Desafios e caminhos da Ordem dos Frades Menores- Entrevista com Frei César Külkamp
15/07/2024
No final do mês de junho, Frei César Külkamp, Definidor geral para a América Latina, esteve no Brasil com a missão de assessorar o Capítulo Geral da Ordem dos Cônegos Regulares Lateranenses, realizado na cidade de Caxias do Sul (RS), no mês de junho, um dos último compromissos deste ano no país.
Neste ano, o frade está percorrendo sua missão, com marcantes presenças em diferentes países latino-americanos, com o objetivo de acompanhar e auxiliar nas reflexões sobre a vida religiosa da comunidade franciscana. No total são 25 províncias em toda a América Latina, e na área acompanhada por Frei César são 19 Províncias e 15 Vicariatos. Neste cenário amplo e diverso, ele já esteve no México, onde participou da celebração dos 500 anos da presença oficial dos Frades Menores, que resultou na criação da Província do Santo Evangelho, a primeira daquele país.
A celebração dos 500 anos da presença franciscana no México foi no final do mês de maio deste ano. Segundo o Definidor Geral, foram convidados os Ministros Provinciais da América Latina e o Governo geral da OFM para celebrarem juntamente com o povo e os frades mexicanos uma data tão significativa. Na ocasião também foi realizado o encontro da União das Conferências da América Latina, UCLAF, com o objetivo de repensar e relançar a missão franciscana no Continente.
Tecendo um trajeto rumo ao Brasil, Frei César relatou sua passagem pela Venezuela, onde participou das festividades dos 70 anos da refundação da presença franciscana naquele país, após um período marcado pela supressão. Na ocasião, estava presente Frei Ignacio Ceja Jiménez, Vigário geral da Ordem dos Frades Menores.
Na visita à Colômbia, o Definidor geral encontrou-se com o Ministro geral, Frei Massimo Fusarelli, onde participaram do Capítulo da Província de Santa Fé, o que favoreceu mais uma oportunidade para dialogar com os frades que estavam presentes. De lá seguiram para a Província de São Francisco de Quito, no Equador, passando por alguns lugares do país que contam com a presença franciscana. Eles também estiveram junto às Irmãs Clarissas e Concepcionistas.
Segundo Frei César, os franciscanos, no Equador, possuem uma bela história de presença e evangelização, e a sua atuação continua importante sobretudo através de grandes santuários, da educação e da comunicação em rádios.
Em sua breve passagem pela cidade de São Paulo, o frade, além de falar sobre sua peregrinação pela América Latina, refletiu também sobre os desafios da Ordem dos Frades Menores, vocações, o futuro e as próximas etapas do Capítulo Geral das Esteiras. A conversa começou pela diversidade encontrada nas províncias latino-americanas e do continente africano.
Site Franciscanos – Como o senhor acompanha as diferentes realidades da Ordem nesse continente tão vasto?
Frei César – Na América Latina hoje somos 25 províncias e 15 vicariatos. Acompanho um pouco dessas realidades, que são muito distintas em cada país ou região. Nossas presenças nasceram com o espírito missionário dos frades europeus em diferentes períodos da história. Na América do Sul temos duas conferências de frades menores: a Bolivariana (com as províncias na Bolívia, no Peru, na Colômbia, no Equador e uma custódia na Venezuela) e a do Brasil e Cone Sul (com presenças no Brasil, na Argentina, no Chile e no Paraguai). Esta última é uma realidade que eu já tinha mais conhecimento, porque aqui é a minha terra e fui animador de formação, de evangelização, além de presidente dessa Conferência. Por conta disso, convivi com muitas entidades.
Site Franciscanos – Diante de tanta diversidade, onde essas diferenças se encontram?
Frei César –Quando falamos dessa diversidade, das diferenças no continente tão amplo, percebemos que a convergência de vida e de propósitos se unem no carisma, nos valores franciscanos que nós professamos pela Regra. Isso nos aproxima.
Este ano tive a oportunidade de estar na Ásia, na África, na Europa, aqui na América Latina e, em todos os lugares você encontra irmãos muito próximos, isso porque todos nós seguimos a mesma Regra.
Nosso esforço, como Definitório geral, é visitar todas as áreas geográficas onde temos as Conferências, para assim conhecer, escutar e levar uma mensagem, mas, ao mesmo tempo receber. Todos esses encontros estão proporcionando o fortalecimento de nossa resposta vocacional para o nosso tempo.
Além das ações do Definitório geral, há um movimento nas Províncias e Conferências com a celebração do Capítulo das Esteiras e os Encontros de Irmãos Leigos, os dois culminando com encontros gerais em Assis, nos próximos dois anos.
