Religiões de matriz africana e cristianismo: um diálogo possível?
15/11/2015
Atraído por “mundos diferentes do seu”, o teólogo Volney J. Berkenbrock mergulhou na tradição religiosa de matriz africana para entender, a partir do Candomblé, essa cosmovisão do sagrado e que relações são possíveis de serem estabelecidas com o catolicismo. “Qual resposta de sentido encontra quem faz a experiência dos Orixás e em que medida o cristianismo pode dialogar com isto. Este tema serviu não apenas para o doutorado, mas para nortear minhas pesquisas até hoje: a religião dos Orixás como um sistema de sentido, de compreensão da existência e, sobretudo, de respostas às questões do ser humano. É uma temática de pesquisa e curiosidade que nunca se acabaram”, explica.
Ao longo da entrevista concedida por e-mail à IHU On-line, Berkenbrock fala sobre essa investigação, que foi intitulada A experiência dos Orixás e desenvolvida durante seu curso de doutorado em Teologia, mas que, como ele menciona, tornou-se um marco que continua orientando seu olhar de pesquisador a respeito da temática das religiões.
Além das principais características da experiência religiosa do Candomblé, o teólogo aborda a situação da identidade do católico a partir do diálogo com as religiões de matriz africana, não só diante das diferenças teológicas, mas também perante o contexto social e histórico que cercam as tradições religiosas. Ainda, traz o tema do sincretismo religioso, um modo peculiar do brasileiro de se relacionar com o sagrado e transitar pelo cenário multicultural do país, onde as diferentes tradições religiosas, como o catolicismo e o Candomblé, se afetam e constroem-se reciprocamente.
“Entendo que o sincretismo é um processo permanente de diálogo, parte da dinâmica cultural. Assim, dentro dele, há elementos que são interessantes numa análise. Um deles é justamente esta mútua influência. Ao falarmos de sincretismo no Brasil muitas vezes se pensa logo nas religiões afro-brasileiras, como se fossem somente elas passíveis de serem sincretizadas; fazendo uma análise mais apurada se pode perceber que — mesmo estando em condição social muito adversa — as compreensões religiosas de matriz africana também deixaram marcas em tradições cristãs”, aponta.
Volney J. Berkenbrock é frei franciscano e doutor em Teologia pela Faculdade de Teologia Católica da Universidade Federal de Bonn, Alemanha, título que obteve com a tese A experiência dos Orixás (Petrópolis: Vozes, 1998), trabalho publicado em 1995 na Alemanha (Die Erfahrung der Orixás. Bonn: Verlag N. Borengaesser, 1995) e em 1998 no Brasil. Atualmente é professor do programa de Pós-graduação em Ciência da Religião na Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – De onde partiu seu interesse pelas religiões de matriz africana? Quais foram os objetivos de sua pesquisa? Por que a escolha do Candomblé especificamente?
Volney J. Berkenbrock – O meu interesse pelas religiões de matriz africana começou de forma um tanto casual. Quando fazia a faculdade de Teologia, o professor da disciplina chamada Sociologia da Religião nos deu uma tarefa: visitar algum ritual de uma religião que não fosse de tradição cristã e tentar descrever o que ali tínhamos visto e o que havíamos entendido. Eu, como outros colegas de curso, fui procurar alguma casa na linha do que o professor tinha pedido. Alguém do grupo sabia que não muito longe de onde morávamos havia um templo religioso que não era cristão. E tivemos a informação de que haveria ritual numa sexta-feira. Para lá nos dirigimos: Tenda Espírita de Oxóssi, assim chamava-se a casa.
