Carta do Ministro Geral para festa de Santa Clara
02/08/2013
«Considero-a auxiliar do próprio Deus, sustentáculo dos membros vacilantes de seu corpo inefável» (3 LAg 8)
Caríssimas Irmãs, desejo começar esta minha primeira carta, por ocasião da festa da Madre Santa Clara, expressando minha sincera e profunda gratidão pela vossa vida doada ao Senhor e a alegria de partilhar convosco a vocação evangélica que Francisco e Clara acolheram de Deus. Portanto, faço minhas, com humildade e confiança, as palavras que Francisco escreveu a Clara e suas Irmãs, em S. Damião: «Visto que por divina inspiração vos fizestes filhas e servas do altíssimo e sumo Rei, o Pai celeste, e vos desposastes o Espírito Santo, escolhendo viver segundo a perfeição do santo Evangelho, quero e prometo, por mim e por meus irmãos, ter sempre por vós diligente cuidado e especial solicitude, assim como tenho por eles.» (FV)
Neste Ano da Fé, Irmãs caríssimas, desejo partilhar convosco algumas reflexões que, a partir da experiência cristã de Clara, podem ajudar a viver nossa vida de fé no contexto atual, marcado por grandes mudanças, conflitos, pobreza. Escutar, compreender e abraçar o peso dessa sociedade e dessa história, que se muda de maneira tão rápida – e discernir, com inteligência espiritual, aquilo que é irrenunciável e que, precisamente por fidelidade ao Espírito, é preciso repensar – constitui para nós um desafio que não podemos deixar de lado. Isso pertence à nossa existência de Frades Menores e Irmãs Pobres.
Como permanecer indiferentes diante da violência e do ódio, que alimentam as guerras, diante de tanta pobreza e exploração da natureza, da crise econômica que ameaça perder de vista que a pessoa humana é mais importante que o dinheiro e os negócios, de tantos jovens sem futuro e, muitas vezes, também sem esperança, de tantas pessoas reduzidas à escravidão, das quais foi roubada a dignidade? Nossa vida de pessoas de fé é questionada por tudo isso. Que resposta a vida contemplativa pode dar a tudo isso? Há uma palavra existencial que vossa vida, evangélica e clariana, pode dizer aos varões e às mulheres de hoje? Só um retorno a Deus poderá ajudar o homem a romper as correntes da morte que o prendem. Só um permanecer dentro da história, em profundidade, colocando-se em escuta do grito das pessoas, para responder-lhes com a Palavra do Evangelho, evitará que nossa vida se afaste da companhia das pessoas, renegando assim a Encarnação do Filho de Deus, que se fez carne, a fim de que o homem retornasse a Deus, retomando, como sua, a imagem e semelhança de Deus, que traz em si.
Creio que Clara e Francisco, portanto, nos ensinam a prospetiva da qual devemos partir; o princípio ao qual dirigir nosso olhar: Deus, o «altíssimo, onipotente, bom Senhor» (Cnt 1), o «alto e glorioso Deus» (OC 1), o «onipotente, santíssimo, altíssimo e sumo Deus» (LH 11), que «é nosso criador, redentor, consolador e salvador » (PN 1), o «Doador, o Pai das misericórdias» (TestC 2), o «altíssimo Pai celestial» (TestC 24), do qual «emana todo sumo bem e todo dom perfeito» (2In 3). Devemos tornar a partir com o olhar e a vida voltados ao Senhor!
Jesus, no Evangelho que proclamaremos na Eucaristia da festa de Santa Clara, nos convoca precisamente a essa prioridade fundamental, a de permanecer, a morar n’Ele: «Permanecei em mim, como eu em vós. Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira, assim também vós, se não permanecerdes em mim. Eu sou a videira e vós os ramos. Aquele que permanece em mim e eu nele produz muito fruto; porque, sem mim, nada podeis fazer» (Jo 15,4-5).
