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Cortella: “Passei a ter amor pela filosofia”

12/03/2019

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Moacir Beggo

São Paulo (SP) – No lançamento do livro “Filosofia: e nós com isso?”, o 13º pela Editora Vozes e o 40º de sua carreira, o escritor e filósofo Mario Sergio Cortella disse que a filosofia não é a paixão de sua vida. Diante de um público que lotou o Teatro FAAP na noite desta segunda-feira (11/3), ele explicou melhor: “Pouco a pouco fui serenando a paixão pela filosofia e passei a ter amor por ela. E o amor leva ao cuidado. A paixão leva ao descuidado. Se tivesse paixão pela filosofia eu iria dela me descuidar. Então, nesse sentido, o amor cuida. E sempre lembro: quem ama não desiste. E eu amo a filosofia”.

O novo livro de Cortella foi apresentado pelo diretor presidente da Editora Vozes, Frei Gilberto Garcia, que manifestou a sua alegria por este momento. “Nós temos a felicidade, com o selo Nobilis da Vozes, de ter um autor que pode trazer ao mundo a filosofia de uma forma bastante simplificada, o que não significa dizer banalizada. A base desta obra está em dizer que a filosofia está presente em todo ordenamento da sociedade. Essa obra é acessível a todos os públicos, de todas as idades, de uma forma prazerosa e muito útil”, comemorou Frei Gilberto.

O evento, em forma de talk show, foi transmitido pela Rádio CBN e teve como mediadora a jornalista Fabíola Cidral, que durante uma hora conversou com Cortella sobre os principais temas do seu novo livro. No final, o autor garantiu autógrafos para todos os participantes.

ACOMPANHE A SEGUIR OS PRINCIPAIS TEMAS ABORDADOS NESTA CONVERSA COM CORTELLA!

A FILOSOFIA EXPLICA OU CONFUNDE?

Cortela: Ambas as coisas. No entanto, trata-se de uma confusão que é boa, que impede que a gente tome decisões precipitadas, imediatistas. É aquela que faz com que você reflita um pouco e impede você de ter aquela reação intempestiva. Ela pode ser boa como resultado. A filosofia deve funcionar como um alerta. Nessa hora, a filosofia não é aquela que indica todos os caminhos. Há uma frase antiga na nossa área que diz que a filosofia é como o farol no mar. Ele não diz para onde você vai, mas indica que há perigos. Não dá a rota. Ele diz apenas que você precisa se acautelar. E, neste sentido, a filosofia precisa, sim, criar obstáculos e vez ou outra confundir. Ou seja, não deixar que tudo pareça tão fácil. Ou de outro modo, que tudo pareça tão óbvio.

Nem tudo pode ser olhado de modo tão óbvio. Por exemplo, quem criou a palavra filosofia foi um matemático. Ele é o primeiro a usá-la para impedir que pessoas que se dedicavam ao pensamento como filósofos fossem chamados de sábios. Porque Pitágoras era um sábio. Ele queria dizer que não era um sábio, mas um amigo da sabedoria. Eu sou alguém que tem afeto pelo conhecimento. Eu sou alguém que tem uma ligação amorosa com aquilo que é um pensamento.

A ideia de filosofia vem nesta perspectiva de dizer eu sou um sábio. Ou seja, não sou alguém que já sabe todas as coisas. Eu sou alguém que tenho um afeto pelo conhecimento. Eu cuido e quero cuidar. Portanto, a expressão na sua origem nasce apoiada na noção de humildade intelectual. Não é casual que – e eu trato disso no livro – o grande Sócrates, que vem após Pitágoras, ficou conhecido como alguém que anunciou uma frase que não era dele e que repetia sempre: “Só sei que nada sei”. É estranho que Sócrates, um ateniense considerado o mais sábio dos atenienses no século 5 a.C, dissesse isso. Parece modéstia fingida, mas não era. A frase enunciada por ele significa que “só sei que nada sei por inteiro”, “só sei que nada sei por completo”, “só sei que nada sei que só eu saiba”, “só sei que nada sei que um dia possa vir a saber”.

Mas filósofos arrogantes, petulantes, nós os temos em larga escala. Quase sempre são pessoas que têm uma limitação mental muito grande. Porque arrogância e filosofia não têm uma proximidade muito forte. Claro que eu posso ser arrogante. Posso usar a filosofia para humilhar as pessoas. Posso usar a filosofia para fazer com que você se entenda, por exemplo, como alguém que nada sabe e que eu é que sei. Mas isso é pouco afeito à tarefa filosófica socrática. Nesse sentido, nasce a pergunta: “Filosofia, e nós com isso?” No plural. E não “filosofia, e eu com isso”. No primeiro capítulo do livro, “Filosofia, e eu com isso”, explico como a filosofia chegou até mim e como eu fui por ela possuído. Nessa hora é “eu com isso”, mas no geral é “nós com isso”.

