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Dom Leonardo: “A nossa sociedade está armada demais, também na Amazônia”

06/10/2022

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                                                                                                               magem: Reprodução da transmissão no YouTube

No primeiro dia da Semana Franciscana, que está sendo promovida pela Editora Vozes, pela Província franciscana da Imaculada Conceição e pela Conferência da Família Franciscana do Brasil, de forma on-line, o encontro foi com o “Cardeal da Amazônia”, Dom Leonardo Ulrich Steiner, nomeado pelo Papa Francisco no último dia 29 de maio. O frade franciscano desta Província é o primeiro cardeal da Amazônia brasileira. Ao falar sobre São Francisco de Assis, lembrou que foi confiado aos franciscanos e franciscanas a tarefa da Paz e do Bem, também na Amazônia. Para ele, hoje se propagandeia a necessidade de armas para a convivência de segurança. ” A nossa sociedade está armada demais. A arma é a mostração do poder que não tem poder. Quem propaga armas, semeia violência, desarmonia. E nós, e com Francisco de Assis, queremos apenas propagar a Paz e o Bem”, propôs.

O Ministro Provincial da Província da Imaculada Conceição, Frei Paulo Roberto, fez a apresentação da Semana Franciscana, na sua terceira edição, e lembrou as festividades franciscanas neste início de outubro. Ele agradeceu aos promotores deste evento e citou que até sexta-feira, alguns temas serão abordados sempre no canal YouTube da Vozes e da Província, como o tema de Dom Leonardo: “As provocações da Amazônia na espiritualidade franciscana”,  o de hoje: “Viver no espírito de Francisco de Assis” e o de sexta: “A verdadeira alegria”. A condução da live ficou a cargo de Natália França e os comentários de Dorismeire Almeida de Vasconcelos, leiga consagrada da Ordem Franciscana Secular.

“Aliás, a verdadeira alegria que não pode faltar. Nós estamos vivendo tempos muito controversos e muito difíceis e o profetismo da alegria, certamente, será exigido de nós, franciscanos e franciscanas. Nós vivemos um período bonito de nossa tradição, de nossa Igreja, desde que o Papa Francisco assumiu, no seu Pontificado, os ideais franciscanos. Nós, então, nos envolvemos com a evangelização de uma maneira muito criativa. E é bom que seja assim. Então, que nós possamos aproveitar este momento da graça que a Igreja está vivendo e que nós, franciscanos e franciscanas, aproveitemos cada vez mais”, convidou Frei Paulo.

rO Ministro Provincial lembrou do documento final do Sínodo, “Querida Amazônia”, onde o Papa sonha com uma Amazônia que lute pelos direitos dos mais pobres, dos povos nativos, dos últimos, “de modo que sua voz seja ouvida e sua dignidade promovida. O Papa diz que sonha com uma Amazônia que preserve a riqueza cultural que a caracteriza, sonha com uma Amazônia que guarda zelosamente a beleza natural como uma comunidade cristã. O sonho pode ser uma experiência onírica, mas é um sonho carregado de utopia. E falar de utopia é falar de Francisco de Assis”, disse o Ministro Provincial.

“São Francisco é sempre nossa inspiração. O Papa Francisco, a partir dessa inspiração, traduz e provoca a toda a Igreja e todos os povos, e sobremaneira a nós, franciscanos e franciscanas. Os escritos, as suas falas, as suas inquietações que partilha conosco, falam disso. A Laudato Si’, a Evangeli Gaudium, a Alegria do Evangelho, a Fratelli tutti e por que não dizer o último documento que fala que a razão da Igreja é evangelizar? São Francisco de Assis diz que evangelizar é a razão de ser do movimento franciscano. O Evangelho é a Regra e a Vida dos Frades Menores. Então, até mesmo esse documento do Papa sobre a organização da Igreja tem essa inspiração franciscana”, acrescentou Frei Paulo, agradecendo os organizadores do evento e a Dom Leonardo.

Dom Leonardo começou sua fala colocando os fundamentos da espiritualidade franciscana e depois abordou alguns pontos, que considera importantes, para “a nossa região da Amazônia e que são conhecidos de todos nós”.

“O AMOR NÃO É AMADO”

Para Dom Leonardo, Francisco de Assis é o cantor do “amor que não é amado”: “Ele, que mudou a sua vida diante do Crucificado, ele que deu outra direção diante do leproso, ele que se encontrou diante do Crucificado e do leproso. A sua vida não foi a mesma depois de ter sido tocado pelo Crucificado e ter sido abraçado pelo leproso, mas não foi o mesmo também depois de ter ouvido a Palavra de Deus. Foi o Crucificado, a Palavra, o leproso, o pobre que fez dele o que ele é hoje. E não deixou de trilhar os caminhos da simplicidade, da pobreza. É que o Crucificado é o pequeno pobre. O Crucificado é o gratuito. É o menor dos menores. O leproso, na época de Francisco, era o menor dos menores. O toque sagrado recebido na igrejinha de São Damião fez de São Francisco um homem menor, mas cheio de gratidão. Viu que o amor era tão extraordinário e admirável que se fez menor, dando vida a todos, a todas as criaturas. O encantamento levou a gemer e a lamentar nos bosques: ‘O amor não é amado. O amor não é amado’. É que o amor não era correspondido”.

