Oração e devoção no itinerário franciscano – Segunda parte
22/02/2017
A alma que busca a Deus parece dizer como Heráclito: “a mim mesmo me procurei” (fragmento 249). O movimento é divino, no entanto, Deus procura a alma e, como lampejo divino, a alma se procura, e no mais íntimo de si, encontra Deus. Esse movimento nos é caracterizado como espírito de oração e devoção. São Francisco viveu essa realidade profundamente: “durante vinte anos consumia-se, alma e corpo, para que Deus, os homens e as criaturas conservassem o direito de ser amados nos respectivos valores” [1]. São Francisco “estava todos os dias e continuamente falando sobre Jesus, e como sua conversação era doce, suave, bondosa e cheia de amor. Sua boca falava da abundância do coração, e a fonte de amor iluminado que enchia todo o seu interior extravasava. Possuía Jesus de muitos modos: levava sempre Jesus no coração, Jesus na boca, Jesus nos ouvidos, Jesus nos olhos, Jesus nas mãos, Jesus em todos os outros membros” (1Cel 115). Por isso, “nada de extraordinário, portanto, que aparecesse ‘aos olhos dos mortais como um homem extraordinário, um homem de outro mundo’ como um ‘ostensório vivo’ do próprio Cristo (1Cel 82)” [2]. Esse espírito de oração e devoção Francisco buscava na “recordação de Jesus crucificado e permanecia constantemente em sua alma, como a bolsa de mirra sobre o coração da esposa do Cântico dos Cânticos, e na veemência de seu amor extático ele desejava ser inteiramente transformado nesse Cristo crucificado” (LM 9, 2).
“Pelo exercício contínuo da oração e pela prática das virtudes, havia o homem de Deus chegado a uma tal limpidez de alma que, sem haver adquirido pelo estudo o conhecimento dos santos livros, mas iluminado pelas luzes do alto, penetrava com espantosa acuidade ao mais profundo das Escrituras. Seu espírito, livre de toda mancha, penetrava os mais ocultos mistérios, e onde não podia chegar a ciência adquirida, penetrava o afeto do discípulo amante. Lia as vezes os livros santos, e tudo o que sua inteligência captava sua memória retinha tenazmente, pois o ouvido atento de sua alma percebia o que o coração amante repassava sem descanso” (LM 11, 1).
A genuína humanidade no caminho para Deus é valorizada no itinerário franciscano, ou seja, tudo que é humano não é estranho, como acena Santo Agostinho. No entanto, esse caminho será mais constituído itinerário quanto estiver fundado na consciência e fundamentado na própria verdade de vida daquele que o trilha. Essa consciência ajudará que os desânimos e as dificuldades do caminho não deixem que a alma franciscana estagne em um possível desânimo ou descrença, mas a levará como Francisco a rezar “Senhor, ilumina as trevas do meu coração”. A devota oração de São Francisco ultrapassa todas as barreiras, mesmo as mais difíceis, uma vez que “bem sabemos que seu espírito está admiravelmente unido a Deus nas mansões eternas” [3]:
Achava que fazia grave ofensa a si mesmo quando, entregue … oração, era assaltado por distrações. Quando acontecia alguma coisa dessas, não se poupava na confissão, para conseguir uma expiação completa. Habituou-se a tal ponto a esse esforço, que era muito raro ser atormentado por essa espécie de “moscas”. Durante uma Quaresma, fez um pequeno vaso, aplicando nisso pedacinhos de tempo, para não o desperdiçar. Num dia em que estava rezando devotamente a hora de Terça, olhou casualmente para o vaso, e sentiu que seu homem interior tinha sido prejudicado no fervor. Condoído por ter interrompido a voz do coração que se dirigia a Deus, quando terminou a Terça, disse aos frades que o ouviam: “Que obra tola é essa, que teve tanta força sobre mim para me distrair a atenção! Vou sacrificá-la ao Senhor, porque atrapalhou o seu sacrifício”. Dizendo isso, pegou a vasilha e a jogou no fogo. Ainda disse: “Envergonhemo-nos das distrações que nos arrastam quando, na oração, estamos conversando com o Grande Rei”. (2Cel, 63, 97).
Santa Clara em sua regra nos dá uma profunda e vivenciada exortação quanto ao espírito de oração e devoção: “De modo que, afastando o ócio, inimigo da alma, não extingam o espírito da santa oração e devoção, ao qual as outras coisas temporais devem servir” (RegSC 7, 2). Manter o espírito de devoção e oração é antes de tudo, amar a Deus sobre todas as coisas, é cumprir o mandamento de Jesus. É Adorá-lo! Na carta aos fiéis São Francisco nos exorta a isso: “Amemos, pois, a Deus e adoremo-lo com o coração e espírito puros, porque Ele mesmo exigiu isto acima de tudo, dizendo: “Os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade, pois todo aquele que o adorar deve adorá-lo em espírito e verdade” (Jo 4,23-24). E queremos oferecer-lhe os nossos louvores e preces de dia e de noite, dizendo: “Pai nosso que estais nos céus”, pois “é preciso orar em todo o tempo e não desfalecer” (Lc 18,1)” (2CFi 19-21).
