Papa: “Com a vida não se brinca”
24/09/2023
Francisco em diálogo com jornalistas no voo de regresso da França: “As migrações bem conduzidas são um tesouro”. As palavras sobre a eutanásia: “Cuidado com as colonizações ideológicas que arruínam a vida humana”. Ucrânia: “Não devemos brincar com o martírio desse povo”
“Boa noite Santidade, boa noite a todos. Obrigado por reservar esse tempo no voo de volta. Foi uma viagem particular, em que pode sentir também, como dizia sua Eminência, todo o afeto dos franceses que foram rezar com o senhor. Mas creio que ainda existem algumas perguntas ou questões que os jornalistas queriam fazer-lhe. Ou o senhor queria nos dizer algumas palavras”, disse Matteo Bruni.
Raphaelle Schapira (France Televisions) – Santo Padre, boa noite. O senhor começou seu pontificado em Lampedusa, denunciando a indiferença. Dez anos depois, continua pedindo à Europa que demonstre solidariedade. E vem repetindo a mesma mensagem há dez anos. Isso significa que o senhor falhou?
Papa Francisco – Eu diria que não. Eu diria que o progresso tem sido lento. Hoje, há consciência do problema da migração. Há consciência. E também existe a consciência de que o problema chegou a um ponto… como uma batata quente que você não sabe como segurá-la. Angela Merkel disse uma vez que o problema é resolvido indo à África e resolvendo-o na África, elevando o nível dos povos africanos. Mas há casos que são difíceis. Casos muito difíceis. Em que migrantes são enviados como “pingue-pongue”. E sabe-se que muitas vezes eles acabam em “campos de concentração”, acabam em situações piores do que estavam antes. Eu acompanhei a vida de um rapaz, Mahmoud, que estava tentando sair porque precisava, e no final ele se enforcou; ele não suportou essa tortura. Eu já lhes disse para lerem esse livro: Irmãzinho, ou “Hermanito”. As pessoas que retornam são primeiro vendidas. Depois, tiram-lhes dinheiro. Em seguida, obrigam-nas a ligar para a família para enviar mais dinheiro. Mas são pessoas pobres. É uma vida terrível. Ouvi uma pessoa que testemunhou, quando à noite, ao embarcar, viu um navio tão simples, sem segurança, e não quis embarcar. E… “pum pum” (barulho como de tiros). Fim da história. É o reino do terror! Eles sofrem não apenas porque precisam sair, mas porque lá é o reino do terror. Eles são escravos. E não podemos, sem ver a realidade, enviá-los de volta como uma bola de “pingue-pongue”. Não. É por isso que continuo dizendo que, em princípio, os migrantes devem ser bem-vindos, acompanhados, promovidos e integrados. Se você não puder integrá-los em seu país, então acompanhe-os e integre-os em seu próprio país, mas não os deixe nas mãos dessas pessoas cruéis do tráfico de pessoas. O problema com os migrantes é o seguinte: nós os enviamos de volta e eles caem nas mãos desses infelizes que fazem tanta maldade. Eles os vendem, eles os exploram. As pessoas tentam sair. Há alguns grupos que se dedicam a resgatar pessoas com barcos no mar. Convidei um deles para participar od Sínodo, que é o líder da “Mediterranea Saving Humans”. Eles nos contam histórias terríveis. Em minha primeira viagem, como a senhora disse, foi a Lampedusa. As coisas melhoraram. Realmente melhoraram. Há mais conscientização. Naquela época, nós não sabíamos. E também não nos diziam a verdade. Lembro que havia uma recepcionista na Casa Santa Marta, que era etíope, filha de etíopes. E ela estava acompanhando minha viagem pela TV. E durante a minha viagem havia um etíope, um pobre etíope, me explicando a tortura e outras realidades. E o tradutor – ela me disse – dizia mentiras, ele amenizava a situação. É difícil ter confiança. São inúmeros dramas. Naquele dia em que eu estava em Lampedusa me disseram: olhe para aquela mulher, era uma médica. Ela foi para o meio dos cadáveres, olhando os rostos das pessoas, porque estava procurando a filha, que ainda não tinha encontrado. Esses dramas… é bom que os tomemos em nossas mãos. Isso nos tornará mais humanos e, portanto, também mais divinos. É um chamado. Eu gostaria que fosse como um grito. Vamos estar mais atentos. Devemos fazer alguma coisa. A consciência mudou. Realmente mudou. Hoje há mais consciência. Não porque eu tenha me manifestado, mas porque as pessoas perceberam o problema, e muitos estão falando sobre isso. E essa foi minha primeira viagem. Quero dizer mais uma coisa pessoal, eu nem sabia onde ficava Lampedusa, nem isso. Mas ouvi as histórias. Li algo e, em oração, senti que precisava ir até lá. Como se o Senhor estivesse me enviando para lá, em minha primeira viagem.
