As sabedorias de Mario Sergio Cortella
28/11/2020
Moacir Beggo
O último convidado da Semana de Filosofia Vozes, na sexta-feira à noite (28/11) foi ninguém menos do que um dos principais autores da Editora Vozes e um dos maiores escritores do Brasil, tanto que neste encontro ele lançou, virtualmente, o seu 46º livro: “Sabedorias para partilhar”.
Neste encontro, fechado com chave de ouro, como disse Natália França, o professor Cortella foi didático, como sempre, cativante, claro, objetivo e sábio. Como fez o supertime da Vozes – Luís Mauro Sá Martino e Ângela Salgueiro Marques, Lucas Machado, Viviane Mosé, Clóvis de Barros Filho -, promovendo grandes reflexões sobre a arte de viver a vida e seus desafios.
Segundo Cortella, o novo livro, que cabe na palma da mão, ganhou o apelido de “superpoket” de sua mulher Cláudia. “Fiz uma seleção de 70 trechos, com dois ou três parágrafos de alguns dos livros que tenho na Editora Vozes. Esses 70 trechos foram agora agregados nesse livro”, explicou o filósofo, educador, escritor e palestrante, com mestrado e doutorado em educação. Cortella é professor titular da PUC-SP e comentarista em rádio e TV. Foi secretário municipal de Educação de São Paulo (1991-1992).
“O livro cabe na mão e eu gosto dessa ideia. Gostei do colorido. Normalmente, os livros são ‘mais sérios’ na apresentação, mas esse ele ganhou um colorido. Como diz o poeta Thiago de Melo, ‘Vívíssimo'”, disse, elogiando o poeta, alguém que contribui imensamente para a nossa literatura. Ele recordou que Thiago de Melo tem um livro chamado “faz escuro, mas eu canto”, bem próprio para esse momento que vivemos.
Para Cortella, depois de 32 anos de seu primeiro livro, lançar uma obra agora não é a mesma coisa de lançar o primeiro livro. “O primeiro livro saiu em 1988, chamado “Descartes, a paixão pela razão”, que escrevi utilizando a máquina de datilografia. E esse livro, agora, 32 anos depois, só tem em ebook, e é um livro que me deu um gosto imenso”, explicou. Segundo ele, a emoção no primeiro lançamento não é mesma deste lançamento. “O lançamento desse primeiro livro, nunca me esqueço. Ele aconteceu com a presença de várias pessoas que admiro, que admirava e continuo admirando. Uma pessoa que compareceu ao lançamento foi o professor Paulo Freire, ele que foi meu orientador no doutorado”, recordou.
Referindo-se ao título, Cortella disse que só a “partilha” é dele. “Sabedorias são reflexões que vêm de pessoas que menciono, que cito; em boa parte, é claro, algumas das minhas. Eu não seria falsamente modesto. É uma forma de tolice. Uma das coisas que aprendi com Paulo Freire é não fingir modéstia. Fingir modéstia é uma forma hipócrita de relação. Quando alguém elogiava Paulo Freire, ele dizia: ‘Muito obrigado’, em vez de dizer assim: ‘Bondade sua, que é isso!’. Eu aprendi com ele. Claro que tem algumas coisas que posso até hoje chamar de sabedoria. Do meu primeiro livro até agora, fui construindo algumas sabedorias. Pouco a pouco, fui refinando, aprendendo a prestar atenção. E posso, sim, dizer, sem ser arrogante, sem ter soberba, que algumas sabedorias eu tenho. Não tenho todas”, reconheceu, indicando que uma sabedoria sua é: ‘só é um bom ensinante quem for um bom aprendente‘. “Então, eu continuo querendo aprender”, enfatiza.
Segundo Cortella, é a primeira vez que não estará com o público para lançamento do seu livro, mas espera ainda fazer o lançamento presencial. Na Vozes, o livro “Qual é a tua obra” bateu um milhão de exemplares e tem trechos selecionados no livro novo. O primeiro livro, contudo, lançado na Vozes se chama “Não espere pelo epitáfio”. Depois saíram mais dois que começam pela palavra ‘não’. “E eu sempre lembro: não é ‘não’ de negação. É não de advertência, que são: ‘Não espere pelo epitáfio’, ‘Não nascemos prontos’ e ‘Não se desespere'”, explicou.