O Espírito de São Francisco cumpria essa realidade rigorosamente, e em não poucas vezes, teve de Deus a graça do êxtase, da fração de segundo em que Deus se faz pleno no humano e o humano pleno em Deus. Como ainda nos diz Santa Clara: recolher o sussurro furtivo de Deus. Francisco o fez diversas vezes:
“Francisco se enchia cada vez mais da consolação e da graça do Espírito Santo. (…) Certo dia, foi para um lugar de oração, como fazia com freqüência. Lá rezando com temor e tremor, repetia sem cessar: “Deus, tende piedade de mim que sou pecador”. O íntimo de seu coração começou a extravasar alegria incontável. Sentiu-se desfalecer, dissipando-se os temores e as trevas que se tinham juntado em seu coração. Arrebatado em êxtase e absorvido totalmente em claridade, alargou-se a sua mente e pôde ver com clareza os acontecimentos futuros” (1Cel-I, 26).
E ainda,
“Era muitas vezes arrebatado por tamanho prazer na contemplação, que ficava fora de si, e a ninguém revelava as experiências sobre-humanas que tinha tido. Mas, por um fato, que uma vez chamou a atenção, podemos calcular a freqüência com que ficava absorto nos prazeres’ celestiais. Ia montado num asno, e precisou passar por Borgo San Sepolcro. Como quis ir descansar numa casa de leprosos, muita gente ficou sabendo da passagem do homem de Deus. De toda parte correram homens e mulheres para vê-lo, querendo tocá-lo com a costumeira devoção. Comprimiam-no, empurravam-no e lhe cortavam pedaços de sua túnica. Ele parecia insensível a tudo e, como um corpo morto, não tomou conhecimento de nada do que estava acontecendo. Afinal, chegaram ao lugar. Muito depois de terem deixado Borgo, o contemplador das coisas do céu, como se estivesse voltando de longe, perguntou interessado quando chegariam a Borgo” (2Cel, 63, 98).
Todos, de fato todos, somos convidados e ajudados por Francisco que intercede a nós a Nosso Senhor, a buscarmos, a cada dia, a união com o Divino Esposo, isso quando estamos unidos a Cristo e abertos à ação do Espírito Santo. Francisco mesmo nos diz:
“E todos os homens e mulheres que assim agirem e perseverarem até o fim verão “repousar sobre si o Espírito do Senhor” (Is 11,2), e Ele fará neles sua morada permanente (Jo 14,23), e eles serão filhos do Pai celestial (Mt 5,45), cujas obras fazem. E eles São esposos, Irmãos e Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo (cf. Mt 12,48-50). Somos esposos, quando a alma crente está unida a Jesus Cristo pelo Espírito Santo. Somos seus irmãos, quando fazemos a vontade do Pai que está nos céus (Mt, 12,50); somos mães quando o trazemos em nosso coração e nosso corpo através do amor e da consciência pura e sincera; damo-lo à luz por santa operação que deve brilhar como exemplo para os outros” (2CtFi, 48-53).
Destarte, com o húmus do espírito que nos une a todos, rezemos com o espírito de poesia e santidade que Francisco nos inspira:
“Outra coisa não desejemos, nem queiramos, nem nos agrade, nem nos alegre senão o nosso Criador e Redentor e Salvador, o único e verdadeiro Deus, que é o bem pleno, o bem todo, o bem inteiro, o sumo e verdadeiro bem, que só Ele é bom (cf. Lc 18,19), carinhoso e meigo, suave e doce, que só Ele é santo, justo, verdadeiro e reto, só Ele benigno, inocente e puro; dele, por ele e nele é todo perdão, toda graça, toda glória de todos os penitentes e justos, de todos os santos que se alegram juntos no céu. Nada pois nos impeça, nos separe, se nos interponha. Em toda parte, em qualquer lugar, a toda hora e tempo, diária e continuamente, creiamos sincera e humildemente, retenhamos no coração e amemos, sirvamos, louvemos e bendigamos, glorifiquemos e sobreexaltemos, magnifiquemos e rendamos graças ao altíssimo e sumo Deus eterno, trino e uno, Pai, Filho e Espírito Santo, Criador de tudo o que existe, Salvador dos que nele crêem e esperam e o amam, que não teve princípio nem ter fim, imutável, invisível, inenarrável, inefável , incompreensível, imperscrutável, bendito, louvável, glorioso, sobreexaltado, sublime, excelso, suave, amável, cheio de delícias e sempre inteiramente desejável acima de todas as coisas por toda a eternidade” (RegNB, 23, 27-34).
Parte II de III
Frei Adriano Cézar de Oliveira, OFM
[1] Carta Encíclica dos Ministros Gerais da Família Franciscana. Sempre levava Jesus nos ombros. Trad. Frei Silvério Costella. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 20.
[2] Idem, p. 21.
[3] ibidem p. 23.
Fonte: http://www.ofmscj.com.br/?p=1720