Site Franciscanos – Qual o diferencial deste Capítulo Geral das Esteiras?
Frei César – O grande diferencial é que, na sua preparação, ele vai sendo inspirado no caminho sinodal que a própria Igreja está fazendo, procurando abrir espaços de diálogos e contando com a participação de leigos e religiosas que participam de nossa vida e de nossa missão evangelizadora. Além disso, contará com a inspiração do Grande Jubileu dos últimos anos de vida de nosso pai São Francisco.
Neste ano, o Capítulo das Esteira está sendo celebrado nas províncias e conferências. O resultado destes encontros vai se tornar o material de trabalho do Capítulo Geral das Esteiras, no ano que vem, em junho, em Assis.
Site Franciscanos – Além do Capítulo Geral das Esteiras, quais outras instâncias de reflexões estão sendo preparadas?
Frei César – Teremos ainda o Conselho Plenário da Ordem, que é realizado sempre na metade dos seis anos entre os Capítulos Gerais. É um momento no qual retomamos a caminhada feita como Ordem, sem a pressão da elaboração de normas, de eleições, mas como uma ocasião para revisão das nossas prioridades e de preparação do próximo Capítulo Geral. O último Conselho Plenário da Ordem foi em Nairóbi, na África, em 2018.
Todas essas iniciativas buscam rever os organismos de animação da Ordem e a nossa forma de presença fraterna e evangelizadora.
Nestes dias, aqui em São Paulo, estive na Fraternidade Santo Antônio do Pari com a Comissão para Novas formas de presença, vida e evangelização hoje na América Latina. Com o Secretário geral para a Evangelização e o Animador geral para as Missões. Estavam frades de várias entidades e, de nossa Província, estava Frei Gustavo Wayand Medella. Eles se reuniram para propor formas diferentes de responder ao nosso carisma hoje na América Latina.
Outro aspecto importante que estamos abordando, como Definitório geral, é a revisão da nossa distribuição e organização em conferências e entidades. Assim, procuramos encontrar formas mais adaptadas ao nosso tempo, em vista da animação da vida e da missão dos frades.
Site Franciscanos – Na opinião do senhor, qual a importância desse caminho sinodal que a Ordem dos Frades Menores está percorrendo, quando a presença dos leigos, da Família Franciscana e das religiosas também passa a ser validada de forma mais efetiva na realização das etapas locais do Capítulo Geral das Esteiras?
Frei César – O chamado caminho da sinodalidade é uma tentativa de repensar também a animação de toda a Igreja, para que seja uma resposta do espírito. O Sínodo começou em 2021 e será encerrado em outubro deste ano, com o objetivo de chegar a algumas indicações. Na minha opinião, o mais importante é manter e reforçar em nossa vida de cristãos o jeito de ser de Jesus. Essa é a nossa principal referência. Quando no Evangelho Jesus pergunta aos discípulos “o que dizem ser o Filho do Homem?”, não diz isso por acaso. Ele está mostrando que a opinião é importante e, depois complementada com a resposta de Pedro, na escuta do que revela o Espírito. Esse é o modo de ser que vão assumir os primeiros cristãos.
O livro dos Atos dos Apóstolos, capítulo dois, apresenta a primitiva comunidade de Jerusalém, onde os fiéis viviam unidos em oração e tinham tudo em comum. Foi este espaço de comunhão o lugar da manifestação do Espírito para os divesos discernimentos que precisaram fazer.
A partir dessa ótica, a vida religiosa se organiza desde o início, numa modalidade semelhante, de escuta do espírito, de forma fraterna, justamente porque é na relação que o espírito se manifesta.
O nosso Capítulo das Esteiras está inspirado nesse caminho com toda a Igreja. Um caminho de escutar as pessoas, não apenas os próprios frades, mas também os leigos e religiosas que dividem o carisma e a missão franciscana. Essa presença é enriquecedora. Temos visto em muitas províncias uma alegria muito grande, pois esse ambiente fortalece o sentimento de pertença em todos nós frades e na Família Franciscana, além de ser um elemento fundamental para reanimar nosso carisma e nossa adequação aos novos tempos.
Site Franciscanos – Diante de tantos relatos de frades, leigos, Família Franciscana, quais os maiores desafios para a Ordem dos Frades Menores?