Cortella contou que tem uma relação muito especial com a Vozes, uma editora do início do século 20, que começou a funcionar num dia que aprecia muito, que é o dia 5 de março. “Nesse dia nasceu Emília, minha mãe, que é a minha primeira leitura. Toda vez que eu lanço um livro, eu vou lá e passo para ela, que está com 91 anos. Mas a boa coincidência é que, no dia 5 de março, é o aniversário dela, mas é também o meu aniversário”, contou.
DUAS HISTÓRIAS DO CARINHO DOS FÃS
“Eu vou contar duas coisas. Nunca esqueço que, há uns quatro anos, estava numa cidade do Oeste Catarinense terminando uma palestra – há várias pessoas da Editora Vozes que são do Estado de Santa Catarina, eu nasci no Paraná mas moro na capital paulista há 53 anos – e, nesta cidade catarinense, tinha duas mil pessoas nessa palestra e, ao final, na sessão de autógrafos e fotos, vi na fila uma senhora mais simples, que notei pelo modo da vestimenta e pelo modo de aproximação – não é simplória, mas simples. Quando ela apertou minha mão, senti muitos calos na mão dela. Dava para perceber que era um calo do trabalho. Eu disse: ‘Que bom que a senhora veio! Como a senhora se chama?’ Ela disse o nome dela, eu perguntei: ‘o que a sra. faz?’ Ela disse: ‘eu sou agricultora’. E ela estava com um livro meu da Vozes, exatamente “Não se desespere”. Eu falei assim: ‘A sra. é agricultora, que bom que veio à palestra’. Ela falou: ‘Eu passo o dia inteiro trabalhando, levanto às 4 horas da manhã, vou cuidar do gado, alimentar a criação, como se diz, e quando eu chego em casa, ali pelas quatro horas, depois que eu janto, eu sento e fico lendo livros de filosofia. E eu tenho alguns livros do sr. e eu queria ler esse também. Natália, a minha emoção naquele momento foi imensa porque é a única maneira de eu chegar às pessoas desse modo”.
“Hoje, faz 257 dias de quase isolamento completo, mas eu saio protegido de máscara. Nesta semana, eu fui ao dentista e ao voltar, como o dentista fica a dois quarteirões de onde eu moro, estava com dois exemplares no bolso, porque tinha levado um exemplar para o dentista e outro para eventualmente outra pessoa que estivesse ali com ele. Estava voltando e uma senhora, que varria a calçada defronte ao prédio da esquina da rua onde eu moro, falou assim: ‘Professor Cortella, que bom ver o sr! Como eu não o vejo faz tempo, fiquei preocupada!’ Eu disse: ‘que bom!’. ‘Eu gosto muito dos seus livros. Eu li que o sr. vai lançar um livro numa live e quando tiver à disposição eu vou buscá-lo’. Eu falei: ‘Não seja por isso’. Tirei o livro do bolso e entreguei para ela. Ela ficou numa alegria e minha alegria foi bem maior que ela teve”.
EU SOU INSUBSTITUÍVEL
“Eu até escrevi na pensata, no trecho de sabedoria de nº 14, chamado “ninguém é insubstituível?”. É uma pergunta. Eu vou ler: “Tem uma frase que circula por aí que diz que ninguém é insubstituível. Isso é bobagem. Ninguém é substituível. O que pode ser substituído é o que eu faço. Eu, Cortella, antes de existir, o universo não era assim. E quando eu deixar de ser, ele não será mais assim. Eu sou, você é, ele é, ela é parte essencial desse mistério. Ninguém é substituível. O que é substituível é aquilo que faço aqui, o que alguém faz numa usina, numa universidade, no hospital, em casa. Outro aprende e faz. Agora, eu sou insubstituível e eu não queria deixar de ser, mas só tem uma maneira de continuar. Continuar nos outros, com fraternidade. A única maneira de continuar na vida é repartir vidas. Se você guarda vida consigo, ela consigo vai”.