Dom Leonardo diz que na pregação de Francisco havia um grande desejo de que as pessoas amassem a Deus assim como Deus nos ama: “O anúncio que despertasse a todos a viverem correspondendo ao amor manifestado, revelado ao Crucificado. Um amor generoso, mas especialmente um amor gratuito. Como todos nós sabemos, esse modo de viver da admiração está indicado na Regra que foi entregue aos irmãos que escolheram com ele esse modo da vida. O modo da vida dos menores. Desejou que os irmãos fossem chamados de menores. A Ordem dos Frades Menores. Menores como menor é o Crucificado. A Regra é recolhimento de um modo de vida. Ela expressa o espírito que conduz e mantêm os que vivem o Evangelho como menores, como pequenos. Nela, encontra-se a vida dos menores, a serviço dos menores. A Regra é inspiração porque é recolhimento do modo de viver de Francisco de Assis. Vida como dinâmica. O sentido de concretizar-se uma existência de uma pessoa e que se deixava impregnar pela força do Evangelho, ao modo de Jesus. Vida é a concreção, a visibilização do Evangelho”.

GRATUIDADE 

“Como lembrava antes Frei Paulo, a Regra e a Vida, acolhimento do viver ao modo do Crucificado, ao modo da gratuidade. Eu sempre fico tão admirado com essa grandeza da espiritualidade franciscana: O modo da gratuidade. Sem cobranças, sem nada esse modo da gratuidade. A gratuidade que quer dizer minoridade, servir. Minoridade que faz e deixa ser irmãos e irmãs, Minoridade que cria e faz a fraternidade”, disse D. Leonardo.

O Cardeal explicou que a palavra fraternidade é composta de frater, irmão, e idade, que vem do sânscrito e significa força e energia. “A força que faz ser irmão e irmã, a força que deixa ser irmão e irmã. A força do irmão e da irmã. A força, o vigor, a energia de irmãos, o que faz sermos irmãos, a minoridade, a gratuidade. O Evangelho, a Regra e a vida possibilitam a fraternidade dos menores, não só dos menores como Ordem, como congregação, mas a possibilidade de uma verdadeira fraternidade universal”, emendou.

“Vamos pensar um pouquinho mais a questão a gratuidade, tão fundamental para aqueles e aquelas que seguem o mesmo modo de viver de Francisco de Assis. O próprio único de Francisco talvez seja a gratuidade. Parece sem sentido essa afirmação quando vivemos no tempo da ambição, da acumulação, das finanças, quando vivemos no tempo da apropriação. Mas gratuidade não indica troca, não indica cálculo, não indica saber, mas indica não saber o que faz a direita e a esquerda, o que faz em segredo.  Recompensa é como sopesar, como acariciar. Fazer feito gratuitamente. Existe uma expressão muito usada por um grande místico medieval, Angelus Silesius, que diz assim:

A rosa é sem porquê.
Floresce por florescer.
Não olha para si mesma.
Nem pergunta se alguém a vê
A primavera é agora.
Agora é a hora.
florescer. Ser.

Estar na graciosidade de viver que se desvia de tudo que é troca, que é compra, que é venda, que é cobrança, tudo que é pago. Veja como nosso estilo de vida, nosso modo de viver hoje tão atual, mas atual ainda para nós que vivemos na Amazônia, onde se deseja comprar, se deseja destruir, se deseja pagar, enriquecer às custas dos povos originários e do meio ambiente. Portanto, pura liberdade de viver e conviver. Os seres não são do uso, mas do convívio. Todos os seres formam a fraternidade universal. Tudo está na força e suavidade de ser irmão e irmã. É que tudo respira na liberdade, na cordialidade, na gratuidade de Jesus Crucificado”, enfatizou.

FRATERNIDADE

Segundo D. Leonardo, da gratuidade passamos para a fraternidade. “A gratuidade nasce da fraternidade. Bondade solta, livre, um modo originário e fontal de se relacionar com tudo e com todos, realizando uma igualdade que não é puro nivelamento, uma uniformização de modo a integrar a dinâmica de liberdade, a verdade, os relacionamentos com todas as diferenças. A fraternidade suporta e dá suporte a todas essas diferenças. Acolhe as diferenças. E vejam que na nossa realidade da Amazônia querem impor igualdade para todos sem respeitar as culturas”, lamentou.