POSSO FILOSOFAR?

Cortella: A atitude filosófica não é um privilégio, uma exclusividade daquele que é formado na área da filosofia. Há muita gente que atua como pensador no campo da filosofia e não fez graduação na área. Às vezes, você discute: “Poxa, mas esse aí é chamado de filósofo e não fez curso!”. Não é essa a questão. Do ponto de vista profissional, se você quiser olhar uma Carteira Profissional, é claro que não tenho lá registrado filósofo como DRT ou registro de trabalho, aliás porque, quando tive a minha formação, ser entendido como filósofo, era quase uma candidatura ao exílio. Nesse sentido, essa expressão não tinha todo esse peso.

O pensador ou a pensadora é alguém que se dedica a meditar sobre a vida. Até há alguns anos, a gente recusava o termo e muitos colegas, homens e mulheres, recusam o termo por considerar muito pedante. Não porque são pessoas que querem fingir modéstia, mas porque acham que o termo mais correto seria falar professor de filosofia. Filósofo seria um termo muito elevado. No entanto, em função do mundo digital, do mundo da mídia, nos últimos 20 anos, parte de nós que se dedica às atividades no campo da filosofia, da pesquisa, da escrita, da reflexão, da história, passou a se chamar de filósofo. Perdeu o pudor. Aceita-se como se chama alguém de sociólogo, de antropólogo etc.

Fui estudar filosofia no início dos anos 70. Dos muitos conselhos que meu pai deu, eu segui vários, mas um, não: “Não faça filosofia”! Ele perguntava: “Você vai viver de quê?” Eu disse: “De filosofia”! Claro, ele era diretor de banco, minha mãe era professora e eu um garoto de 17 anos de idade. E depois não só queria fazer filosofia mas também uma experiência religiosa. Acabei entrando no Convento dos Carmelitas Descalços, onde fiz uma experiência monástica de três anos.

RELIGIÃO X FILOSOFIA

Cortella: Sou de uma família religiosa católica e queria fazer uma experiência intensa. Eu não queria olhar a religião com superficialidade. Eu falei: o melhor modo de olhar é estando dentro da vida religiosa monacal. Fazer filosofia foi algo decisivo na minha formação. No clero católico é necessário fazer filosofia e depois teologia como graduação. Um tempo longo de estudos. Muita gente questiona se a filosofia não vai tirar a fé. A mim não tirou. O estudo da filosofia me marcou mais pela necessidade de ter um pensamento mais meditado, mais estruturado, mais sistemático. E a religião tem essa possibilidade também. Não podemos esquecer que uma boa parte dos pensadores, na área de filosofia, não tinham a marca do ateísmo, nem tinham a ausência de uma prática de religiosidade. O ateísmo metodológico – um termo técnico que a gente usa – será mais característico do século 18 ou 19. Se você olhar quando Sócrates faz o enunciado em relação ao que é a base da filosofia socrática – “conhece-te a ti mesmo” – verá que é algo tomado do templo de Apolo. Ele anuncia como uma orientação de Apolo. Portanto, filosofia e religião andaram de braços dados por muito tempo. Elas ainda o fazem. Não é que muita filosofia o afasta e pouca o deixa dentro. É que uma pessoa que tem uma religião que não é meditada, que não é consciente, não é autônoma, ela se enfraquecerá. E isso vale para qualquer coisa. Não precisa ser filosofia, pode ser psicologia, física, cosmologia. Tem gente que é tonta, tem gente que não é (risos). Tem gente que é tonta na filosofia, na política, na imprensa, em qualquer lugar. E tem gente tonta na religião. Portanto, não é a filosofia que o tira ou o coloca no campo religioso. Ela poderá dar mais fundamento para que você permaneça. Eu, por exemplo, não saí do convento porque estava estudando filosofia; eu saí porque achei que a minha experiência estava completa no que desejava. Eu queria ir para a docência.