Eu nunca havia entrado num templo religioso que não fosse cristão e nunca havia participado de qualquer ritual religioso onde Jesus Cristo e a Bíblia não fossem uma referência. Tudo ali naquele templo foi novidade para mim: a organização do espaço, a defumação, os símbolos, as cores, a música, a dança, as consultas, as entidades… Fiquei vendo aquele ritual, sem entender praticamente nada. Disseram-nos que Vovó Luiza é que estava presente. Um dos membros do grupo, mais corajoso um pouco, foi fazer uma consulta. Nós outros só observávamos (e certamente éramos observados). Terminado o ritual, como não havíamos entendido quase nada, perguntamos se alguém poderia nos explicar algo, pois precisávamos apresentar em aula o relato da visita. Aquela senhorinha — Vovó Luiza — dispôs-se a responder nossas perguntas. E ali ficou um bom tempo tentando nos explicar o que significava cada coisa, bem como os momentos do ritual.
Para mim abriu-se um novo mundo: uma realidade da qual nunca tinha tomado conhecimento, mas que tinha uma lógica, uma compreensão, uma organização. E muitas pessoas tinham ido ao ritual — para se consultar — dado que era uma casa relativamente grande. Tomado por uma curiosidade que sempre me foi natural para quase tudo, pensei comigo: estas pessoas todas que aqui estão não são loucas; elas devem encontrar um sentido nisto tudo; elas devem encontrar aqui respostas para o que buscam. Este foi o ponto de partida: uma curiosidade enorme por entender o que ali acontecia, qual era a lógica que regia aquele mundo, qual resposta de sentido encontravam as pessoas. Saí daquela visita com o propósito de tentar entender isto. Depois da visita, procurei os livros da biblioteca sobre o assunto. Li avidamente diversas obras. Comecei a perceber que aquele mundo era muito mais amplo e complexo do que eu inicialmente imaginara. Das leituras comecei a entender que havia, por exemplo, Umbanda e Candomblé; que macumba era uma palavra mais pejorativa que descritiva; que Vovó Luiza não era o nome da senhorinha que nos atendeu, mas sim o nome da entidade que ela recebera no dia do ritual; que a casa que visitamos era um templo da Umbanda etc.
Num primeiro momento, diria que meu interesse pelas religiões de matriz africana no Brasil foi entender como funciona aquele mundo. Como eu não tinha tido anteriormente qualquer contato com alguma religião desta tradição, quer positivo, quer negativo, confesso que não tive qualquer medo do contato. Para mim tudo era novidade. E posso dizer que muito aprendi e achei tudo muito interessante.
Terminada já a graduação em Teologia e estando eu alguns anos depois às voltas com uma temática para o doutorado — na Universidade de Bonn, Alemanha — participei de um seminário dirigido por meu orientador (Hans Waldenfels) com a temática: O espírito nas religiões não cristãs. Resolvi então buscar meus conhecimentos antigos sobre as religiões de matriz africana no Brasil e tentar apresentar no seminário o tema do espírito (entidades, orixás, guias) nestas religiões. Meu orientador achou a temática interessante e me incentivou a mudar a temática inicial do doutorado. Eu intentava pesquisar um tema dentro da Pneumatologia [1]. Meu orientador me disse: isto muitos já fizeram; faça algo ligado à temática do Brasil, alguma coisa que seja interessante para a Igreja do Brasil. Achei a ideia tentadora e conversei com Leonardo Boff [2], meu antigo professor de Teologia Sistemática e que me havia incentivado a continuar os estudos. Ele achou a temática muito boa e assim decidi mudar o rumo da pesquisa de doutorado que estava apenas iniciando.
Faltava ainda especificar mais a busca e, após mais leituras, a pergunta inicial me veio novamente à mente: que respostas encontram as pessoas que buscam estas religiões? Era necessário estreitar a temática e me decidi então pelo Candomblé. Esta decisão deveu-se muito mais ao fato de ter já lido muito material sobre esta religião do que — por exclusão — de outra tradição. Focando ainda mais a pesquisa, cheguei ao tema específico de meu doutorado: a experiência religiosa no Candomblé. Ou seja, qual resposta de sentido encontra quem faz a experiência dos Orixás e em que medida o cristianismo pode dialogar com isto. O tema serviu não apenas para o doutorado, mas para nortear minhas pesquisas até hoje: a religião dos Orixás como um sistema de sentido, de compreensão da existência e, sobretudo, de respostas às questões do ser humano. É uma temática de pesquisa e curiosidade que nunca se acabaram.
