Frei Carlos Susin: Tema e lema do Capítulo para construir novos tempos
23/11/2021
A alegria fraterna e o júbilo do reencontro estampavam as faces dos confrades reunidos em capítulo! É o Espírito Santo quem realmente conduz o andamento dos Capítulos da Ordem dos Frades Menores, por isso Ele é celebrado do início ao fim do encontro. Os frades querem se colocar sob a inspiração mais acurada do Paráclito, e para isso dedicam-se à oração, contemplação e fraternidade. O primeiro dia do Capítulo Provincial de 2021 é dedicado à oração, contemplação e meditação, um dia de retiro e inspiração.
O confrade capuchinho Frei Luiz Carlos Susin disse sentir-se honrado em assessorar esse primeiro dia, conduzindo a meditação do retiro em nosso capítulo. Capítulo é o mais próximo que temos da sinodalidade, tão importante para a Igreja e que está tão presente no caminho franciscano. Se propôs a refletir sobre nosso tema e lema do capítulo, que contém palavras fortes, para estabelecermos fundamentos sobre os quais queremos construir novos tempos.
“Juntos que se constroem os sonhos”! Para sonhar bem é preciso dormir bem! Citando o ambientalista Ailton Krenak, Frei Susin lembrou que nossa sociedade está cada vez mais insone, cada vez mais pressionada para resolver as coisas em velocidade. Citando um sábio que dizia: “Quando não conseguimos resolver alguma coisa, vamos dormir, e no outro dia perguntamos o que sonhamos”, quis recordar a grandeza da palavra e do sentido de sonhar juntos.
“Fraternidade Contemplativa em Missão: nossa regra é o Evangelho, nosso claustro é o mundo”.
Claustro é outra palavra importante, porque lembra um modelo monástico, de estar sozinho. Mesmo os padres diocesanos, por vezes, têm dificuldade em se libertar desse estar sozinho que isola. Mas quando colocamos que nosso claustro é o mundo, criamos um paradoxo, um claustro aberto, que não isola mas que expande.
Convento tem esse sentido diferente de monastério, pois a palavra remete não às construções, mas a congresso, a encontro.
O lema ainda ressalta que é juntos que se constroem os sonhos… Juntos! Isso é sinodalidade! Estamos vivendo a Assembleia Eclesial Latinoamericana, juntos repensando nosso modo de ser Igreja, e vemos que a estrutura, e o próprio Direito Canônico, ainda não assumiu a eclesiologia do Vaticano II. Ainda temos o desafio de nos organizarmos com referência e centralidade mas de uma forma que funcione de modo sinodal.
Na Evangelii Gaudium, um dos títulos diz assim: “Na crise do compromisso comunitário”. É disso que estamos falando, pois são os laços de pertença que estão em crise devido a uma centralização do “eu”, uma personalização desacerbada. E não é centrado no “eu”, mas sim com sensibilidade pastoral que precisamos olhar para o mundo.
Nesse sentido, Francisco ainda é chamado de totus catholicus et apostolicus… uma catolicidade que abrange o muçulmano, que abraça os passarinhos, o lobo…
Hoje precisamos olhar para tudo com essa sensibilidade. Inclusive para a tecnologia, que não é apenas um instrumento nem está apenas em alguns instrumentos, mas que se tornou um ambiente. E causa transformações no mundo. O perigo é criar simulacros! A internet, por exemplo, é agente de transformação… com ela a comunicação mudou, passou de uma era em que poucos comunicavam para muitos, para um modelo em que a comunicação ocorre de muitos para muitos! Parece uma democratização, ao menos em tese, mas não é só isso. Basta olharmos para conceitos como pós-verdade e fake news para reconhecermos o verdadeiro caos da informação!
Talvez nesse sentido que Platão tivesse medo da multidão. Ele defendia o governo por uma aristocracia, pelos melhores qualificados intelectualmente, e não por todo o povo (democracia).