RELIGIÃO X RELIGIOSIDADE

Cortella: Religiosidade é a sua percepção finda de que a vida não é finda e que você o é. Mas que a vida não é inútil, não é descartável. Ela não pode ser banal. A religiosidade dá uma sensação de reverência à vida. A vida é um mistério da qual a gente faz parte: não sabe por que veio, não sabe por que vai, não quer ir, mas também não quer ficar. Nós fazemos parte desse mistério que liga você a mim e a tudo aquilo que povoa nossa existência. Nós temos uma reverência. A vida não pode ser só materialidade. Ela não pode ser apenas a pura teologia, a pura física, a pura química. Isso tudo compõe, mas não pode ser só isso. A esse sentimento de reverência chamamos de religiosidade.  Isto é, a percepção de que a vida não é descartável nem banal. Ora, há pessoas que organizam a sua religiosidade com outras pessoas e formalizam os ritos, os cultos, os textos. A isso a gente chama de religião. O que é a religião? É a religiosidade formalizada.  Por exemplo, muitos dos que aqui estão, dos que nos ouvem, têm religiosidade mas não têm religião. Mas ninguém que tenha religião deixa de ter religiosidade. É impossível religião sem religiosidade. Mas é possível religiosidade sem religião.

ESPIRITUALIDADE

Cortella: A espiritualidade e a religiosidade podem ser colocadas como sinônimos dos tempos de hoje. Aí eu volto à questão: Por que a gente coloca isso no livro? Por que hoje no mundo, a tecnologia da comunicação global, da velocidade da informação, acabou gerando algumas angústias: por que é que estou fazendo isso? Qual o sentido da existência? Por que estou dando esses passos e não outros? Será que a minha vida é apenas uma sucessão de likes até um dia em que o criador deslaika (risos). Será que a existência é para isso? Essa superficialidade, em várias situações, essa exposição que confunde abundância com desperdício, essa vida que é sempre uma consumolatria desesperada, em que eu não consigo ter um pouco de paz e serenidade, isso conduziu algumas pessoas a pensarem o próprio sentido da existência. E a filosofia, não por acaso, é uma procura sobre o sentido da existência na dupla acepção da palavra sentido. Sentido como significado e sentido como direção. Hoje a espiritualidade, em função até desse tsumani informacional que temos no cotidiano e esse modo de abafamento que a tecnologia – que é exuberante e que nos encanta, que nos favorece mas também nos domina, nos possui em várias situações – vem com uma grande indagação. É a filosofia como obstáculo. Epa, por que assim? Por que nessa direção? Nesse sentido, o pensamento clássico da filosofia nos ajuda a pensar o agora e uma das coisas do tempo clássico é exatamente a percepção sobre o sentido: por que sim, por que não?

Para algumas pessoas, a espiritualidade deságua na religião; para outras, o percurso não é necessariamente esse. É possível ter uma dimensão espiritual sem uma prática religiosa exclusiva.

A FILOSOFIA NÃO ENSINA A PENSAR

Cortella: Sim, porque você nasce – quase todos nascem – com a capacidade de pensar (risos). Uma das coisas boas é exatamente que você não aprende a pensar com a filosofia. Alguns dizem assim: mas a filosofia ensina a pensar de forma crítica. Nem sempre. O nazismo tinha e tem os seus filósofos; o fascismo tem e tinha seus filósofos. A filosofia ajuda a pensar de modo crítico quando ela não quer gerar em você uma situação de aprisionamento da sua mente. Eu sempre digo que a regra básica da filosofia é: pense nisso, em vez de pense isso. Pense isso é sair daquilo que é a rota de uma filosofia autêntica. Pense nisso, isto é, reflita. Gosto de lembrar um fato que aconteceu durante um evento em que fui palestrante a mais ou menos duas mil enfermeiras. Quando se abriu a conversa, uma enfermeira levantou a mão e disse assim: “Professor, posso fazer uma pergunta?” Disse: “claro!” “Professor, o que o sr. quer que fale no seu velório?”. Eu dei uma volta, falei, fui até Aristóteles, Platão, Heráclito, puxei para o teatro, voltei, fui até Kant. Fiquei uns seis minutos falando, porque se tratava de uma pergunta difícil. Eu pensei: “vou dar o troco”: “E você, o que quer que se fale no seu velório?” Ela disse: “Quero que se fale assim: nossa, ela tá se mexendo!” (risos). Por que eu conto essa história? Porque a simplicidade, muitas vezes, carrega respostas mais intensas do que aquilo que se imaginava. Nesse sentido, a filosofia não pode ser simplória. A filosofia não pode ser banalizada, não pode ser rasteira. Mas ela não pode ser, de modo algum, sofisticada a ponto de não ser compreensível. Uma das tarefas que coloquei a mim, como professor de filosofia, foi de fazer com que o pensamento filosófico mantivesse o seu encanto. Os grandes filósofos, nas origens do Ocidente, falavam nas praças. A grande praça hoje é o mundo digital, o mundo da TV, o mundo do rádio, o mundo da internet. Eu me coloquei, eu e outras pessoas, propositadamente nesse mundo. Às vezes, dizem: “Ah, mas isso banaliza a filosofia”. Só banaliza se a gente fizer de modo banal. Mas se você traz as pessoas para aquele território da meditação, da reflexão, em que você diz: pense nisso em vez de ser doutrinário, isso não acontece.