Morar, permanecer e estar são verbos que devem sintonizar-se com a fé vivida, e não apenas pensada, uma fé viva que pode ser resposta profunda e fortemente evangélica, diante da violência e do sofrimento: na verdade, não se trata de passividade, mas de clara e firme decisão de mergulhar as raízes em profundidade, a fim de que sejam unidas firmemente à «nossa irmã, a mãe terra» (Cnt 9) e «ao onipotente, eterno, justo e misericordioso Deus» (Ord 50), e nos possibilite atravessar a experiência humana com mansidão, paciência e esperança.
Hoje, mais do que nunca, temos necessidade de atitudes que sejam fruto de raízes sólidas, como as de Jesus: enraizadas no Pai, sempre voltadas a Ele, jamais separadas d’Ele. Isso nos ensina Clara com a exortação escrita a Inês de Boêmia: «Ponha a mente no espelho da eternidade, coloque a alma no esplendor da glória. Ponha o coração na figura da substância divina e transforme-se inteira, pela contemplação, na imagem da divindade» (3In 12-13). Esse morar da mente, da alma e do coração, exige uma atitude prolongada e contínua, uma atitude vital não fragmentada, pois a experiência de fé de Clara é feita de contemplação transformadora, de um discipulado que transforma a vida, de um Evangelho que liberta e salva.
Creio que com essa atitude de fé se possa achar um modo de ser que vá contra qualquer tipo de violência; que se possa individuar um estilo de vida que nos leve a buscar aquilo para o qual fomos criados, esperando que nos coloquemos diante da missão de ser custódios da
vida, de respeitá-la em todas as suas formas, de zelar pelos irmãos e irmãs, acompanhando seus passos nas sendas da verdadeira vida. Ocupar-se, acompanhar, cuidar, com profundo senso de confiança e segurança n’Aquele ao qual tudo pertence e do qual somos, de algum modo, colaboradores: «eu a considero, num bom uso das palavras do Apóstolo, auxiliar do próprio Deus, sustentáculo dos membros vacilantes de seu corpo inefável» (3In8). Nesse caminho de fé e de colaboração com Deus, Clara exorta-nos a fixar, continuamente, nossos olhos em Cristo, o “espelho” no qual perscrutamos e encontramos a nós mesmos «no meio do espelho, considere a humildade, ou pelo menos a bem-aventurada pobreza, as fadigas sem conta e as penas que suportou pela redenção do gênero humano. E, no fim desse mesmo espelho, contemple a caridade inefável com que quis padecer no lenho da cruz e nela morrer a morte mais vergonhosa» (4In22-23). Por aquele Homem, descrito no
“espelho”, humilde, pobre e amoroso a ponto de dar a própria vida por nós na cruz, o mal foi derrotado. Com sua vida doada por amor, Jesus fintou e confundiu o mal, abrindo para todos a porta da salvação por meio da fé n’Ele. Pelo olhar prolongado sobre o Homem do
“espelho”, aprendemos uma nova resposta: a paciência, a mansidão, a humildade, que nega todas as formas de violência. Esta divide a consciência do homem e sua relação com o próximo e com Deus. No entanto, vossa vida unificada, caríssimas Irmãs, feita de silêncio e de Palavra, pode ser sinal de harmonia recuperada, que reconduz o caos da violência ao cosmos divino.
O Senhor, o altíssimo e onipotente, deixa-se encontrar por quem o busca, põe-se em nosso nível, humilha-se ao tornar-se pessoa humana. Ou melhor, Deus desce ainda mais, porque deseja nosso amor, quer nossa resposta. É Ele que nos procura e nos ama, por primeiro
(cf. 1Jo 4,19). Esse é nosso Deus, o Deus de Jesus Cristo. Deus fez-se um de nós, abaixou-se, a ponto de lavar nossos pés. Deus, o Pai, habita conosco através de seu Filho Jesus, que quis assumir a forma de servo (cf. Fl2,7). Jesus na cruz toma sobre si o mal dos homens e, em troca, dá sua Mãe à humanidade (cf. Jo 19,27), restitui ao seu traidor o nome de amigo (cf. Jo 21,15-17), torna justo os culpados (cf. Lc 23,34), promete o Reino ao malfeitor (cf. Lc 23,43), dá-nos o sentido último da vida, na relação com o Pai, que permanece para além da morte e conduz à ressurreição (cf. Lc 23,43).