“O sentido fontal com amor matricial deixa brotar o verdadeiro sentido da fraternidade universal. Em grego, irmão significa “adelphós”, que provém do mesmo útero. Jesus Cristo, no seu seguimento, relaciona-se com todas pessoas, com todas as criaturas, com irmãos e irmãs, considerando todos provindo da mesma origem, do mesmo útero, do Pai do céu, as entranhas da misericórdia de Deus. São Boaventura percebeu tão bem isso quando fala no itinerário que se difunde, que vai se difundindo e se manifestando de modos diferentes”, explicou.

“A força histórica do cristianismo não vem do poder, mas vem da autoridade do não poder. Do não poder do amor. Para nós, isso na Amazônia é muito importante para estarmos juntos dos povos originários, juntos dos pobres, das nossas periferias. Francisco é a essa visibilização da autoridade do não poder. A verdade do ser cristão, a cristidade do cristianismo depende sempre do modo, da identidade como se assume a autoridade do não poder. Isto é a cruz, isto é a gratuidade. No entanto, nós cristãos, podemos sempre trair esta nossa origem, elegendo  poder e a força em lugar da autoridade e do serviço de quem cuida. Quem deseja ser missionário na Amazônia precisa ter o espírito do não poder. Do espírito do serviço. Vivemos o tempo da força, violência, da agressão, da morte, também na Amazônia, especialmente na Amazônia. As criaturas deixaram de ser irmãs, tornaram-se exploração, dominação, dinheiro. E por isso as relações se tornaram desfraternas”, constata o arcebispo franciscano.

Hoje se propagandeia a necessidade de armas para a convivência de segurança. A arma arma cada vez mais. Não desarma. Não ama. Li uma vez que Francisco de Assis, diante do desejo dos casais de viverem o seu modo da gratuidade e do Crucificado e da minoridade, ele apenas exigia uma coisa: que não carregassem armas. Andassem desarmados. A fraternidade é a gratuidade da convivência, do equilíbrio nas relações. Francisco, com a gratuidade da fraternidade, transformou, maturou o seu tempo. Nós que seguimos os passos de Jesus ao modo da minoridade e da gratuidade, poderíamos insistir no não porte de armas, mas em desarmar a sociedade. A nossa sociedade está armada demais, também na Amazônia. Desmilitarizar a nossa sociedade. A arma é a mostração do poder que não tem poder. Nos foi confiada a tarefa da Paz e do Bem, também na Amazônia. Quem propaga armas, semeia violência, desarmonia. E nós, e com Francisco de Assis, queremos apenas propagar a Paz e o Bem”, propôs.

LAUDATO SI’

A partir da Encíclica Laudato Si’, Dom Leonardo passou a refletir sobre o significado de cuidar e cultivar, tão “importante para nós na Amazônia”.

“E a Laudato Si’ veio iluminar a questão ecológica, a questão do meio ambiente, a nossa convivência. Veio trazer luz às nossas discussões, veio trazer luz às nossas ações, veio mostrar o que significa a natureza, como conviver na casa comum. A casa comum, ‘Louvado sejas, meu Senhor, por nossa Irmã Mãe Terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com cores, com flores coloridas e verduras’. A casa comum pode se comparar com uma irmã com quem partilhamos a existência, ora como uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços, como nos diz o Papa Francisco logo no início da encíclica”, disse D. Leonardo.

Segundo ele, com o tempo foi se consolidando o planeta como uma casa, o lugar da nossa humanidade, mas o lugar de todas as criaturas, por isso casa comum. “Uma realidade, uma totalidade, um mundo interdependente, laços de irmandade entre todos os seres criados e o homem gerado. Esse modo, esta relação, vem explicitado na casa comum, no acolher e aceitar o mundo inteiro como dom de Deus. Não como destruição, como apropriação. A interdependência, a casa comum, nos obriga a pensar num mundo único, num projeto comum, na globalidade das propostas e não de interesses de grupos e países. É nesse sentido que entra a Amazônia, o lugar da casa comum. Tantos seres, tantas criaturas, tantos povos, tantas culturas. Por que destruir a casa que pertence a todos?”, questionou.

“A casa comum une a família humana e, por isso, todos deveriam buscar o desenvolvimento sustentável integral. Os homens e as mulheres são provocados a colaborar com essa casa comum. Somos todos chamados, nos diz o Papa Francisco, a tornar instrumentos de Deus Pai para que o nosso Planeta seja o que sonhou ao criá-lo e corresponda ao projeto de paz, beleza e plenitude. Isso é tão bonito descrito na ‘Querida Amazônia’. Os rios daqui sempre se movimentam e o povo anda no mesmo ritmo das águas”, celebra o palestrante.

