Primeiro Pontífice a visitar uma igreja anglicana
26/02/2017
Cidade do Vaticano – Na tarde deste domingo, 26 de fevereiro, o Papa Francisco realizou uma visita histórica, ao participar das celebrações dos 200 anos da Paróquia anglicana All Saints, em Roma. Foi o primeiro Pontífice a entrar no templo.
O Papa reconheceu, no entanto, que há dificuldades no caminho da aproximação, da “plena comunhão”, entre as duas igrejas cristãs. “Às vezes o progresso no caminho de uma plena comunhão pode parecer lento e inseguro, mas hoje podemos nos sentir alentados por nosso encontro”, declarou o pontífice.
Ordenação de mulheres
Em outubro passado, o Papa e o arcebispo de Canterbury, Justin Welby, celebraram juntos uma cerimônia na igreja de São Gregório de Roma para marcar os 50 anos de aproximação das duas igrejas.
Os dois líderes religiosos mostraram, no entanto, suas divergências em um comunicado, “em particular sobre a ordenação das mulheres e em questões relacionadas com a sexualidade”.
Na Igreja Anglicana, as mulheres podem ser ordenadas desde 1992 e representam um terço do clero atualmente. A cisão anglicana aconteceu no século XVI, depois que o Papa se recusou a conceder a anulação do casamento do rei Henrique VIII. Desde então, os anglicanos não reconhecem a autoridade do Papa.
O reverendo Jonathan Boardman, sacerdote da igreja All Saints, localizada no centro de Roma, celebrou a visita do Papa. “É uma alegria incrível, isto tem um significado absolutamente extraordinário”, declarou.
O Papa Francisco aproveitou a ocasião para anunciar que estuda a possibilidade de viajar ao Sudão do Sul, país de maioria cristã, com Justin Welby. Ele assinalou que, caso se realize, a viagem irá durar apenas um dia, devido à “situação difícil” no Sudão do Sul, país devastado por uma guerra civil desde dezembro de 2013.
Eis a íntegra do discurso do Santo Padre:
“Queridos irmãos e irmãs,
Vos agradeço pelo gentil convite em celebrar juntos este aniversário paroquial. Transcorreram mais de duzentos anos desde que realizou-se o primeiro serviço litúrgico público anglicano em Roma, para um grupo de residentes ingleses que viviam nesta parte da cidade. Muita coisa mudou desde então, em Roma e no mundo. No decorrer destes dois séculos, muito também mudou entre anglicanos e católicos, que no passado olhavam-se com suspeita e hostilidade; hoje, graças a Deus, nos reconhecemos como verdadeiramente somos: irmãos e irmãs em Cristo, mediante o nosso batismo comum. Como amigos e peregrinos desejamos caminhar juntos, seguir juntos o nosso Senhor Jesus Cristo.
Vocês me convidaram para abençoar o novo ícone de Cristo Salvador. Cristo nos olha, e o seu olhar sobre nós é um olhar de salvação, de amor e de compaixão. É o mesmo olhar misericordioso que atravessou o coração dos Apóstolos, que iniciaram um novo caminho de vida nova para seguir e anunciar o Mestre. Nesta santa imagem, Jesus, olhando-nos, parece dirigir também a nós um chamado, um apelo: “Estás pronto a deixar alguma coisa do teu passado por mim? Queres ser mensageiro de meu coração, de minha misericórdia?”.
A misericórdia divina é a fonte de todo o ministério cristão. O diz o Apóstolo Paulo, dirigindo-se ao Coríntios, na leitura que acabamos de ouvir. Ele escreve: “Este é o nosso ministério, nós o temos pela misericórdia de Deus; por isto, não perdemos a coragem” (2 Cor 4,1).
Com efeito, São Paulo nem sempre teve uma relação fácil com a comunidade de Corinto, como demonstram as suas cartas. Houve também uma visita dolorosa a esta comunidade e palavras inflamadas foram trocadas por escrito. Mas esta passagem mostra o Apóstolo que supera as divergências do passado e, vivendo o seu ministério segundo a misericórdia recebida, não se resigna diante das divisões, mas trabalha pela reconciliação. Quando nós, comunidade de cristãos batizados, nos encontramos diante de desacordos e nos colocamos diante do rosto misericordioso de Cristo para superá-los, fazemos precisamente como fez São Paulo em uma das primeiras comunidades cristãs.
Como se compromete Paulo nesta missão, de onde começa? Da humildade, que não é somente uma bela virtude, é uma questão de identidade: Paulo se compreende como um servidor, que não anuncia a si mesmo, mas Cristo Jesus Senhor. E cumpre este serviço, este ministério, segundo a misericórdia que lhe foi dada; não com base em sua bravura e contando com suas forças, mas na confiança com que Deus o olha e apoia, com misericórdia a sua fraqueza. Tornar-se humilde é sair do centro, reconhecer-se necessitado de Deus, mendigo de misericórdia: é o ponto de partida para que seja Deus a operar.