“E eu lembro sempre isso. Ninguém é insubstituível de maneira alguma. O que pode ser substituído é o que eu faço, o que você faz. O que uma pessoa faz, outra pessoa pode aprender a fazer, ou pode buscar fazer. Talvez eu não consigo fazer como outra pessoa faz, mas eu posso procurar fazer. Nesse sentido, funções são substituíveis, pessoas não. Antes de eu existir, o universo não era como ele é: com a minha presença. Quando eu deixar de ser, ele não será mais com a minha ausência. Isso vale para qualquer pessoa. Não só para mim. Afinal, eu sou um dos arranjos da vida. E antes de eu ser, o universo não era como é comigo nele. Quando deixar de sê-lo, ele não será mais. Vou usar uma frase caipira. Eu sou caipira de Londrina e vou fazê-la assim: “Qui nem eu, só eu”. Mas agora vem uma coisa que trato numa outra das reflexões. “Qui nem que eu, só eu”, mas cuidado, eu sou único, mas não sou o único. Olha só! Eu sou único no universo, mas eu não sou o único. Isto é, não só há outras pessoas como há outras formas de vida. Aquilo que se abriga no nosso planeta, que Leonardo Boff, com muita clareza chama de “a nossa casa comum”, que Frei Beto fala da ecologia interior e não só da ecologia exterior, funciona imensamente para eu saber disso: não há ninguém como eu, mas eu não sou a única pessoa que tem direito à dignidade, à vida, e por isso eu sou insubstituível. O que pode substituir é o que eu faço. Mas o fato de eu ser único e você ser única, não significa que você é a única e eu sou o único. Vida é vida.”
SER HUMANO É SER JUNTO
“Ser humano é ser junto”. Só é possível ultrapassar a tempestade, o horror, se nós tivermos solidariedade e eu tenho dito e continuarei a dizer. A palavra solidariedade não vem de solidão, mas vem de sólido. E, por isso, solidariedade é quando você e eu procuramos dar solidez à vida de todas as pessoas e de cada pessoa.
A Editora Vozes publicou recentemente o livro ‘O Pequeno Princípe’, uma das versões de Saint Exupery, o francês que morreu em 1944, dez anos antes de eu nascer. Eu nasci em 1954. Saint Exupery morreu dentro de um avião. Ele era piloto, além de escritor. Estava no Canal da Mancha vigiando as tropas nazistas. Estava numa missão contra os homicidas. O avião dele foi abatido e ele faleceu. Mas ele, além de escrever ‘O Pequeno Princípe’, que é uma obra inacreditável de beleza, de importância, ele tem uma expressão que serve para essa ideia ‘do ser humano ser junto’. Ainda antes que a pandemia chegasse no Brasil, porque o primeiro caso se manifesta no dia 11 de fevereiro, eu e minha equipe colocamos do lado de fora, na porta de entrada, um recipiente com álcool em gel e um aviso para qualquer pessoa que ali chegasse, usasse e se protegesse. Ainda não havia casos aqui mas havia possibilidade como, infelizmente, aconteceu. E para motivar internamente e externamente a pessoa a fazer o uso do álcool em gel e tomar cautela, nós colocamos junto uma frase que tem a ver com essa questão e que é do Saint Exupery, que diz: ‘Cada pessoa é responsável por todas as pessoas’. Ser humano é ser junto. Nós só conseguimos resistir àquilo que nos ameaça, àquilo que nos atropela, juntas e juntos, colaborando, cooperando. Só a ciência colaborativa poderá encontrar, com mais velocidade, uma vacina. Uma ciência absolutamente exclusivista, isolada, não teria como acelerar um processo que normalmente demora uma década. Só a colaboração em relação ao que sofre e sofre mais do que eu, mais do que você. Eu tenho desconforto nesses 257 dias, tenho dificuldade para sair, mas não tenho dificuldade para prover as minhas coisas, para fazer com que, embora eu não possa ir, por exemplo, até o mercado, o mercado pode vir até mim, seja porque eu tenho tecnologia, seja porque eu tenho crédito. Portanto, eu não posso olhar isso e dizer: ‘ah, tudo bem, eu me virando, o resto o que posso fazer? Não, não é porque estou com a vida menos ‘agoniada’ que eu vou deixar também as outras pessoas. Há um grande pensador latino, chamado Terêncio e ele dizia: ‘Tudo o que é humano não me é estranho’. E eu não poderia deixar de colocar nesse “superpocket” uma ideia como