O maior teólogo do século XX profetizou há 50 anos a primavera de Francisco
15/03/2017
No quarto aniversário do papado de Francisco está cumprida a profecia do maior teólogo do século XX, de que haveria uma primavera depois de longo inverno. O alemão Karl Rahner profetizou há mais de 50 anos a chegada deste Papa que é a encarnação mais radical do Concílio Vaticano II. Não é possível pensar o Vaticano II sem a contribuição decisiva de Rahner que, por escolha do Papa João XXIII, foi nomeado em 1959 como consultor da comissão preparatória do Concílio e a seguir como um dos peritos conciliares. Todos os principais teólogos surgidos no contexto do Vaticano II e depois dele foram e são diretamente influenciados por ele.
Rahner profetizou a chegada de Francisco e os eixos de seu pontificado em quatro conferências que proferiu durante os anos do Concílio e depois transformou em breves ensaios[1]. Ele também foi capaz de antecipar alguns dos principais embates que ocorrem hoje, como aquele em torno da exortação Amoris Laetitia, a aproximação com os protestantes, o governo colegiado da Igreja e outros.
A leitura dos ensaios de Rahner, jesuíta como Francisco, indica que este é de fato o primeiro Papa do Concílio, o primeiro Papa que encarna o espírito que o Vaticano II buscou infundir na Igreja Católica. O final do último ensaio é a profecia mais acabada sobre o tempo transcorrido desde o fim do Vaticano II, com o estrangulamento de seu espírito pela Cúria romana e parte da hierarquia, e a semente plantada que agora viceja em Francisco:
“A coisa mais importante acerca do Concílio Vaticano II não é a letra dos decretos, os quais de algum modo devem ser traduzidos por todos nós em vida e ação. É o espírito, as tendências, perspectivas e significado mais profundos do que aconteceu que realmente importa e que continua em vigor. Talvez eles possam ser escondidos novamente pelo tempo, por uma onda contrária de cautela, por medo da própria coragem, por terror de falsas conclusões que as pessoas possam igualmente extrair. Pode parecer a algumas pessoas de vida curta e míopes que após muito barulho tudo está como era. Mas as verdadeiras sementes de uma nova perspectiva e força para entender e resistir ao iminente futuro de um modo cristão estão plantadas no campo da Igreja”.[2]
Um dos principais elementos da revolução de Francisco, o rompimento com a dinâmica monárquica e o início de um governo marcado pela colegialidade e por bispos servidores e não mais príncipes foi igualmente antecipado por Rahner: os bispos “serão homens cujo ofício episcopal não confere posição social, poder ou riqueza especial. Não mais será uma honra terrena ser um bispo no pequeno rebanho. (…) O cristão do futuro não se sentirá reduzido em estatura ou oprimido por seu bispo. (…) A doutrina da colegialidade resistirá, será medida e, sobretudo, vivida”[3]. Este descer dos bispos à planície é um dos principais motivos da revolta de parte da hierarquia contra Francisco, constituída por homens agarrados ao seu poder e riqueza.
É incrível como na primeira metade dos anos 1960 Rahner já conseguiu profetizar o caminho de re-união entre católicos e protestantes que hoje é uma realidade –impensável há poucos anos. “Com esta nova situação, católicos e protestantes aproximam-se um do outro consideravelmente”. A que situação o teólogo alemão referia-se? À enorme estrada do discernimento individual aberta aos católicos –e que esteve bloqueada esses anos todos pelos conservadores que mantiveram o controle do governo eclesial. É impressionante como a polêmica em torno da exortação Amoris Laetitia já era prevista por Rahner: “existem casos de decisão moral nos quais a teologia moral baseada em princípios básicos universais, e portanto o magistério da Igreja, não está numa posição de oferecer os preceitos cristãos indiscutíveis no caso concreto”.[4] É este o convite de Francisco, ao qual respondem os “contras” com um sonoro não.
A relação que Francisco estabeleceu entre a Igreja e o mundo nesses quatro anos foi igualmente antevista por Rahner como postura daquele que qualificou como “o cristão do futuro”. Para o teólogo, nos anos à frente do Concílio –os que finalmente vivemos nos tempos atuais- o “cristão do futuro”, personificado exemplarmente no Papa, “não examinará ansiosamente as estatísticas para saber se a Igreja realmente é a maior organização ideológica ou não (…) ele não sairá para o mundo com zelo missionário e dando testemunho do nome de Cristo”[5]. É a abdicação do proselitismo, advogada por Francisco, substituída pelo diálogo e pela convivência com as diferenças: “Consequentemente, o cristão encontrará corajosa e esperançosamente como irmãos aqueles que não desejam ser seus irmãos em seu ‘conceito de mundo’”[6]. Esta nova postura significa abandonar o “espírito de Cruzada” que ainda hoje pauta o comportamento dos católicos integristas na relação com os muçulmanos, a quem desejam ver derrotados e submetidos.
As conferências de Rahner intuíram uma visão radicalmente modificada da Igreja pós-Concílio, não mais “como um grupo armado que se coloca oposto ao grupo do diabo, ambos em condições iguais e igualmente poderosos”; mas como casa na qual seja “permissível ao homem de hoje pensar esperançosamente acerca dos outros –e isto é quase a única coisa que o ajuda a não desesperar de si mesmo”[7].
Há mais de 50 anos, alguém viu Francisco -Karl Rahner, que morreu em 1984, muito antes que sua profecia se cumprisse.
[por Mauro Lopes]
[1] Os quatro ensaios estão no sexto volume de sua coleção Schriften zur Theologie (Escritos Teológicos), publicado em 1965. Eles foram publicados no Brasil num pequeno livro intitulado O Cristão do Futuro (Fonte Editorial, São Paulo, sem data) e levam os títulos: A Igreja que muda, Situação ética numa perspectiva ecumênica, Os limites da Igreja: contra o triunfalismo clerical e leigos derrotistas e O ensino do Concílio Vaticano II sobre a Igreja e a realidade da futura vida cristã.
[2] Idem, p. 94
[3] Idem, p. 91-92
[4] Idem, p. 41-44
[5] Idem, p. 80
[6] Idem, p. 81
[7] Idem, p. 85-87