Dessa salvação que o Senhor nos doou gratuitamente, devemos fazer experiência concreta: não podemos considerar questão resolvida a procura de Deus, o desejo d’Ele e a acolhida de seu amor salvífico! O primeiro dom da ressurreição de Cristo é a paz, que Ele mesmo dá a seus discípulos (cf. Lc 24,36; Jo 20,19). O mundo de hoje precisa dessa paz. Somos chamados a vivê-la e a guardá-la, antes de tudo, em nós mesmos e, depois, em nossas Fraternidades, implorando-a do Senhor, a fim de que possamos dá-la a quantos chegam
a nós, pedindo-nos o dom da escuta, da oração e da ajuda também material. Como podemos ser colaboradores de Deus no sustento dos membros vacilantes de seu corpo (cf. 3In 8), se nós, primeiramente, não tivermos feito a experiência da ressurreição e da paz de Cristo em nossa vida pessoal e comunitária?
A vós, Irmãs caríssimas, no contexto histórico em que vivemos, é pedido de viver uma maternidade totalmente especial: acolher em vosso seio «as alegrias e esperanças, as tristezas e angústias dos homens de hoje, dos pobres sobretudo, e de todos os que sofrem»; essas, na realidade, «são as puras alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo, e nada há de mais genuinamente humano, que não encontre eco em nosso coração» (GS 1). Acolher e gerar vida nova através da amizade sincera, da acolhida generosa, de uma palavra sólida, uma oração verdadeira, um silêncio que custodia. E isso vos será possível na medida em que dais espaço ao Senhor em vossa vida, entregando a Ele vossa alma, para que possa habitar nela. Escutemos as profundas palavras de Clara: «pois é claro que, pela graça de Deus, a mais digna das criaturas, a alma do homem fiel, é maior do que o céu. Pois os céus, com as outras criaturas, não podem conter o Criador: só a alma fiel é Sua mansão e sede. E isso só pela caridade que os ímpios não tem, pois, como diz a Verdade: Quem me ama será amado por meu Pai, e eu o amarei, e nós viremos a ele e nele faremos nossa morada. Assim como a gloriosa Virgem das virgens o trouxe materialmente, assim também você, seguindo seus passos, especialmente os da humildade e pobreza, sem dúvida alguma, poderá trazê-lo espiritualmente em um corpo casto e virginal. Você vai conter quem pode conter você e todas as coisas, vai possuir algo que, mesmo comparado com as outras posses passageiras deste mundo, será mais fortemente seu» (3In 21-26). Agrada a Deus tornar infinitamente grande aquilo que não é nem mesmo visível aos olhos do corpo e assim faz da alma fiel o lugar de sua presença, uma ponte, um espaço de comunhão, de revivificação, de reconciliação. E faz de vós, pela força do Espírito, ainda hoje, o seio em que se encontram e estão juntas a humanidade e a divindade (como em Maria, na qual Deus se fez carne), onde Deus e o homem moram e vivem reconciliados. Vossa tarefa é aquela de estar entre o Um e o outro, de pertencer a Um e ao outro, de manter juntos, como simples e transparentes mediadoras, Deus e a humanidade amada, conduzindo os homens a Ele, e Ele aos homens.