Mas para organizar a multidão, organizar o caos da informação hoje temos o algoritmo! É um algoritmo que vai, em meio a tantas escolhas e preferências que você manifesta e informa, copiando padrões, oferecer algo que expressa esses mesmos interesses. No fundo vai fechando em bolhas, padrões. Totus catholicus precisa furar essas bolhas do eu. Nos fechamos em bolhas porque não queremos nos relacionar com o diferente.
Há ainda de se levar em conta que vivemos uma hegemonia do dinheiro. O capitalismo que é por natureza acumulador, está matando a humanidade! Tudo gira em torno do dinheiro, do consumo e do acúmulo. Chegamos ao homo sapiens demens, mas com a inteligência a serviço da loucura. Loucuras como a bomba atômica, frutos da inteligência provam isso.
É a ideia de identificar a mudança do período holoceno para o antropoceno. Segundo as eras geológicas, o período holoceno é quando a terra está em equilíbrio e em condições propícias para uma verdadeira erupção de vida e surgimento das espécies. O foco agora, entretanto, está no ser humano, tudo se volta a ele, por isso antropoceno.
O Papa Francisco, ao assumir esse nome fez uma escolha. E em sua primeira homilia deixou claro os valores de seu pontificado, totalmente em sintonia com Francisco de Assis: ele apresentou o desejo de uma Igreja pobre com os pobres, voltada para a Paz e comprometida com o cuidado da criação.
Essa sensibilidade pastoral que precisamos ao olharmos para o mundo. O Evangelho de João apresenta o mundo como o que o odeia. Esse mundo tem um príncipe. Por isso Jesus diz “meu reino não é desse mundo”. Mas também lembra que “Deus amou tanto o mundo, que entregou seu Filho para a salvação do mundo…” Também diz Jesus que “não vim para julgar o mundo”. Nesses casos, não fala de outro mundo, mas sim do mundo. Esse mundo. Aqui, onde estamos, aqui é nosso lugar de convento (encontro, congresso, vida).
RELACIONAR-SE COM A DIGNIDADE DA CRIAÇÃO
Ao ser lançado o filme “Irmão Sol Irmã Lua”, vimos um romantismo franciscano meio que tomar conta. São Francisco foi declarado padroeiro dos ambientalistas e protetor dos animais. E os frades começaram a dar bênção dos animais. Ou, mais frequentemente, bênção dos pets. Há, de certa forma, uma espiritualidade no reconhecer que diferença pela convivência. Há algo diferente nos animais de companhia e com os que damos nomes. Os filhos de São Francisco são chamados a dialogar com as diferentes tentativas de se relacionar com a dignidade da criação.
Uma espiritualidade antiga judaica, por exemplo, que aparece no sermão da montanha e depois se manifesta nas práticas de oração, esmola e jejum, reconhece na oração a atitude de voltar a boca ao Senhor, abrir a boca em direção a Deus… o pão que viria a encher essa boca é deslocado para o que mais precisa, e isso faz parte do voltar-se a Deus. Por isso, nossa espiritualidade propõe um aprofundar-se no despojamento.
Trata-se de desapropriação. Essa é a nossa loucura evangélica! Desapropriar onde a apropriação é o critério. Inclusive, é até possível falar ao invés de antropoceno, em período capitaloceno, onde a lógica da apropriação está no centro. Estamos extraindo de nossa casa comum muito mais do que ela pode regenerar e oferecer, e isso é grave.
É preciso também, nessa lógica, passar do apego ao desapego! Embora o apego também seja criar laços e vínculos, não devem ser de posse, antes de troca! Criar apego também é fundamental para a criança em seu processo de humanização, mas é um processo com consequências. São Paulo nos fala que queria nos poupar porque os amores vão terminar em luto! Realmente há um processo de luto envolvido e necessário na dinâmica da vida, dos vínculos e laços.
São Francisco de Assis precisou passar por um profundo luto. Quando ele percebe que tentou viver o sonho de seu pai burguês e comerciante, depois tentou se realizar buscando títulos na guerra: passa por um processo de luto, chora com vergonha de si.
