O desejo de sempre recomeçar
Frei Almir Guimarães
Francisco, desde que foi tocado pelo alto, começou a trilhar caminhos novos. Foi sendo transformado em todo o seu ser. E que ser! Os relatos de Celano e dos Três Companheiros permitem que sigamos, ou ao menos vislumbremos, o radiante processo de transformação operado numa das mais belas almas que a humanidade já conheceu.
No começo lenta, depois mais rapidamente, e assim assistimos um “ataque” estranho, misterioso em seu íntimo. Um vazio e perturbações no mais profundo de seu ser. Todo seu ser se mostrava em busca, seu interior inquieto. Refaz a experiência do coração irrequieto de Agostinho.
Vai mergulhar na meditação. Por vezes mostra-se tenso na escuta de si mesmo a tal ponto que não consegue dar um passo, dizer uma palavra, ouvir um som. Sua sensibilidade volta-se para além de si mesmo, para o desconhecido.
De repente, nesse vazio acontecem “visitações” interiores do Senhor que plenificam e o mergulham num encantamento diante do vigor, da força daquele que lhe fala interiormente. Ele é como que projetado para fora de si mesmo sob o efeito da alegria, todo recolhido em si mesmo – até que seja, ou melhor, até que Deus vença-o inteiramente. Luta parecida com a de Jacó com o anjo.
No mesmo instante, sua alma é tomada de angústia e seu corpo de dor. A alegria lhe é tirada.
Com esta profundidade realiza Francisco as exigências fundamentais do Novo Testamento, ou seja, o convite à conversão ( = metanoia). Pode-se dizer que nele realiza-se uma nova criação. Segundo seus biógrafos, ele é o homem novo, homem do século futuro. Não entendia o que estava se passando com ele. Esse sentimento ele tenta exprimir no final de sua vida nas primeiras linhas de seu Testamento.
“Deus, nosso Senhor, quis dar a sua graça a mim, o irmão Francisco, para que eu começasse a fazer penitência; porque, quando eu estava em pecados, parecia-me muito amargo dar com os olhos em leprosos; mas o Senhor mesmo um dia, me conduziu ao meio deles e com eles usei de misericórdia. E ao afastar-me deles, o que antes me parecera amargo, converteu-se para mim em doçura da alma e do corpo; e em seguida, passado um pouco de tempo, saí do mundo”
Necessário se faz compreender o sentido exato dos termos e não ficarmos no que as palavras têm de aparente. O que significa efetivamente “metamorfose do ser”? O que significa preferir o que é amargo ao que é doce, que do amargo da renúncia floresce plena e insuspeitada alegria; que o amargo torna-se verdadeiramente doce, sem perder seu amargor. O sofrimento subsiste. Estamos diante da mais profunda interpenetração do júbilo pela salvação no Senhor (que Francisco vive) e por outro lado, o amargo sofrimento.
A autenticidade do heroísmo de uma transformação interior não se comprova simplesmente pelo ardor de um momento, mas sim pela perseverança, na incansável retomada do começo.
É o que vemos realizado de maneira extraordinária em São Francisco e, diga-se, de um modo admirável. Nos últimos meses de sua vida, depois de ter realizado tantas conquistas, gravemente enfermo, formulava ainda esse desejo: “Irmãos, vamos começar a servir a Deus agora, porque até o momento pouco ou nada fizemos pelo Senhor”. Celano continua dizendo que ele era infatigável em seu perpétuo desejo de renovação na busca da santidade. Esta sempre disposto a recomeçar(cf 1Celano 103)
Inspirado em “Francisco de Assis, o santo incomparável”, de Joseph Lortz