DESASTRE AMBIENTAL

“A ecologia estuda a relação entre os organismos vivos e o meio ambiente, onde se desenvolvem. Cada vez mais, a Igreja da Amazônia chama a atenção para a necessidade de uma harmonia entre o meio ambiente e a nossa sociedade, especialmente nas grandes cidades. A poluição é muito grande, o plástico vai todo para os rios. Existe um saneamento básico precaríssimo. Nós temos na cidade de Manaus uma população de mais de 2 milhões de pessoas e apenas 18% de saneamento básico. Tudo vai para os rios. Nós estamos poluindo os rios com nossos dejetos e eles já estão poluídos pelo mercúrio, um verdadeiro desastre”, critica.

Segundo o franciscano, não existem crises separadas, uma ambiental e outra social: “Mas uma única e complexa socioambiental. E nós estamos cada vez mais percebendo essa crise socioambiental na nossa região. Mas graças a Deus, tantas comunidades estão se despertando, especialmente as comunidades ribeirinhas. Nossos povos indígenas, tão voltados para o meio ambiente, porque eles consideram a casa não o lugar onde se dorme, mas o lugar onde se habita, onde se está. E nesse sentido é importante vermos Francisco como homem das relações novas e livres. O fio condutor dessa encíclica poderia ser expressa assim: novas relações. Francisco construiu novas relações. Nós estamos necessitados de novas relações.  Veja o Brasil, quanta agressão, quanta violência, até mortes por diferenças. Elas estão fragmentando a sociedade, mas também fragmentando a natureza, destruindo a casa comum. Francisco soube cultivar relações preciosas com seus irmãos, com a sociedade, mas com toda a obra criada. A sua relação ultrapassava de longe uma mera variação intelectual, um cálculo econômico, porque qualquer criatura era uma irmã unida a ele por laços de carinho”.

“A percepção está numa antropologia que determina a compreensão do homem com a natureza. E esse modo está crescendo na sociedade brasileira. Quem vem, vem para explorar. Não vem para cuidar”, denuncia.

“Por isso, diz o Papa Francisco, chegou a hora de prestar atenção nos limites que ela impõe. A verdade é que, como o Papa Francisco diz na Encíclica Papal, ‘uma apresentação inadequada da antropologia cristã acabou por promover uma concepção errada da relação do ser humano com o mundo. Muitas vezes foi transmitido um sonho prometeico de domínio sobre o mundo, que provocou a impressão de que o cuidado da natureza fosse atividade de fracos. Mas a interpretação correta do conceito de ser humano como senhor do universo é entendê-lo no sentido de cuidador responsável’”, situou.

Para o Cardeal da Amazônia, o consumo e a exploração conduzem à depredação, ao desarranjo ao desequilíbrio do meio ambiente, mas também o descarte dos povos: “Existe diversos estudos, todos nós que acompanhamos a questão do meio ambiente sabemos, dizendo que se Amazônia continuar a ser destruída como está será um grande lago de água doce. Será um deserto. É terrível pensar isso. A beleza dos nossos rios, as nossas plantas, os nossos animais vão desaparecer, os nossos cantos, os nossos povos, e povos que nem têm contatos conosco. Não porque não querem, mas porque têm medo de serem contaminados com o nosso modo dominador e destruidor”.

“E nós vemos como os desertos estão crescendo com a exploração da madeira, da pesca predatória na nossa região. Nós acompanhamos o assassinato do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips [assassinados numa emboscada na região do Vale do Javari, em Atalaia do Norte, localizado no Estado do Amazonas, no dia 5 de junho. Ambos investigavam atividades ilegais e predatórias na região do Vale do Javari e empenharam suas vidas na defesa dos povos indígenas]. Justamente eles eram verdadeiros guardiães contra a pesca predatória, mas foram mortos. E nem sempre as mortes que acontecem são publicadas. Nós temos muitas mortes na nossa região”, denunciou.

É preciso, lembra Dom Leonardo, uma conversão ecológica, que pede atitudes para um cuidado generoso e cheio de ternura em São Francisco de Assis. “Leonardo Boff, no livro ‘Ternura e Vigor’ indica justamente esse movimento do cuidado generoso e terno, gratuito. Em primeiro lugar, quando queremos uma conversão ecológica, precisamos partir da gratidão e da gratuidade. Ou seja, um reconhecimento do mundo como um dom recebido de Deus, que consequentemente provoca disposições de renúncia, gestos generosos, mesmo que ninguém veja e agradeça. Mas nós, no cuidado, vamos ajudando nossa casa amazônica”, exortou.

VEJA NA ÍNTEGRA A PALESTRA DE DOM LEONARDO


Comunicação da Província da Imaculada