Clemónt-Melki (AFP) – Boa tarde, Santo Padre. Esta manhã, o senhor encontrou Emmanuel Macron depois de ter expresso o seu desacordo em relação à eutanásia. O governo francês está se preparando para aprovar uma controversa lei sobre o fim da vida. Poderia gentilmente nos dizer o que disse ao presidente francês em relação a isso? E se pensa fazê-lo mudar de ideia…Obrigado!
Papa Francisco – Hoje não falamos sobre esse tema, mas falamos sobre isso na outra visita, quando nos encontramos, eu falei claramente. Quando ele veio ao Vaticano. Eu dei o meu parecer claro: com a vida não se brinca, nem no início nem no fim, não se brinca! E não o meu parecer, é custodiar a vida, sabe, porque depois acabará com aquela política de “não dor”, de uma eutanásia humanística. Sobre isso quero repetir, um livro – leiam-no – é de 1903, é um romance. Se chama “O senhor do mundo”, The Lord of the World ou The Lord of the Earth (tem dois títulos), escrito por Robert Benson, o autor, é um escritor futurista [romance de ficção científica distópico escrito por Robert Hugh Benson em 1907 que se centra no reino do Anticristo e no Fim do Mundo – ndr ]. Ele mostra como as coisas serão no final. E são tiradas todas as diferenças, todas, e também são tiradas as dores, tudo, e a eutanásia é uma dessas coisas, a morte doce, a seleção antes do nascimento, como esse homem havia visto os conflitos atuais. Hoje, estejamos atentos com as colonizações ideológicas, que arruínam a vida humana, porque vão contra a vida humana. Hoje se cancela a vida dos avós, por exemplo, quando a riqueza humana vai no diálogo dos netos com os avós, se cancela, são velhos, não servem. Com a vida não se brinca. Desta vez não falei com o presidente, mas da outra vez sim, quando veio, eu dei o meu parecer, com a vida não se brinca, seja a lei de não deixar que cresça a criança no ventre da mãe, a lei da eutanásia, nas doenças, na velhice. Não digo que é uma coisa de fé, é uma coisa humana, humana, há a má compaixão. A ciência chegou a fazer com que cada doença dolorosa seja menos dolorosa, e a acompanha com tantos remédios. Mas com a vida não se brinca!
MARTÍNEZ BROCAL OGÁYAR Javier – ABC – Santo Padre, obrigado por responde às perguntas, por este tempo que nos dedica nesta viagem muito intensa, densa de conteúdos. Até o último momento o senhor falou da Ucrânia e o cardeal Zuppi acaba de voltar de Pequim. Houve progressos nesta missão? Pelo menos na questão humanitária do regresso das crianças? Depois, uma pergunta um pouco dura: como vive o fato, inclusive pessoalmente, de que esta missão não consegue obter nenhum resultado concreto até agora? O senhor, em uma audiência, falou de frustração. Sente frustração? Obrigado
Papa Francisco – Isto é verdade, um pouco de frustração se sente, porque a Secretaria de Estado está fazendo de tudo para ajudar nisto, também a “missão Zuppi” foi lá, há algo com as crianças que está indo bem, mas me vem em mente que esta guerra vai além do problema russo -ucraniano, mas é para vender armas, o comércio de armas. Dizia um economista alguns meses atrás que hoje os investimentos que dão mais lucro são as fábricas de armas, certamente fábricas de morte! O povo ucraniano é um povo mártir, tem uma história muito martirizada, uma história que faz sofrer, e não é a primeira vez: no tempo de Stalin, sofreu muito, muito, muito, é um povo mártir. Mas nós não devemos brincar com o martírio deste povo, devemos ajudá-los a resolver as coisas no modo mais real possível. Nas guerras, o real é possível, não para fazer ilusões: que amanhã os dois líderes em guerra vão comer juntos, mas até o possível, onde chegaremos para fazer o possível. Agora vi que algum país se retrai, que não dá armas, e começa um processo onde o mártir será o povo ucraniano certamente. E isso é algo ruim!