A FILOSOFIA FAZ QUESTIONAR?

Cortella: Bastante. Eu lembro sempre que eu tenho para a filosofia um amor. Um amor pelo conhecimento. Mas já tive paixão pela filosofia. E é muito perigoso isso, porque a paixão é a suspensão temporária do juízo. Quando você está apaixonado (a) por algo ou por alguém, você perde o juízo. Quando você está apaixonado por uma ideia, por um projeto, por um objeto, por uma pessoa – claro que a paixão é deliciosa -, essa paixão tem que ser transformada em amor. A paixão transforma. A paixão faz com que você perca a sua referência. A paixão suspende o tempo, ela suspende a sua noção de localização. Eu, às vezes, estou na Universidade e passo pelos corredores e vejo um casal se beijando de um modo tão intenso, tão profundo, que não tenho inveja naquele momento. Eu tenho admiração. Por uma razão simples. Tanto faz onde eles estão; parece que não existe nem o corredor, nem o lugar, nem o tempo, nem a hora. Eles estão sozinhos no universo. E olhando aquilo fico imaginando o quanto a paixão, se ela continuar, vai liquidá-los. Por que eles não vão conseguir fazer mais nada (risos). A paixão consome. Por isso, quando uma pessoa diz: eu sou apaixonado por futebol, digo: “Tome cuidado!” Ou diz: Sou apaixonado por essa ideia. Digo: “Cautela!”

PAIXÃO X AMOR

Cortella: Você tem que amansar a paixão e fazê-la se transformar em amor. Por exemplo, a paixão é um fogo que dá energia, mas se ele persiste, ele o consome. É gostoso, porque é o ponto de partida, mas ele não pode ser o ponto de chegada. Eu já fui apaixonado pela filosofia e aí não conseguia pensar fora de alguns elementos que a filosofia carrega. Pouco a pouco fui serenando a paixão pela filosofia e passei a ter amor pela filosofia. E o amor te leva ao cuidado. A paixão é o descuidado. A paixão faz com que você esqueça até que precisa preservar aquilo que está contigo. Se eu tivesse paixão pela filosofia, ia dela se descuidar. Então, nesse sentido, o amor cuida. E eu sempre lembro: quem ama não desiste. E eu amo a filosofia. Se eu fosse apaixonado até agora, talvez tivesse me consumido e consumido a ela. Por mais que seja aprazível dizer que a paixão é boa, ela continua me capturando às vezes para me dar energia, dar uma sacudida.

Os árabes têm um ditado interessante. Eles dizem: “Homens são como tapetes. Às vezes precisam ser sacudidos”. Às vezes, você precisa sacudir um tapete para tirar toda a poeira que tem nele. A filosofia, às vezes, nos sacode. E, claro, até hoje  fico inquieto com algumas coisas do nosso cotidiano. Por exemplo, o mundo da tecnologia, ele me encanta, mas ele me deixa também desconfiado. Vivemos uma realidade em que estamos todos juntos, mas ninguém está perto. Vivemos em um território que a gente não tem tanta proximidade. A gente consegue uma forma de conexão mas não necessariamente de afeto coletivo, de cuidado. Nessa hora  vem à tona aquilo que dizia o meu filósofo predileto, Descartes, sobre o filósofo: alguém que tem pés de chumbo e asas. Isto é, pés de chumbo para não tirá-los do chão, da realidade, e asas para voar um pouco e ver acima.