essa, que é a possibilidade de nos juntarmos. Aliás, em julho de 2019, foi a última possibilidade de atividade fora do Brasil que pude ter. Eu estava com Cláudia na Itália. E aí pude voltar à Capela Sistina, na Cidade do Vaticano, e contemplar talvez a expressão mais nítida do que estamos falando. Na arte que fez Michelangelo Buonarotti, que é a imagem da criação, o dedo divino quase encosta no dedo adâmico. E essa é a ideia da vida. A ideia de que você não está isolado, sozinho e perdido. Há outras forças que podem nos auxiliar. Retirando essa imagem que é uma força divina, no plano humano, a outra pessoa é o dedinho que tem que vir para se encostar em nós. Quem trabalhou isso de modo maravilhoso e eu lembro isso no livro é Steven Spielberg no filme “ET”, que estreou em 1982. Atenção, na cidade de São Paulo, estreou no dia de Natal, e eu pedi licença para a mãe de meus dois filhos para que ela me deixasse assistir a estreia e aí ela ficou no cuidado. Eu estava no cinema da avenida São João, em São Paulo, vendo a cena mais expressiva que Spielberg, que é judeu, e que, portanto, tem um vínculo lateral em relação ao cristianismo romano. O que é o de fora de mim? É a outra pessoa, seja ela daqui, seja ela de outro lugar, inclusive de outro planeta”.
QUAL O SENTIDO DA VIDA?
“Eu não trato do sentido da vida como uma explicação, mas como a minha reflexão. De maneira geral, o sentido da vida é não desperdiça-la, não jogá-la fora, não descartá-la. A vida é um mistério. Eu não sei por que estou aqui. Cá estou, não gostaria de partir de modo precoce, mas eu faço parte desse mistério. Alessandra faz parte desse mistério. É uma dádiva a vida. É um dom para nós. Ela nos foi entregue por isso tem que se cuidar direitinho dela.
O dia 27 de novembro, no ano oitavo antes de Cristo, morreu um dos grandes escritores e poeta do passado: Horácio. Ele tem um livro clássico do mundo da literatura latina, “Odes”, onde Horácio escreve algo que as pessoas repetem até hoje. Ele escreve em latim: “Carpe Diem”. As pessoas viram isso em vários lugares, viram isso no maravilhoso filme “Sociedade dos Poetas Mortos”, viram isso em inscrições e muita gente usa “Carpe Diem” no sentido equivocado, traduzindo como “aproveite o dia”. Algumas pessoas acham que a melhor maneira de viver é esgotar-se no dia, isto é aproveitar a vida agora, nem pensar no que foi, nem no que virá. Eu tenho que pensar que a minha vida é um processo no qual eu vou construindo sentidos, vou construindo razões. Mas a tradução mais correta não é aproveite o dia ou como se escreve em inglês, “seize the day”, mas “acolha o dia”. Isto é, não deixe passar o momento da colheita, não deixe esterilizar, dessertificar o seu dia. Cada dia tem que ser colhido. E o que é a minha vida? É a junção de todos os meus dias. E todos os dias da minha vida, portando, aquilo que é o meu tempo de vida, eu preciso colher a vida e não deixar que ela se torne estéril. Nesta hora, “Carpe Diem” tem mais da minha percepção, não desperdice a vida, não deixe passá-la com tolices, coisas pequenas, com miudezas que são estranhas a alguém que, sabendo-se mortal, não pode desperdiçar a vida. Eu não tenho preocupação com a minha partida. Eu tenho preocupação com o meu caminho até a partida, para esse caminho não ser torto, pequenino, inútil. Tem uma frase que circula na internet como se fosse de minha autoria. Quem dera fosse eu o autor dessa frase. E essa frase foi publicada no livro ‘Qual é a tua obra’. A frase que lá está é do Benjamin Disraeli, quando ele dizia: ‘A vida é muito curta para ser pequena’. Por isso, qual é o sentido da Vida? Não apequená-la, não torná-la banal, fútil, inútil, descartável. Eu não posso esquecer que o sentido da vida é cuidar da própria vida e das outras vidas que precisam ser cuidadas e a ideia de sentido é fazer que a vida tenha validade. No dia que eu me for, eu quero que as pessoas pensem, não precisa me dizer: ‘Valeu, Cortella!’ E esse ‘Valeu, Cortella’, como sendo Cortella teve validade enquanto existiu. Que bom que você existiu! Você partiu, mas que bom que existiu. Assim é a construção do sentido da vida.