Frei César – Como Definitório, temos insistido em alguns pontos, como o fortalecimento da identidade franciscana, a partir da força do carisma. Como disse inicialmente, aqui na América Latina somos herdeiros de uma tradição missionária na história das entidades com atenção aos sinais dos tempos, às necessidades de cada época. Quando chegaram perceberam a necessidade de formar comunidades cristãs e a falta de educação que havia. Por isso, até hoje o campo das paróquias e o da educação são os mais fortes aqui. O risco hoje é o de apenas continuarmos o que sempre se fez sem uma atenção aos sinais e necessidades do nosso tempo. Isto pode nos levar a certo clericalismo e à perda do sentido missionário.
Além disso, tivemos uma diminuição no número de frades, mas com as mesmas obras e presenças, comprometendo por vezes a qualidade de nossa resposta vocacional como religiosos e do nosso serviço evangelizador.
Nesse sentido, a sinodalidade é uma inspiração para pensarmos à luz do carisma e como Ordem dos Frades Menores. A animação das províncias pede que os frades pensem como Ordem dos Frades Menores na América Latina, de forma que todos se sintam parte de um movimento maior, que vai além da realidade onde cada um vive, capaz de transpor, inclusive, as fronteiras pessoais.
Site Franciscanos – Frente às demandas, cobranças do tempo e do cansaço, como fica a questão das vocações e o perfil dos vocacionados?
Frei César –Na atualidade, um dos desafios é a diminuição numérica de frades em algumas localidades. No entanto, nosso Ministro geral, Frei Massimo Fusarelli, sempre diz que esse não é o nosso maior desafio. Segundo ele, não precisamos de números, mas de Frades Menores. Precisamos de fidelidade, de criatividade e de animação. São Francisco com poucos companheiros provocou uma revolução que atravessou oito séculos e todos os continentes.
Em nossa realidade de Brasil, percebemos grandes mudanças provenientes de um mundo que muda rapidamente e das mudanças que atingem a Igreja e as ordens religiosas. No início da trajetória franciscana, os Frades Menores vinham da Europa, de países como Espanha e Portugal. No período do final do Império, as Ordens foram suprimidas, e chegamos a ter apenas um frade na Província. Depois vieram frades alemães, belgas, japoneses, entre outras nacionalidades. Em outras províncias foram italianos, holandeses, americanos e alemães. Era quase uma igreja estrangeira.
Esses frades assumiram esta cultura, trabalharam nas diversas realidades e buscaram vocações nas famílias das comunidades onde atuavam.
Hoje é diferente. As vocações têm mais o rosto de cada país. As vocações vêm com um pouco mais de idade, com vivências em comunidades e na própria vida.
Podemos dizer que hoje temos menos entradas do que no passado, mas há um pouco mais de perseverança. No passado entravam muitos, tínhamos grandes seminários, com números grandes, embora o resultado não era só o daqueles que sobravam, mas em todos aqueles que faziam o seu discernimento e se formavam para a vida.
Na atualidade, vivemos um outro processo. Por conta disso, as vocações apresentam outros rostos, das várias culturas de cada país, das realidades indígenas, afro-brasileira, nordestina, amazônica, e assim por diante.
Um desafio é o de cada frade promover vocações, fazer o convite pessoal aos jovens que já estão em nossas comunidades e atividades. Depois pensar um processo formativo para o nosso tempo e para estas vocações. Nossa Província há dado bons passos neste sentido.
Site Franciscanos– Podemos dizer, para encerrar, que a Ordem dos Frades Menores, quando busca reavivar sua essência, seu carisma, sua espiritualidade, é pela real busca por uma Igreja em saída?
Frei César – Eu acredito que esse mote usado pelo Papa Francisco, fala de Igreja que não é só do sacramentalismo ou do clericalismo. Como algumas vezes se diz: “Lugar de padre é na sacristia e de religioso é no coro, rezando”. Isto é um reducionismo!
Papa Francisco fala que prefere uma Igreja ferida, enlameada, mas que está pelas ruas no encontro com as pessoas. Isso exige uma postura mais ativa de nós Frades Menores, pois assim nasceu o nosso carisma. Esse era o jeito de ser de São Francisco Assis. Ele nunca ficou instalado num lugar. Era um andarilho por tantos lugares na Itália e fora dela, indo aos lugares onde buscava integrar a contemplação e a missão. Esta é a nossa tradição franciscana, com seus 800 anos de história.
E assim os frades se espalharam pelo mundo inteiro levando na vida e nas palavras o Evangelho do Senhor. Por isso este anúncio chegou até onde estamos. Daí o compromisso de levá-lo adiante, para além de nós mesmos. Sejamos um espaço de acolhida, de encontro, de promoção das relações, para que assim possamos descobrir a ação do Espírito, que é maior do que a nossa ação pessoal. Somos uma fraternidade.
Adriana Rabelo