Nas suas exortações aparece esse processo quando ele enfatiza o “sine proprio” como maturidade dessa experiência. Historicamente foram várias as interpretações do sine proprio que aparece na regra franciscana, professada por todos os frades. Desde entender como propriedade e transferir todos os bens ao papado, sendo os frades como filhos que usufruem dos bens dos pais, até o questionamento do próprio uso, buscando um “uso pobre” de todas as coisas. Parece, entretanto, que essas discussões são por demais externas. Nas exortações, São Francisco fala na renúncia em fazer juízo do outro! Fazer juízo seria um apropriar-se do outro! O voto, não de pobreza, mas de viver sine proprio, é traduzido como desapropriação! E isso é um processo de luto!
Vamos ver alguns dados biográficos de Francisco. Alguns escritores o descrevem na juventude com vestes esvoaçantes e adepto de comidas delicadas. Por isso, sua forma de viver pobre era colocar remendo por fora das roupas (por dentro não aparecia, e todos colocavam), e comer com cinzas na comida. Era sua forma de desapropriar-se de seus desejos, daquilo que antes lhe eram tão valiosos. Um processo de luto, portanto.
Por isso que imitar Francisco hoje não significa colocar remendos nas roupas e cinza na comida. Isso eram partes de sua biografia. O pai de Francisco queria fazer dele o homem que não conseguiu ser, por isso lhe inflava o ego. Era importante Francisco desconstruir isso, desapropriar-se e viver o luto! Por isso sua radicalidade! Que é inspiradora, mas que não conseguimos imitar… Tanto que Francisco precisou criar algo novo como forma de vida. Ele tentou os modelos de então, mas não se encontrou, seu processo era outro. Também por isso ele exorta a usar palavras breves nas pregações, porque não é o encanto da oratória que evangeliza, mas sim o testemunho.
Nossas famílias, por vezes, já são piedosas e religiosas. Nossa conversão não é repentina, talvez por isso também é algo continuado. É aqui que entra o valor da provação no processo.
O primeiro ano de vida franciscana é chamado de tempo da provação. Francisco acolhia novos frades e eram condições para essa prova deixar o que se tem (se não se tem nada, basta o bom propósito, a vontade de deixar), e ir servir os leprosos, doentes, excluídos. Junto com essa iniciação vinha o assumir a identidade franciscana, e isso se dá pela minoridade: fazer-se menor, abaixar-se. Historicamente, ao se fechar em conventos, perdemos o critério da sociedade, da solidariedade com os pobres nesse processo. Passou-se a discutir o tema da pobreza e da minoridade de modo teórico, e a estabelecer critérios externos, secundários.
O jovem frade que vai trabalhar em uma favela ou comunidade, por exemplo, e se preocupa em ir de chinelo de dedo e roupas simples, para não parecer de fora. Não é isso que importa. Clodovis Boff, ao falar da opção pelos pobres, apresenta a necessidade de esta ser por uma dialética: é preciso atravessar a sociedade carregando a voz, a causa, as demandas dos mais pobres! Para isso precisamos entender a complexidade das mediações. Desprezar as mediações é algo como tentar a Deus. Não só é possível, como muitas vezes a estrada mais frutuosa é fazer uso dos caminhos possíveis em favor da dignidade dos mais pobres.
Critério é também o modo de se fazer as coisas. No tempo de Francisco, a proibição de andar a cavalo e de possuir animais tinha um sentido prático. Hoje, como chegaríamos na África andando a pé ou mesmo de navio? Claro que o melhor é o avião… mas não é necessário ir de primeira classe. É claro que o padre precisa usar um carro para seu trabalho, mas não precisa ser um carro de luxo. Francisco apresenta o critério, ele pode tratar as coisas como irmãs justamente por não tratar os irmãos como coisas.
Equipe de Comunicação do Capítulo: Frei Augusto Gabriel, Frei Clauzemir Makximovitz, Frei Gabriel Dellandrea, Frei Alan Leal de Mattos e Moacir Beggo.