SOLITUDE
“A ideia de solitude está na percepção de ficar só. E ficar só não é estar sozinho ou sozinha. Por exemplo, em vários momentos eu estou só, mas não estou solitário. Eu estou sozinho, para lembrar melhor, mas não estou solitário. Uma pessoa solitária é aquela que não conta com outras pessoas. Uma pessoa sozinha é aquela que não está junto a outras pessoas. Há vários momentos na vida que eu quero ficar sozinho. Há momentos em que precisa ficar sozinho, mas não solitário. E nesse sentido eu aprecio a noção de solitude, entendido aí como a capacidade de recolhimento, para que eu possa abstrair um pouco o ruído que está à minha volta e mergulhar dentro. Eu, quando tinha 18 anos de idade, decidi fazer filosofia e decidi entrar numa ordem religiosa, chamada Ordem Carmelitana Descalça. Durante 3 anos, fiquei na clausura. Saía só para ir à universidade e voltava. Ao final do terceiro ano, percebi que não queria seguir a vida religiosa, queria ir para a área de docência e comunicação e foi o que fiz. Mas esses três anos que eu vivi num Convento várias coisas aprendi. Uma delas foi exatamente essa, que estar sozinho não é ficar solitário. E que faz bem. Num convento, numa clausura, você tem tempos grandes de silêncio programados, de silêncio estruturado para poder pensar-se e para poder pensar naquilo que está em volta. Sabe, uma das coisas que sinto falta nesse tempo pandêmico? É uma coisa banal, mas ela serve: das viagens de avião. Não pelas viagens em si, pelos deslocamentos. Isso também sinto. Mas um dos poucos momentos em que eu conseguia ficar mais quieto era numa viagem. Eu sou uma pessoa mais conhecida por conta das atividades no rádio e na TV. Sou uma pessoa pública e, se eu estou num espaço mais público, muitas pessoas – para minha alegria – me abordam, tiram uma foto. Claro que nem todo mundo, mas algumas pessoas fazem. Mas dentro do avião, no meu canto, com um fone de ouvido, consigo ver naquele tempo de viagem uma quietude que ajuda bastante”.
SENTIDO DA VIDA DURANTE E PÓS-PANDEMIA
“Eu gosto de citar pessoas. Quem já viu o meu Instagram – tem cinco milhões de seguidores -, a cada dois ou três dias coloco sempre uma selfie com um cartazinho. Chama cartazinho eventual com um pensamento para a vida e uma dúvida metódica. Eu faço normalmente em relação a alguém que nasceu ou faleceu naquele dia. Eu escrevo a mão “será?” para a pessoa pensar. Tem gente que diz assim: ‘Por que não diz o que pensa em vez de escrever será?’ Eu digo o que penso nos programas de rádio, nas entrevistas e nos meus livros. Ali é para refletir. Eu estou dizendo isso porque gosto de citar pessoas porque isso dá densidade a umas situações. Claro, evitando o excesso. Mas algumas coisas foram benditas que não quero que fiquem malditas. E uma coisa bendita sobre isso é a frase de um filósofo americano chamado Ralph Waldo Emerson, que nasceu em 1803, portanto no início do século 19. Émerson diz, nítido e reto, e que vale na pandemia e após ela: “Torna-te necessário a alguém”. Se você e eu estamos ‘agoniados’ porque não queremos que nossa vida seja descartável, é preciso que a gente se torne necessário e necessária para outra pessoa.
