Frei Alvaci faz “tributo e reparação” à memória da Irmandade de São Benedito
01/04/2023
São Paulo (SP) – “Recordar, rezar e celebrar com as irmandades católicas ‘de pretos’ de São Paulo em um dos espaços mais antigos ainda de pé, onde um destes grupos se organizou por muito tempo, é sem dúvida um tributo e uma reparação à memória e à história de tantos irmãos e irmãs que aqui derramaram seu suor, suas lágrimas, que aqui entoaram seus louvores e tocaram seus tambores”. Foi com esta emocionante confissão que Frei Alvaci Mendes da Luz, historiador e frade da Província Franciscana da Imaculada Conceição, falou da Irmandade de São Benedito, que foi tema de seu estudo durante dez anos e se transformou no livro “Um Preto no Altar”, que lançou neste sábado, 1º de abril, no Convento São Francisco.
Antes da Missa em louvor a São Benedito, às 14 horas, Frei Alvaci deu autógrafos e falou sobre o livro para um público que lotou o Salão São Dâmaso. Segundo ele, o livro analisa o período de maior autonomia administrativo-financeira da Irmandade de São Benedito da cidade de São Paulo, quando a igreja do Convento São Francisco ficou sob seus cuidados por mais de 80 anos.
A Missa, às 15 horas, foi presidida pelo capelão Padre Luiz Fernando de Oliveira, da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, no Largo do Paissandu; pelo Pe. José Enes de Jesus, da Pastoral Afro da Arquidiocese de São Paulo, e por Frei Alvaci.
Na homilia, Frei Alvaci disse que a celebração já nos coloca dentro da dinâmica do domingo de Ramos, do servo sofredor e daquele que por amor se fez doação à toda a humanidade. “Somos convidados a fazer deste encontro celebrativo a nossa entrada particular na ‘Semana das semanas’, a ‘Grande Semana'”, disse o frade que mora em Itatiba e está a serviço da Educação na Universidade São Francisco.
“Mas também nesta celebração e neste lugar sagrado, chamado de igreja de São Francisco, estamos fazendo memória de todas as confrarias católicas de modo particular as Irmandades de ‘homens pretos’, de mulheres pretas, de pardos, disse, rememorando algumas destas irmandades que foram e ainda são importantes aqui na cidade de São Paulo: a de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos do Paissandu, de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Penha de França, de São Benedito da Casa Verde e as extintas de Santa Efigênia e Santo Elesbão, Nossa Senhora da Boa Morte, São Gonçalo Garcia, entre outras. “E de modo ainda mais particular gostaria de trazer a memória a Irmandade de São Benedito dos Homens Pretos do Largo São Francisco”, frisou.
“Sim, irmãos e irmãs, por quase três séculos aqui nesta igreja se reuniram muitos homens e mulheres negras para rezar, tocar tambor, dançar, enterrar seus mortos, para pedir ajuda e intercessão de São Benedito na hora de lutar por direitos, de juntar um dinheirinho para comprar carta de alforria com o auxílio dos irmãos confrades de irmandade, de pedir apoio na hora de construir uma casa entre tantos outros modos de interajuda que o espaço da irmandade São Benedito foi para os irmãos e irmãs pretos e pretas que aqui viveram, rezaram, morreram e foram sepultados”, explicou Frei Alvaci.
Segundo ele, reunir homens e mulheres escravizados ou libertos, nascidos na África ou no Brasil, sob a invocação do santo preto Benedito, não foi uma particularidade das Irmandades católicas em São Paulo. “No Brasil inteiro há sempre uma devoção popular, uma celebração cultural ou uma irmandade dedicada ao santo preto franciscano. Nestes lugares e sob a invocação deste santo se reuniam, e ainda se reúnem, inúmeros homens e mulheres devotos e devotas”, enfatizou.
Segundo ele, Benedito Manasseri (este sobrenome italiano vem da família que escravizou seus pais) ou São Benedito cognominado “o mouro”, “o preto”, “o africano”, tornou-se conhecido e devotado em terras brasileiras. Benedito é filho de pais etíopes, que foram escravizados por uma família na hoje região italiana da Sicília. “Foi naquela região insular da Itália que ele nasceu no início do século XVI, o mesmo período em que mundialmente se intensificavam o tráfico e a escravização de seres humanos., em sua grande maioria arrancados forçosamente de terras africanas. O menino Benedito teria recebido a liberdade logo ao nascer, o que não era algo tão fácil, já que filho de escravizado, escravizado é”, explicou Frei Alvaci. Segundo ele, Benedito ingressou em um grupo de eremitas franciscanos que viviam isolados em grutas e cavernas da região. “Na simplicidade e pobreza, vivendo de esmolas e doações, ele viveu por mais de 20 anos ali até que foi enviado para um convento em Palermo, onde exerceu o cuidado da cozinha, dos alimentos, da portaria e, enfim, chegou a ser o superior daquela casa de frades mesmo não sendo sacerdote e sem saber ler e escrever”, recordou.