IHU On-Line – De que forma a perspectiva da Teologia da Libertação se insere em sua pesquisa sobre o Candomblé? Por que a escolha desta abordagem teológica neste trabalho?
Volney J. Berkenbrock – Fiz minha graduação em Teologia na década de 1980, período forte da Teologia da Libertação [3]. Um dos pontos altos desta teologia era o seu famoso método, muito bem estudado e apresentado por outro professor que tive, Clodovis Boff. Nele, a análise da realidade é o ponto de partida. Para mim, esta metodologia encaixou-se como uma luva: como analisar esta realidade religiosa do Candomblé? Eu poderia, pois, utilizar um método que já me era familiar e aplicá-lo ao meu objeto de pesquisa. Ao mesmo tempo, toda a linguagem da libertação que estivera presente na teologia e aplicada geralmente à realidade social, política, econômica, eclesial, ganhava para mim outro elemento. Era sabido que as pessoas destas tradições religiosas de matriz africana eram oprimidas e discriminadas por muitos aspectos. Mas os discursos sobre como pensar num processo de libertação para estas pessoas abrangiam quase exclusivamente a questão étnico-racial, econômica, política e eclesial. E muito pouco a questão religiosa (e teológica) destas pessoas.
IHU On-Line – De que maneira a diversidade cultural é abordada pela Teologia, sobretudo no contexto latino-americano?
Volney J. Berkenbrock – Ao avançar em meus estudos sobre o Candomblé e como a teologia cristã — inclusive aTeologia da Libertação — interpretava esta realidade, comecei a notar algo que para mim se tornou cada vez mais um problema bastante complexo. A teologia cristã, na maioria dos casos, ao abordar a diversidade cultural a entende mais como diversidade de costumes, de línguas, de expressões. Mas se pensa quase sempre numa teologia cristã subjacente a esta diversidade. Mesmo a Teologia da Libertação, considerada avançada em sua época, continuava a pensar as questões políticas, sociais, econômicas sempre a partir da matriz cristã. A questão cultural era ainda incipiente para a Teologia da Libertação. Passados cerca de 30 anos desde que terminei minha formação teológica básica, vejo que muito se avançou nesta questão da diversidade cultural dentro da teologia, sobretudo com a chamadateologia pluralista das religiões.
IHU On-Line – Em sua pesquisa o senhor afirma que o reconhecimento da alteridade do outro (nesse caso os fiéis das religiões de matriz africana) interpela a identidade cristã. Por quê? De que forma acontece essa interpelação e que implicações pode trazer para a identidade católica especificamente?
Volney J. Berkenbrock – Quando nos aproximamos da realidade das religiões de matriz africana no Brasil, começam a aparecer diversos aspectos para o cristianismo que interpelam a sua identidade. Há um aspecto que é a questão histórica ligada à escravidão: como pôde acontecer que cristãos escravizaram pessoas, milhões de pessoas, durante séculos? Isto é um tipo de interpelação: a distância entre o proposto e o vivido no cristianismo. Enfrentar a questão do papel de cristãos na história da constituição da América Latina é muito importante. Não se trata simplesmente de revolver o passado, mas sim de — a partir do que ocorreu no passado — pensar nesta relação entre fé cristã e forma de vida para os tempos em que vivemos. Esta interpelação pode ser vista tanto no sentido de vivência de cada fiel, como também para a instituição cristã. Trata-se aqui da necessidade da instituição de estar atenta sempre novamente à proposta do Evangelho. Especificamente, para o catolicismo como instituição, é preciso haver a constante preocupação em suas estruturas organizacionais por espelhar a identidade cristã, quer dizer, o seguimento da proposta de amor, de serviço, de misericórdia de Jesus Cristo. Este é, pois, um tipo de interpelação que o contato com as religiões de matriz africana no Brasil faz à identidade cristã. Esta interpelação aponta para um desafio aos cristãos: viver cristãmente.