Vida é partilha. Por exemplo, o Natal. Agora neste Natal ele será feito de outro modo. Não será o último e mesmo que, para algumas pessoas e para um de nós, seja, mas ele não desaparecerá. O espírito de junção, de fraternidade e a inspiração trazida por Jesus de Nazaré. É uma festa muito bonita. Tanto faz se a pessoa tem religião ou não. E se tendo é a religião cristã. Porque lembra o nascimento de uma pessoa que veio falar sobre igualdade, fraternidade, caridade, amor ao próximo e aí tanto faz se você tem religião. A mensagem é de uma humanidade brutal. Tem gente que tem uma ceia tão pobre e a única coisa que ela tem são muitos frascos de bebida, a pessoa não tem com quem partilhar; há pessoas tão pobres que a única coisa que ela tinha era muito dinheiro. Olha só, eu não sou tonto de dizer que ter bens materiais é uma coisa que não tenha importância. Ela ajuda a garantir a existência. Mas fartura e abundância não é desperdício e nem inutilidade de bens. Nesse sentido, volto ao ponto como dar sentido quando há tanta dificuldade nesse momento pandêmico: ‘Torna-te necessário a alguém’. Quando a gente se torna necessário a alguém, aquela agonia da inutilidade sai.
CAMINHO A SEGUIR
“Olha o pensamento 37 das sabedorias, chama ‘sinal de inteligência’ e marca um pouco a nossa possibilidade de fazer um planejamento das nossas coisas que permitam alterar. “Essa é uma regra básica da vida. Quando você está no fundo do poço, a primeira coisa que precisa fazer para sair de lá é parar de cavar. Isso significa que a pá que continua cavando é o não ao saber. Fingir que sei. Fingir pra quem? Não existe o autoengano”.
Se eu me defronto e se eu colido com situações que levam à alteração da rota, eu preciso mudar essa rota. Públio Siro, que é um grande pensador latino, dizia: um plano que não pode ser mudado não presta. Nesse sentido, o sentido e a vida vão sendo construídos e, é claro, que vez ou outra a gente muda de rumo. É claro que as colisões, as alterações, as experiências, como a gente diz no interior, o tranco que você toma – 2020 foi um ano de tranco -, aliás, de umas semanas para cá, eu venho usando uma outra expressão, acabei tendo essa percepção quando fazia uma palestra virtual para pessoas que estavam na Paraíba. Para a maioria do povo do Nordeste e Norte, a rede não é sinônimo só de descanso, mas de sossego, sentar numa rede, ficar balançando. Mas para muitas pessoas, ele é o leito, o local do descanso. Sabe o que aconteceu com a gente em 2020? A gente tomou um tombo de rede. Quem já tomou um tombo de rede sabe o que estou dizendo. Você está ali repousando, distraído, no ar suspenso, e de repente, a queda. O susto do tombo de rede é tamanho porque você não imaginava, não estava aguardando que aquilo acontecesse, além do risco do tombo de rede que é o de você bater o final da coluna vertebral, o cóccix, que demora para cicatrizar depois. Mas ainda assim, esse tombo de rede, sem dúvida, para quem tem sinal de inteligência não será capaz de esquecer as lições que a gente vai ter: solidariedade, capacidade de inventividade, recreação, não fingir que as coisas não estão acontecendo, não descuidar, ser capaz de ir atrás, buscar, fazer isso de modo que demonstre a nossa força e a nossa capacidade, também de sabedoria. Nessa hora, os trancos e barrancos nos oferecem, para quem é capaz de pensar e meditar, algumas dessas coisas que nos fazem caminhar, mesmo que seja outra rota, mas de modo mais seguro”.