Quão grande é o amor de Deus por vós, Irmãs caríssimas, de ser a tal ponto envolvidas em seu existir e capazes de carregar em vós sua vida! Isso certamente abre vosso coração à alegria e esperança! Clara viveu, por toda sua vida, com essa consciência e certeza, e, próxima da morte, nos deixou sua bela e intensa profissão de fé em Deus Pai: «a virgem muito santa, voltando-se para si mesma, diz baixinho à sua alma: “Vá segura, que você tem uma boa escolta para o caminho. Vá, diz, porque Aquele que a criou também a santificou;
e, guardando-a sempre como uma mãe guarda o filho, amou-a com terno amor. E bendito sejais Vós, Senhor, que me criastes!”» (LSC 46). O dom, que podemos pedir ao Senhor, neste Ano da Fé, é o de reconhecermos, como Clara, no grande abraço da Trindade (cf. PC 3,75;
14,32), o grande seio que protege cada vida, e que a enche de si, e assim chegar à conclusão de nossos dias terrenos, reconhecendo que nossa vida foi santificada, protegida e amada pelo Senhor.
Ao final desta minha carta, caríssimas Irmãs, desejo voltar ao ponto do qual partimos: nossa fé no Deus de Jesus Cristo, vivida num contexto marcado pela pobreza e violência. Reconheçamos e proclamemos a todos que Deus é inocente, que Ele é o Deus da vida, do amor e da esperança. Recordemos ao homem suas responsabilidades e façamos nossa parte a fim de construir um mundo melhor: com vida centrada na Ressurreição do Senhor, caraterizada pela sobriedade e essencialidade, pelo uso simples e moderado das coisas, pelas relações verdadeiras, fundadas sobre uma caridade sem fingimento (cf. Rm 12,9), por gestos concretos de solidariedade, de partilha e de serviço, por alguma palavra a menos e de mais silêncio. Uma vida humilde que prefere o ser em vez do fazer, o verdadeiro em lugar do aparente, o esperado em vez do imediato, a contemplação em lugar da eficiência, o silêncio e o recolhimento em vez da dispersão, a misericórdia em lugar de apontar o dedo. Vivamos «como peregrinos e forasteiros neste mundo» (RB 6,2; RSC 8,2), sem apropriar-se e sem conservar algo para nós (cf. Ord 29). Seja nossa vida a dizer: não somos melhores que os outros, mas o Senhor nos chamou para segui-lo e sermos como Ele. O Senhor colocou-vos como «espelho e exemplo a todos os que vivem no mundo» (TestC 20): não ofusqueis o caminho deles, mas iluminai-os e sustentai-os com o exemplo de uma vida totalmente abandonada n’Ele, confiada à Sua graça e misericórdia. Sede irmãs-mães, guardas e amantes da vida, procurando sem descanso, atentas, delicadas, perspicazes e respeitosas quanto aos sinais de vida presentes em tudo. A fé no Senhor abre à novidade da vida e dos eventos: muda o modo de acolher a existência, as relações com as irmãs e os irmãos, as situações da história, com seus desafios e seus dramas. Quando colocamos Deus no centro, percebemos que ninguém pode roubar-nos a esperança, e nos esperam dias luminosos, na medida em que também nós, hoje, façamos nossa parte para gerá-los. Dias de vida para nós e para a humanidade.
Irmãs caríssimas, confio-vos à madre Santa Clara, «imagem da Mãe de Deus» (LSC prólogo), a fim de que possais viver, com a mesma paixão e radicalidade dela, a «perfeição do santo Evangelho» (FV 1) e ser, continuamente, gratas ao Pai das misericórdias pelo dom de vossa vocação (cf. TestC 2). Como sinal e empenho do recíproco zelo e solicitude (cf. FV 2), confio à vossa oração meu serviço de «ministro geral e servo de toda a Fraternidade» (RB 8,1), assim como confio também a vós todos os Frades Menores, com os quais comungais o mesmo “sonho” de Clara e Francisco, certos de que nossa comum vocação evangélica é dom de um só e mesmo Espírito (cf. 2Cel 204), dom do Senhor Ressuscitado. Felicidades!
Roma, 15 de julho de 2013
Festa de São Boaventura
Fr. Michael Anthony Perry, ofm
Ministro Geral, OFM