Outra interpelação à identidade cristã é de natureza mais profunda e radical. O cristianismo se propõe a ser uma resposta de sentido a todo ser humano de uma forma ampla e uma proposta de caminho para se chegar à realização deste sentido. Sem aprofundar muito aqui a questão, percebo que uma compreensão mais aprofundada dos sistemas religiosos de matriz africana, que aportaram em nosso país pela escravidão e aqui se reorganizaram, mostra que eles apresentam igualmente tanto uma proposta de sentido como uma oferta de caminho para se chegar à realização. Ou seja, estes sistemas religiosos se apresentam com a mesma proposta de totalidade de sentido que tem o cristianismo. Esta constatação interpela a identidade cristã no sentido então de — minimamente — levar em consideração não ser nesta realidade a única proposta de sentido religioso. Mas a maior interpelação à identidade cristã decorrente desta constatação está no fato de terem sido as propostas religiosas de sentido destas tradições aquelas que responderam à busca pelo sentido de milhares de pessoas jogadas neste mundo de escravizados ou descendentes de escravos. Foi nestas tradições religiosas que muitas destas pessoas encontraram acolhida e caminho de sentido.
Não basta aos cristãos, frente a esta constatação, dizer que as pessoas da época, que escravizaram, não viveram o cristianismo de uma forma verdadeira. Seria uma saída pela tangente. É preciso levar em consideração o fato de haver uma proposta de sentido paralela à do cristianismo e que foi e é realidade para milhares de pessoas. Diante disto, a identidade cristã precisa novamente voltar à questão posta acima: o problema da distância entre o proposto e o vivido. Somente através do vivido é que a identidade cristã pode ser verificada. E é esta verificação (pela vida) o desafio que os outros sistemas religiosos colocam à identidade cristã.
IHU On-Line – Como o contexto sócio-histórico é abordado pela Teologia no estudo das religiões de matriz africana, sobretudo nos cenários brasileiro e latino-americano, marcados pela violência advinda dos processos de colonização e escravidão? De que forma são tratados a presença e o papel da Igreja Católica nesse âmbito? Qual era esse papel?
Volney J. Berkenbrock – Há aqui duas questões que queria distinguir: uma delas é o papel que a Igreja católica — em todos os seus níveis — desempenhou na história da escravidão. Não foi um papel dos mais gloriosos. Pelo contrário, as vozes advindas da Igreja católica contra a escravização de africanos e contra tudo o que isto envolvia foram poucas, foram fracas e foram exceções. É preciso então trabalhar esta questão histórica: por um lado entendê-la e por outro seguir o caminho da reparação, da restituição. Isto dado que o passado não pode mais ser mudado. Outra questão, advinda da análise do papel da Igreja católica na escravidão, é o aprendizado que disto se pode retirar para que a Igreja católica e todos os seus organismos estejam atentos a questões atuais, para nelas não desempenharem papéis que em um futuro não muito distante venham a ser percebidos não apenas como equívocos históricos, mas como atitudes contra a proposta do Evangelho.
Nesta linha, há uma lista enorme de questões a serem trabalhadas, como, por exemplo, o papel e a importância damulher na Igreja, o papel da Igreja na questão ecológica, a complexa questão de gênero, a situação das regras para os sacramentos etc. Não estou apontando aqui nenhuma sugestão concreta para estas questões. Estou apenas apontando alguns temas onde é necessária uma atenção maior para que no futuro não se tenha que reconhecer que teria sido possível fazer diferente. O papa Francisco, aliás, tem sido uma voz muito corajosa nesta linha. Tem pedido constantemente uma Igreja misericordiosa, uma Igreja em saída, uma Igreja da alegria do Evangelho e não somente guardiã das estruturas antigas.
