de formadores. Se tivéssemos formadores suficientes, o Noviciado seria lá. Porém sonhamos que em outras etapas, depois da Teologia, na pós-graduação, é importante que o formando, que o frade, vá a outros países, abra os horizontes, como nós fazemos.
Frei Angelo – A questão cultural está por trás de tudo isso. São jovens e tirá-los simplesmente do Continente, trazê-los para o seminário onde tem mais estrutura. Tudo isso já foi feito algumas experiências mas não deram certo. Levamos uma vez o grupo para a Zâmbia, onde foram fazer o estudo de Filosofia. Não deu certo. Lá tem um instituto da Ordem. Tivemos realmente que voltar atrás, a fazer o nosso ato penitencial. Tem todos esses fatores que nos levam a gente a criar um esforço grande. E depois a formação inicial estar lá junto com a gente é um pouquinho dos nossos frutos, né? Do esforço, da presença, do testemunho nosso lá, você vendo outros atrás e estão querendo seguir esta proposta de vida. Acho que isso estimula o missionário. São filhos espirituais e estão aí, mais tarde a gente pensar: olha, são eles que vão tocar isso aqui. Então, para os missionários que moram lá , que estão no país, a questão da formação inicial, em quase todas as congregações, tem a sua formação lá. Isso é um estímulo porque é o fruto de seu testemunho.
Frei Evaristo – A gente falava que é uma orientação dos bispos, mas é também uma orientação da Ordem Franciscana.
Frei Alexandre – É também uma função de mão dupla. Porque neste encontro do dia-a-dia, a partir do mata-bicho, a partir daquilo que se faz, do tipo de comida, então, também somos formados por eles. Porque a gente convive nesta troca e realmente existe um encontro de culturas. Uma coisa é pregar para fora. Então, nós vamos sendo mais africanos, angolanos também, por estar com eles, conviver com eles.
Frei Evaristo – Assimilamos mais a linguagem deles, os costumes, as comidas, na prática do dia-a-dia.
Site Franciscanos – Onde é feito o estudo de Filosofia?
Frei Angelo – Eles atualmente estudam com os salesianos, que têm um Instituto Superior. Durante três anos, eles cursam Filosofia com os salesianos e, neste ano, a fazem Teologia no Seminário Maior da Arquidiocese de Luanda.
Frei Alexandre – E os salesianos pediram o apoio de outras congregações porque eles sozinhos não tocariam. Então, pediram professores, quadros de outras congregações para assumirem juntas esta iniciativa. Então, inclusive, é uma dívida que no momento nós temos. Não temos no momento professores no Instituto. Mas esperamos que com este novo reforço também podermos ter frades que possam participar também deste instituto como coordenadores.
Site Franciscanos – Momento atual da Fimda?
Frei Angelo – A gente tem expectativas, está otimista junto com o povo. Também está contaminado com esta ebulição em Angola. A gente espera que façam estradas, que as coisas melhorem, porque daí as distâncias ficam menores. Por exemplo, de Luanda a Malange são 450 quilômetros e com asfalto dá para ir e voltar no mesmo dia. É claro que o povo tem outras necessidades também. Mas é uma estrutura necessária para se viver, para o povo ir e voltar, para a agricultura escoar sua produção para a cidade. Tem lugares que o amendoim apodrece porque não tem como trazer. Via mar não dá, via rio não dá. Então, a gente vive esse momento. A Fimda também.
Frei Evaristo – E a Missão tanto em Luanda como em Malange está investindo muito em educação. Já foi falado um pouco sobre isso, mas a reconstrução de escolas que foram destruídas e a construção de novas escolas. O grande desafio agora é preparar bem estes professores, para que dêem um ensino de qualidade. Parece que pela educação que vai passar também muito da reconstrução humana do país. Neste sentido, tem dois aspectos importantes: a saúde e a educação. Lá ainda existe muito paludismo. Lá, o animal que mais mata no mundo é um mosquito. Então, por falta de saneamento e condições básicas de saúde, muitas missões estão envolvidas neste trabalho de saúde.
Todo estrutura de saneamento em Luanda é de quarenta anos atrás. O encanamento de água não tem mapas. O que os chineses fazem hoje? Eles botam pressão nas bombas e deixam estourar e sabem localizar onde está passando as condutas de água. A partir dali eles começam a consertar. Porque não se tem um mapa onde passa a luz elétrica, a água, o gás. Tudo foi perdido. O saneamento está todo comprometido.
Frei Alexandre – Muita coisa já feita. Nós, o povo, vivemos a expectativa. Podemos colocar a situação interna da Fundação. Nós vivemos um momento muito feliz, também nas relações interpessoais.
Site Franciscanos – Como você sente o apoio da Província?
Frei Evaristo – Desde o início, quando os frades foram daqui, tinham uma certeza no coração de que não estavam indo sozinhos. Estavam indo em nome da Província e com o respaldo da Província. Foi sempre a Província que nos sustentou, a Província que nos socorreu no momento de doença, e a Província reza muito e faz campanhas pelas Missões. Por exemplo, no ano passado, houve uma campanha grande para que se pudesse colocar uma Bíblia na mão de todos os catequistas e cristãos que são lideranças nas comunidades. E até tenho que fazer um agradecimento muito grande a todas as pessoas que colaboraram nesta campanha. E a outra parte da campanha foi para kits escolares para ajudar as crianças que não podem comprar o material escolar. Este ano está sendo feita uma nova campanha.
Frei Angelo – Este ano na Assembléia decidiu pedir à Província que fizesse a campanha de pequenas máquinas, pequenos aparelhos, de fazer estas sacolas plásticas que a gente recebe nos mercados. A gente tem a matéria-prima lá e porque isso? Fazer pequenas cooperativas de geração de renda para que eles possam ganhar o seu dinheiro e cuidar um pouco mais de suas vidas e também prestar um serviço voluntário, principalmente Pastoral da Criança. São mulheres voluntárias que vão visitar as mulheres grávidas. Se a gente cria uma pequena cooperativa de geração de renda, ela vai trabalhar quatro, cinco dias para o seu sustento e, um dia, ela vai se dedicar à Pastoral da Criança. É um ganho. Ela vai ajudar no sustento da família e vai deixar um pouco dessa renda para o projeto e uma parte vai ficar para ela. Por isso, neste ano, nosso foco está nisso. Aquelas máquinas de fazer fraldas, tijolos, telas, são coisas que a gente pode organizar em pequenos grupos. A gente sempre recebeu apoio da Província e agora vê que a Província começa a se envolver também no apoio à Evangelização.
Frei Evaristo – E dar formação.
Frei Alexandre – Cada dia, cada noite, as nossas orações e nossos agradecimentos na intenção da Província e de nossos benfeitores.
Frei Evaristo – Nem todo mundo pode ser missionário mas todo mundo pode rezar pelas missões, apoiar as vocações para as missões.