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Benedito morreu com fama de santidade no dia 4 de abril de 1589, aos 65 anos, no mesmo convento em Santa Maria, em Palermo. “Antes mesmo da beatificação e canonização, ele já se tornara a principal devoção católica dos homens e mulheres negras na América Latina ao lado de Nossa Senhora do Rosário é claro”, disse o frade.
“Não é à toa, até hoje, sua devoção e sua festa, celebrada no mundo inteiro no dia 4 de abril ( o Brasil é uma exceção, pois a CNBB decidiu centralizar a festa no dia 5 de outubro) está relacionada às memórias da ancestralidade, dos reisados e congadas e da relação com os alimentos (tudo muito familiar, de casa). Ele é o santo do oratório na cozinha por exemplo, do primeiro cafezinho matinal (relembrando as ofertas que os pretos podiam fazer ao santo quando trabalhavam nas lavouras de café), das relações com comida e prosperidade. É o homem preto com o menino branco nos braços, é o elo entre África e Brasil, entre passado e presente, entre liberdade e ancestralidade”, descreveu Frei Alvaci.
Para o frade, nesta Missa em que se rememora a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém e ao mesmo tempo se recorda de sua paixão e sofrimento, “fazemos memória de inúmeros homens e mulheres, negros e negras, pretos e pardos e indígenas que sofreram no corpo as atrocidades da escravidão. Aqui nesta igreja e em inúmeras outras na cidade de São Paulo e Brasil afora eles criaram laços, elaboraram estratégias de resistência, cuidaram do corpo sofrido e enterraram os corpos já sem vida de seus irmãos. Muitas vezes à sombra ou nos percalços da religião oficial instituída, que muitas vezes os olhava com desconfiança, às vezes até mesmo acusando-os de ‘fingirem devoção ao santo’ para manterem seus ‘verdadeiros ritos e costumes africanos’. Mesmo assim, eles fizeram memória, marcaram a história e recriaram laços em torno de um santo peto que os unia”, ressaltou.
“É por isso que esta celebração é também um ato de resistência, pois ela traz à memória e ao altar da Eucaristia inúmeros nomes desconhecidos de homens e mulheres que por aqui passaram, que aqui rezaram e que aqui foram enterrados. Só para vocês terem uma ideia, no seu período áureo, a Irmandade de São Benedito do Largo São Francisco chegou a ter mais de 2 mil irmãos e a festa popular que havia no Largo São Francisco, organizada por eles, só foi definitivamente extinta em meados do século XX”, recordou.
Para o frade, Benedito continua aqui e em diversas outras igrejas de São Paulo, sempre presente na memória dos pretos e pretas que ainda invocam como protetor, parente e confrade. Frei Alvaci terminou sua homilia pedindo um viva às irmandades de pretos e foi muito aplaudido. Padre Luiz Fernando disse que quando alguém, como Frei Alvaci se destaca num trabalho como esse, pode ser chamado de “negro honorário”.
No ritmo dos tambores, a celebração teve a procissão dos estandartes das Irmandades e uma imagem pequena de São Benedito foi carregada até o altar, onde a bela imagem de São Benedito desceu do altar lateral para ficar mais perto do povo.
“Agradecemos por esta bela celebração e por este momento histórico que o Frei nos trouxe, que nos emocionou também, e faz com que nós tenhamos um grande compromisso. Que nos momentos de festa São Benedito possamos estar aqui todo ano, pelo menos uma vez por ano, para louvar a primeira comunidade, quem sabe ver a primeira imagem de São Benedito na cidade de São Paulo. É um momento histórico e um momento que nos alegra fazer parte desta realidade. Que nossa celebração seja não só um momento de graça, mas um compromisso de comunidades negras, de diversas irmandades e daqueles que são devotos de São Benedito”, disse Padre Luiz Fernando.
Na Oração dos Fiéis, um momento simbólico com a presença do garoto Chiquinho, que foi um dos representantes do povo na entrega da faixa presidencial ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Francisco tem 10 anos, mora em Itaquera, periferia de São Paulo. Em 2019 esteve em Curitiba para dar “Bom dia Presidente Lula”. Em 2019 também esteve no Jogo MST – Amigos do Lula e Amigos do Chico Buarque. É filho de uma assistente Social e um advogado que atuam nas causas sociais, que estavam presentes na celebração.
Moacir Beggo