IHU On-Line – De que forma seu trabalho se insere em um contexto amplo da compreensão que a Igreja Católica tem sobre as outras religiões e o diálogo inter-religioso?
Volney J. Berkenbrock – Vivemos hoje numa situação cultural onde o pluralismo é cada vez mais a regra. Tudo é plural, ou quase tudo. E isto também em termos de religião: há muitas possibilidades. Consequência disto é que há propostas que podem ser escolhidas. Ter alguma religião (ou não ter) é uma questão de opção. Em princípio, qualquer pessoa pode fazer sua opção religiosa. Vemos isto como um direito. Esta é a forma de pensamento e sentimento que temos hoje. Mas isto coloca para as religiões duas questões muito importantes: A partir de qual ponto de vista as pessoas escolhem uma religião? E como estas opções religiosas (suas organizações) vão conviver?
Quanto à primeira questão, penso que cada vez menos a opção religiosa se dá pela proposta de doxa (o que tal religião apresenta como verdade) e cada vez mais a opção religiosa é feita a partir da proposta de práxis (qual proposta de vida tem esta religião). Para a Igreja católica, não vejo isto como um problema, mas como uma grande chance: apresentar-se cada vez mais como uma proposta de vida. Na segunda questão está para mim o grande desafio de nosso tempo: como conviver. Não podemos mais sonhar com um mundo unitário, onde todos vão se entender sobre uma série de questões. Vivemos num mundo plural, onde a diversidade será a regra (pelo menos nos próximos tempos). E sendo então assim, o desafio é conviver com a diversidade. Digo isto não apenas em termos religiosos. Também em termos políticos, culturais, de costumes etc. se coloca o mesmo desafio da convivência. Nesta linha, no meu contato de mais de 30 anos com as religiões de matriz africana no Brasil aprendi algo sobre a convivência. Depois deste tempo, não vejo mais estas casas como lugar de pesquisas, mas sim como casas de amigos. Aprendemos a conviver em muitos aspectos: participamos em conjunto de muitos momentos, tristes ou alegres. Assim muitas vezes sou convidado para festas de família, de aniversário, para um churrasco e também para as festas religiosas.
Marcou-me muito o que ocorreu quando do falecimento de uma filha de santo duma casa de Candomblé. A família da falecida era de tradição católica e morava no interior; a pessoa falecida morava na capital e tinha se iniciado no Candomblé. Nos momentos antes do sepultamento, de forma espontânea e em sintonia com a Mãe-de-santo, eu conduzi as orações de tradição católica e ela conduziu o cortejo com a procissão e a cantiga do Candomblé. Foi um momento de convivência: unidos pela dor da perda de uma pessoa amiga, unidos pela diversidade da fé.
IHU On-Line – Quais são as principais diferenças e semelhanças entre as concepções teológicas católicas e do Candomblé? Que contribuições essas religiões podem trazer uma à outra já que ambas são cultuadas intensamente no Brasil gerando inclusive o fenômeno da dupla militância, conforme o senhor pontua?
Volney J. Berkenbrock – Tanto o sistema religioso do cristianismo católico quanto do Candomblé são muito complexos e amplos para se poder apontar de maneira rápida semelhanças e diferenças. Queria aqui acenar apenas para um elemento: na tradição cristã existe a compreensão de bem e mal. No Candomblé não existe esta compreensão, mas sim a de equilíbrio: as coisas estão equilibradas ou desequilibradas. Na tradição católica, para o mal (o pecado), existe o perdão. No Candomblé algo estaria desequilibrado e exigiria alguma ação para recompor o equilíbrio. São concepções diferentes que geram atitudes diferentes. Enquanto se está pensando em fiéis desta ou daquela tradição, isto fica mais fácil de perceber: concepções diferentes e atitudes religiosas diferentes.