Um Presidente do Conselho Ecumênico das Igrejas descreve a evangelização cristã como “um mendigo que diz a outro mendigo onde encontrar o pão”. Acredito que São Paulo teria aprovado. Ele se sentia “com fome de misericórdia” e a sua prioridade era compartilhar com os outros o seu pão: a alegria de ser amados pelo Senhor e de amá-lo.
Este é o nosso bem mais precioso, o nosso tesouro, e neste contexto Paulo introduz uma de suas imagens mais conhecidas, que podemos aplicar a todos nós: “Temos este tesouro em vasos de barro”. Somos somente vasos de barro, mas guardamos dentro de nós o maior tesouro do mundo. Os Coríntios sabiam bem que era tolice preservar algo de precioso em vasos de barro, que eram baratos, mas se quebravam facilmente. Ter dentro deles algo de precioso significava risco de perdê-lo. Paulo, pecador, agraciado, humildemente reconhece ser frágil como um vaso de barro. Mas experimentou e sabe que precisamente ali, onde a miséria humana se abre à ação misericordiosa de Deus, o Senhor opera maravilhas. Assim opera o “extraordinário poder de Deus”.
Confiante neste humilde poder, Paulo serve o Evangelho. Falando de alguns adversários seus em Corinto, os chamou “superapóstolos”, talvez, e com uma certa ironia, porque o tinham criticado pelas suas fraquezas, das quais eles se consideravam isentos”. Paulo, pelo contrário, ensina que somente reconhecendo-nos frágeis vasos de barro, pecadores sempre necessitados de misericórdia, o tesouro de Deus se derrama em nós e sobre os outros mediante nós. De outra forma, seremos somente cheios de tesouros nossos, que se corrompem e apodrecem em vasos aparentemente bonitos. Se reconhecemos a nossa fraqueza e pedimos perdão, então a misericórdia restauradora de Deus resplandecerá dentro de nós e será também visível de fora; os outros irão experimentar de alguma forma, através de nós, a beleza gentil da face de Cristo.
A um certo ponto, talvez no momento mais difícil com a comunidade de Corinto, Paulo cancelou uma visita que havia programado, renunciando também às ofertas que teria recebido. Existiam tensões na comunhão, mas não tiveram a última palavra. A relação voltou ao normal e o Apóstolo aceitou a oferta para o sustento da Igreja de Jerusalém.
Os cristãos de Corinto voltaram a trabalhar junto às outras comunidades visitadas por Paulo, para apoiar quem era necessitado. Este é um sinal forte de comunhão restabelecida. Também a obra que a vossa comunidade desenvolve junto a outras de língua inglesa aqui em Roma, pode ser vista desta forma. Uma comunhão verdadeira e sólida cresce e se robustece quando se age juntos por quem tem necessidade. Por meio do testemunho concorde da caridade, a face misericordiosa de Jesus torna-se visível na nossa cidade.
Católicos e anglicanos, somos humildemente agradecidos porque, depois de séculos de recíproca desconfiança, somos agora capazes de reconhecer que a fecunda graça de Cristo está em ação também nos outros. Agradecemos ao Senhor porque entre os cristãos cresceu o desejo de uma maior proximidade, que se manifesta no rezar juntos e no comum testemunho ao Evangelho, sobretudo por meio das várias formas de serviço. Às vezes, o progresso no caminho rumo à plena comunhão pode parecer lento e incerto, mas hoje podemos tirar um encorajamento deste nosso encontro. Pela primeira vez um Bispo de Roma visita a comunidade de vocês. É uma graça e também uma responsabilidade: a responsabilidade de fortalecer as nossas relações em louvor a Cristo, a serviço do Evangelho e desta cidade.
Encorajando-nos uns aos outros a tornar discípulos sempre mais fiéis a Jesus, sempre mais livres dos respectivos preconceitos do passado e sempre mais desejosos de rezar por e com os outros. Um bonito sinal desta vontade é a “parceria” concretizada entre a vossa paróquia All Saints e a católica, de Todos os Santos. Que os Santos de cada Confissão cristã, plenamente unidos na Jerusalém celeste, nos abram o caminho para percorrer aqui todas as possíveis vias de um caminho cristão fraterno e comum. Onde nos reunimos em nome de Jesus, ali Ele está presente, e dirigindo o seu olhar de misericórdia, chama a trabalharmos pela unidade e pelo amor. Que o rosto de Deus resplandeça sobre nós, sobre vossas famílias e sobre toda a comunidade!”.
Fonte: Rádio Vaticano