FELICIDADE
“Ao escrever sobre felicidade, no livro com Leonardo Boff e Frei Beto, nós colocamos um ponto de interrogação, porque a frase “Felicidade foi se embora”, do Lupicínio Rodrigues, é uma afirmação. Uma das coisas que escrevi e depois desenvolvi é que a felicidade não é forma contínua de vida. Ela é uma circunstância, uma ocasião, ela tem um nível de volubilidade, isto é, ela muda o seu tempo e sua presença.
Eu não sou feliz o tempo todo, mas também não sou infeliz o tempo todo. Isso significa que a felicidade, que é uma percepção de vibração da vida, ela é ocasional, ela é circunstancial, ela não vem necessariamente de modo contínuo, mas ela não se ausenta de modo contínuo. Será que é possível ser feliz em meio à pandemia? E uma das coisas boas é lembrar que a felicidade não é um estado contínuo, mas não se ausenta de modo contínuo. É possível ser feliz durante uma pandemia? Claro. O tempo todo, não! Uma pessoa que diz que é feliz o tempo todo, ela não é feliz, mas é tonta. Afinal de contas, tem tanta coisa difícil, encrencada a nossa volta, que ser feliz de modo contínuo, é não estar entendendo o que está acontecendo. Mas não dá para ser infeliz o tempo todo. Porque há coisas que fazem a vida vibrar. Nesta hora, quando sou feliz, preciso lembrar que aquilo é passageiro mas enquanto está comigo, tenho que cuidar, abraçar e afagar. Não deixar de aproveitar. Colher a vida. As pessoas mais idosas têm uma sabedoria antiga, como diz D. Emilia, minha mãe, de 91 anos de idade. ‘Não há bem que sempre dure nem mal que nunca se acabe’. Podemos inverter. Tanto faz. O que vale é a gente perceber que na nossa existência, as circunstâncias que são horrorosas, elas não são continuamente horrorosas e exclusivamente horrorosas. E as situações que são maravilhosas, não são continuamente maravilhosas e exclusivamente maravilhosas. É nesses entremeios, para usar uma linguagem dos mineiros, é nesses entremeios, é nesses entretantos que a vida vai se tecendo e a felicidade, embora não esteja presente a todo momento, há momentos que uma hora ela pode vir e nessa hora a gente gruda e aproveita. Quando a Vozes lançou “Sabedorias para partilhar”, eu fiquei feliz e estou feliz até agora. Tô feliz o tempo todo? Claro que não. Tem dificuldades, eu tenho que ter noção do que acontece, mas não é algo que eu queira: nem fingir que nada de ruim é possível e nem imaginar que nada de bom seja impossível. Aí, sim, nesses entremeios a gente segue”.
A LEMBRANÇA
“Eu fui alfabetizado aos 13 anos na cidade de Londrina, em 1960, onde eu nasci, pela professora D. Mercedes. E eu conto isso que não tem nada de sobrenaturalidade, esoterismo. Cada vez que vou autografar um livro, cada vez que eu escrevo ‘MS Cortella 2020’, eu sinto na minha mão a mão de D. Mercedes, aquela mulher que, como tantas outras pessoas, me ajudou a ler e a escrever, alfabetizar e ensinar. E ela, quando ensinava, colava a sua mão sobre a minha e ajudava a escrever. A mão de D. Mercedes está comigo em todos os livros que lanço, em todos os livros que escrevo. E todas as outras mãos que permitam, e que permitem, que a gente seja capaz de não se sentir largado, abandonado. E quando eu digo que esse livro cabe na palma da mão, eu lembro não só da minha mão, mas da mão de D. Mercedes”.
CURSO ON-LINE
Quem tiver interessado, Mario Sergio tem um curso on-line a partir de um livro publicado na Vozes, cujo título é “Filosofia, e nós com isso?”. E o curso, em dez lições virtuais – pode ser encontrado no site https://cursodocortella.com.br.