Mas temos entre nós uma particularidade chamada às vezes de dupla militância. Como fazer então? Aí a pergunta pelas diferenças já se torna mais complexa. E é especialmente mais complexa pelo fato de que a expressão dupla militância é advinda do modo de pensar cristão. Para o modo de pensar próprio do Candomblé não há aqui qualquer duplicidade, pois se tem ali uma forma de pensar inclusiva. Não há duas coisas: as duas atitudes fazem parte de uma única realidade, assim o compreendem. Levei anos para perceber que de fato um membro da tradição do Candomblé que frequenta também a tradição católica não sente isto como uma duplicidade (e muito menos como contradição), mas como uma única realidade. Esta forma de pensar inclusiva é uma característica marcante do povo Iorubano, que está na raiz do Candomblé.
IHU On-Line – De que maneira o sincretismo religioso se construiu ao longo da história do Brasil, persistindo contemporaneamente? De que modo o senhor avalia essa prática?
Volney J. Berkenbrock – A temática do sincretismo nas religiões de matriz africana no Brasil é um dos aspectos muito estudados e posto em evidência. Muito se quis fazer para entender como surgiu ou se formou o sincretismo. Hoje tendo a pensar o sincretismo num âmbito bem maior que é o do diálogo intercultural. É um fenômeno que ocorre em praticamente toda a história conhecida das religiões. Não há religião que tenha nascido pura de qualquer influência, nem que tenha se mantido pura de qualquer influência, nem que tenha chegado a um estado que não mais vai ser influenciada por outras tradições religiosas.
O próprio cristianismo é um exemplo claro de um grande sincretismo, formado de raízes judaicas (que tinham muitas influências egípcias, babilônicas, persas), por influências gregas e romanas, por influências germânicas e assim por diante. Com as divisões institucionais dentro do cristianismo em diversas igrejas, estes processos sincréticos se tornam ainda mais claros: ora esta, ora aquela influência se torna mais visível. Assim, o processo de formação das religiões afro-brasileiras também é perpassado por muitos sincretismos. Eu os vejo não como mistura ou — o que seria pior ainda — como degeneração religiosa, mas sim como o resultado de um diálogo cultural sempre presente na história das religiões. O que geralmente chamamos de sincretismo é, a meu modo de ver, um grande diálogo inter-religioso. Constituído não por vias de encontros para este fim, mas por vias da dinâmica cultural.
IHU On-Line – O que o sincretismo religioso revela sobre o modo dos brasileiros de viverem a experiência religiosa? E sobre o contexto sócio-histórico?
Volney J. Berkenbrock – Percebendo o sincretismo como um processo inerente à dinâmica cultural, é interessante perguntar-se quais mecanismos o conduziram. Como algumas coisas se formaram de uma maneira e outras de outra? Penso que um dos elementos importantes para se entender o caminho do processo dialogal do sincretismo é o que chamaria de lógica do objetivo. As coisas se juntam, se interinfluenciam mais quando há objetivos comuns que são visados. Assim, a busca da experiência religiosa pode ser entendida como um elemento impulsionador do sincretismo. Mas este é apenas um elemento na grande teia que o sincretismo vai permanentemente tecendo. Nela muitos são os coloridos que fazem o todo sempre mais belo.
IHU On-Line – Em sua pesquisa o senhor afirma que o processo de sincretismo não teve e não tem uma mão única, ou seja, influenciou as religiões de matriz africana e o catolicismo mutuamente. Que elementos evidenciam essa afetação mútua nos campos religiosos afrodescendente e católico? O que nos revelam os processos de “desafricanização” dos negros e mestiços e “reafricanização” da sociedade e cultura brasileira?
Volney J. Berkenbrock – Entendo que o sincretismo é um processo permanente de diálogo, parte da dinâmica cultural. Assim, dentro dele, há elementos que são interessantes numa análise. Um deles é justamente esta mútua influência. Ao falarmos de sincretismo no Brasil muitas vezes se pensa logo nas religiões afro-brasileiras, como se fossem somente elas passíveis de serem sincretizadas; fazendo uma análise mais apurada se pode perceber que — mesmo estando em condição social muito adversa — as compreensões religiosas de matriz africana também deixaram marcas em tradições cristãs.