Você mudou de tema, e por isso gostaria de voltar ao primeiro argumento, à viagem. Marselha é uma civilização de tantas culturas, muitas culturas, é um porto de migrantes. No passado eram migrantes rumo a Cayenne, de lá saiam os condenados à prisão. O arcebispo [de Marselha, ndr] me presentou Manon Lescaut para me lembrar daquela história. Mas Marselha é uma cultura do encontro! Ontem, no encontro com os representantes de várias confissões – convivem islâmicos, judeus, cristãos -, mas existe a convivência, é uma cultura da ajuda. Marselha é um mosaico criativo, é esta cultura da criatividade. Um porto que é uma mensagem à Europa: Marselha acolhe. Acolhe e faz uma síntese sem negar a identidade dos povos. Devemos repensar este problema para outros lugares: a capacidade de acolher. Voltando aos migrantes, são cinco as pequenas cidades que sofrem a presença de muitos migrantes, mas em alguns delas quase não há população, penso num caso concreto que conheço onde moram menos de 20 idosos e nada mais. Por favor, que esses povos façam o esforço para integrar. Precisamos de mão de obra, a Europa necessita. As migrações bem conduzidas são uma riqueza, são uma riqueza. Pensemos nesta política migratória para que seja mais fecunda e nos ajude muito.
Papa: não à ilegalidade e sim à solidariedade
O momento central da 44ª Viagem Apostólica Internacional do Papa Francisco, foi a sua presença no encerramento dos “Encontros do Mediterrâneo”, que em sua terceira edição aconteceu em Marselha, na França. Ao chegar no Palácio do Farol, sede do encontro, o Pontífice foi recebido pelo presidente da República da França, Emmanuel Macron, e por sua esposa. Também acompanharam este momento o arcebispo de Marselha e o prefeito da cidade.
Após a saudação inicial por parte do arcebispo, e da exibição de um vídeo-síntese dos “Encontros do Mediterrâneo”, uma jovem italiana que atua como voluntária em uma casa de acolhimento de refugiados na Grécia, e um bispo albanês que migrou para a Itália, testemunharam suas histórias e destacaram a importância dos dias de reunião, ao tratarem das diversas realidades mediterrânicas.
Seguiu-se então o discurso do Papa, que demonstrou sua alegria e gratidão por estar presente no encerramento deste importante evento. Francisco evidenciou as características históricas de Marselha, e disse que a cidade nos diz que, apesar das dificuldades, a convivência é possível e geradora de alegria. “No mapa, entre Nisa e Montpellier, parece quase desenhar um sorriso; e assim me apraz pensá-la: como o sorriso do Mediterrâneo”, afirmou o Pontífice.
O Santo Padre abordou o significado do mar, e tudo aquilo que ele representa, seja historicamente ou nos desafios da atualidade, e ressaltou que o Mediterrâneo tem uma vocação específica:
“No mar dos conflitos de hoje, estamos aqui a fim de valorizar a contribuição do Mediterrâneo, para que volte a ser laboratório de paz. Pois esta é a sua vocação: ser lugar onde países e realidades diferentes se encontrem com base na humanidade que todos partilhamos, e não nas ideologias que se contrapõem. É verdade que o Mediterrâneo exprime um pensamento que não é uniforme e ideológico, mas poliédrico e aderente à realidade; um pensamento vital, aberto e conciliador: um pensamento comunitário. Quanto necessitamos dele no momento atual, quando nacionalismos antiquados e belicosos querem fazer cair o sonho da comunidade das nações! Mas lembremo-nos de que, com as armas, se faz a guerra, não a paz; e com a ganância de poder volta-se ao passado, não se constrói o futuro.”