NÃO CAIR NO FRACASSO

Cortella: Eu menciono sempre um grande pensador britânico do século 8º, o Venerável Beda, um monge católico. Ele dizia que há três caminhos para o fracasso: 1. Não ensinar o que se sabe; 2. Não praticar o que se ensina; 3. Não perguntar o que se ignora. Dizendo de um modo positivo, há três caminhos para o sucesso, isto é: 1.Ensinar o que  se sabe, isto é, generosidade mental; 2. Praticar o que se ensina, isto é, coerência ética; e 3. perguntar o que se ignora, isto é, humildade intelectual. São três trilhas para que a vida não seja banal, descartável, para que a filosofia seja contributiva. E funciona. Embora eu goste mais de um guia que serve muito para o Brasil, não só para nós que aqui estamos. Trata-se da síntese do pensamento de Emanuel Kant, um filósofo do século 18, sobre reflexões éticas, que poderiam ser sintetizadas em uma frase: “Tudo que não puder contar como fez, não faça”. Ele  não está falando contra o sigilo, contra o segredo, contra a privacidade; ele está falando contra a vergonha. Tudo  que não puder contar como fez, não faça.

QUE ENSINAMENTOS TIRAR DESTE TEMPO POLARIZADO?

Cortella: Há vários ensinamentos. O primeiro é que você não precisa gritar. Todas as vezes que você precisa gritar é porque não tem argumento. Nós temos hoje um modo muito ruim de fazer a política que é a retórica furiosa. É aquela que você, em vez de argumentar, em vez de raciocinar, de levar em conta o que aquela pessoa está dizendo, você grita, começa a xingar, diz que “é isso”, “que fez isso”, “que pensa assim” e não sustenta a reflexão. Isso não é filosofia. A filosofia é um pensamento argumentável, racional, sistemático. Ela não é uma retórica furiosa. Como, por exemplo, quando diz: “Você fala isso porque está possuído pelo demônio” (risos). A filosofia serve para alertar que a ausência de argumentos e ausência da capacidade de ouvir argumentos que eu não tinha, leva ao grito. Como não tenho a racionalidade ao meu lado, eu berro, para ver se assusto o outro. Qualquer um que é pai ou mãe – eu sou pai e sou avô – sabe que quando não se tem argumento, grita-se. E ainda diz uma coisa que é absolutamente ameaçadora: “Cê vai ver!” (risos).

São pensamentos circulares que não saem do lugar. Hegel, do século 19, diz que quando você exagera no argumento prejudica a causa. Se eu sou alguém que milito no campo da política, uma pessoa conservadora, em que sou avesso a alguns modos da vida moral, eu preciso ter argumentos para sustentar e convencer as pessoas. Em vez de vencê-las, tenho que convencê-las. Não adianta chamá-las de idiotas.

Outro dia, chegando a Porto Alegre, três jornalistas vieram falar comigo: “Olha, um outro pensador disse que o sr. é um analfabeto funcional”. Eu disse: “Isso é uma pesquisa científica ou uma opinião?” Opinião. Então, tudo bem. Se fosse uma pesquisa científica, teria que tomar uma atitude. Não basta dizer que eu sou um analfabeto funcional. Tem que me provar. E tem que provar mostrando que escrevo mal, que falo mal, por isso, por aquilo, etc.

Hoje temos essa histeria que é a recusa ao mundo intelectual,  desprezo à cultura letrada. É um perigo e estamos vivendo um pouco isso. A filosofia ajuda a pensar naquilo que a política como argumentação procura o consenso. O consenso não é a derrota de quem não teve a sua ideia vitoriosa. O consenso é a possibilidade de quem não teve a sua ideia vitoriosa imaginar que isso não é definitivo e poderá ser em outro momento.

Por isso, essa irracionalidade do nosso cotidiano não leva ninguém ao sucesso, porque ela é apenas algo que serve para que, nas redes sociais, se grite. Às vezes, me perguntam: “Você não responde nada nas redes sociais? As pessoas te atacam”. Há uma diferença entre opinião e acusação. Numa rede social, a pessoa pode dar sua opinião à vontade. ‘O Cortella é idiota, escreve mal, não sabe falar” é uma coisa. Se disser que eu sou “pedófilo, que sou corrupto, que sou ladrão”, aí não é opinião, mas acusação. Acusação tem que provar. A ideia de um território livre em que você pode dar a sua opinião à vontade é verdadeiro. O mundo digital permite isso. Mas é preciso cautela ao fazer acusações sem que haja argumentos! A filosofia nos lembra uma mensagem magnífica que foi trazida pelo grande poeta português, Fernando Pessoa, quando ele nos alertava que “na véspera de não partir nunca, ao menos não há que arrumar malas”. E há pessoas que, para não arrumar as malas mentais, preferem não partir nunca. E ficam na beira do cais xingando quem parte.