Em termos de catolicismo, por exemplo, uma marca interessante é a importância que se dá à missa de 7º dia (e 30º). Na tradição do Candomblé, há um ritual fúnebre feito dias ou semanas depois do sepultamento, que é uma despedida do falecido da comunidade. Na tradição católica existe a missa de 7º dia (ou 30º). É uma tradição antiga. Mas em diversos lugares do Brasil ela tomou uma importância muito grande. É uma espécie de momento de despedida do grupo de amigos, uma espécie de homenagem-despedida. Nisto, penso, há influência da tradição do Candomblé.
Esta influência não está apenas no catolicismo. Se formos para o universo das igrejas pentecostais, por exemplo, há ali influências muito maiores como momentos de transe ou de expressão corporal. Outro elemento de análise interessante neste processo de diálogo intercultural é o que tem ocorrido entre o Brasil e a África negra. Este tem se intensificado nos últimos tempos e gera dentro das tradições religiosas afro-brasileiras a chamada reafricanização, ou seja, um processo de influência africana novamente sobre os descendentes destas tradições no Brasil.
IHU On-Line – Quem é você?
Volney J. Berkenbrock – Sou um franciscano que continua encantado com a pluralidade religiosa. Vejo esta não como um problema, mas como uma imensa riqueza de formas de pensar e viver. Todas tentando desvendar o mistério da vida. E isto me leva a crer cada vez mais na grandiosidade do mistério divino e pensar/sentir que somos, cada pessoa ou cada tradição religiosa, guardiães de pedaços deste imenso tesouro. E que cada qual cuide o melhor possível de sua parte, mas também admire com maravilhamento as partes cuidadas pelos outros.
Entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – www.ihu.unisinos.br
Notas:
[1] Pneumatologia: Pneuma é a palavra grega para “respiração”, que metaforicamente descreve um ser de espírito ou influência. NaTeologia Cristã, pneumatologia se refere ao estudo do Espírito Santo. (Nota da IHU On-Line)
[2] Leonardo Boff (1938): teólogo brasileiro, autor de mais de 60 livros nas áreas de teologia, espiritualidade, filosofia, antropologia e mística. Boff escreveu um depoimento sobre as razões que ainda lhe motivam a ser cristão, publicado na edição especial de Natal da IHU On-Line, número 209, de 18-12-2006, disponível em http://bit.ly/iBjvZq, e concedeu uma entrevista sobre a Teologia da Libertação na IHU On-Line número 214, de 02-04-2007, disponível em http://bit.ly/kaibZx. Na edição 238, de 01-10-2007, intitulada Francisco. O santo, concedeu a entrevista A ecologia exterior e a ecologia interior. Francisco, uma síntese feliz, disponível em http://bit.ly/km44R2. Sua entrevista mais recente à IHU On-Line intitula-se Ecologia integral. A grande novidade da Laudato Si’. “Nem a ONU produziu um texto desta natureza” e está disponível em http://bit.ly/1lk6J6U. (Nota da IHU On-Line
[3] Teologia da Libertação: escola teológica desenvolvida depois do Concílio Vaticano II. Surge na América Latina, a partir da opção pelos pobres, e se espalha por todo o mundo. O teólogo peruano Gustavo Gutiérrez é um dos primeiros que propõe esta teologia. A Teologia da Libertação tem um impacto decisivo em muitos países do mundo. Sobre o tema confira a edição 214 da IHU On-Line, de 02-04-2007, intitulada Teologia da libertação, disponível para download em http://bit.ly/bsMG96.Leia, também, a edição 404 da revista IHU On-Line, de 05-10-2012, intitulada Congresso Continental de Teologia. Concílio Vaticano II e Teologia da Libertação em debate, disponível emhttp://bit.ly/SSYVTO. (Nota da IHU On-Line)