O Papa recordou das inúmeras pessoas que vivem imersas na violência e padecem por situações de injustiça e perseguição. “Penso em tantos cristãos, muitas vezes obrigados a abandonar as suas terras ou a habitá-las sem ver reconhecidos os seus direitos, sem gozar de plena cidadania. Por favor, empenhemo-nos para que quantos fazem parte da sociedade possam tornar-se cidadãos de pleno direito”, ressaltou Francisco ao se recordar dos migrantes.
O Pontífice sublinhou que esta situação não é uma novidade dos últimos anos, “nem este Papa vindo da outra parte do mundo é o primeiro a senti-la com urgência e preocupação”, disse rferindo-se a si mesmo, e completou: “a Igreja fala disto com tons vivos há mais de cinquenta anos”.
“Tinha terminado há pouco o Concílio Vaticano II, quando São Paulo VI escreveu, na Encíclica Populorum progressio: “Os povos da fome dirigem-se, hoje, de modo dramático aos povos da opulência. A Igreja estremece perante este grito de angústia e convida cada um a responder com amor ao apelo do seu irmão”. O Papa Montini enumerou três deveres das nações mais desenvolvidas, enraizados na fraternidade humana e sobrenatural: o dever de solidariedade, ou seja, o auxílio que as nações ricas devem prestar aos países em vias de desenvolvimento; o dever de justiça social, isto é, a retificação das relações comerciais defeituosas, entre povos fortes e povos fracos; o dever de caridade universal, quer dizer, a promoção, para todos, de um mundo mais humano e todos tenham qualquer coisa a dar e a receber, sem que o progresso de uns seja obstáculo ao desenvolvimento dos outros.”
Para o Pontifice é certo que estão à vista de todos as dificuldades em acolher, proteger, promover e integrar pessoas não esperadas. O critério principal, porém, não pode ser a manutenção do próprio bem-estar, mas a salvaguarda da dignidade humana. “Aqueles que se refugiam junto de nós não devem ser vistos como um peso a carregar: se os considerarmos irmãos, aparecer-nos-ão sobretudo como dons”, afirmou o Papa.
“Pensando no mar, que une tantas comunidades católicas diversas, creio que se possa refletir sobre percursos de maior sinergia, talvez avaliando mesmo a oportunidade de uma Conferência dos Bispos do Mediterrâneo, que permita novas possibilidades de intercâmbio e dê maior representatividade eclesial à região”, disse Francisco, pensando nos desafios da questão migratória, e na necessidade de desenvolver um trabalho em prol de uma pastoral específica ainda mais conectada, de modo que as dioceses mais expostas possam assegurar melhor assistência espiritual e humana às irmãs e aos irmãos que chegam necessitados de tudo.
O Santo Padre concluiu o seu discurso evidenciando a juventude que também foram peças fundamentais durante o encontro “Jovens bem formados e orientados para fraternizar poderão abrir portas inesperadas de diálogo. Se queremos que se consagrem ao Evangelho e ao nobre serviço da política, é preciso antes de tudo que nós próprios sejamos credíveis: esquecidos de nós mesmos, livres de autorreferencialidade, dedicados a gastar-nos incansavelmente pelos outros”, exortou Francisco.
Em suas palavras finais aos participantes, o Papa Francisco lhes encorajou:
“Continuai em frente! Sede mar de bem, para fazer frente às pobrezas de hoje com uma sinergia solidária; sede porto acolhedor, para abraçar quem procura um futuro melhor; sede farol de paz, para atravessar, através da cultura do encontro, os tenebrosos abismos da violência e da guerra.”
Fonte: Vatican News (texto de Thulio Fonseca)