Nossa regra é nossa vida
Revendo os passos dados
Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM (*)
A Regra e a vida dos franciscanos seculares é esta: observar o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo o exemplo de São Francisco de Assis, que fez do Cristo o inspirador e centro de sua vida com Deus e com os homens (Regra n.4).
E depois que o Senhor me deu irmãos, ninguém me mostrou o que eu devia fazer, mas o Altíssimo mesmo me revelou que eu devia viver segundo a forma do Santo Evangelho (Testamento 14).
Introdução
De 25 a 27 de março de 2011, os irmãos e irmãs da Ordem Franciscana Secular estarão reunidos em Capítulo Avaliativo na cidade do Rio de Janeiro. Franciscanos seculares de todo o país se deslocarão para viverem juntos a experiência do Capítulo. Foi escolhido como tema do encontro, assunto importante para a vida dos seculares: Nossa Regra é nossa vida. Os terceiros franciscanos dispõem de um texto “inspiracional” de sua caminhada e que se traduz na Regra aprovada por Paulo VI, em 1978. Necessário se faz voltar sempre a este documento básico. Normal que num capítulo avaliativo sejam examinados os passos dados nos últimos tempos e que, retomando o fôlego, os irmãos possam olhar com coragem para a meta que está diante de seus olhos. O que queremos? Para onde vamos? O que deu certo? O que precisa ser melhorado? Momento de revisão e de avaliação.
1. Viver é uma graça. O Senhor nos tirou do não existir, teceu as fibras de nosso corpo no seio de nossa mãe e tivemos a ventura de conhecer o mundo, as pessoas, a vida e fazer parte deste cortejo de homens e mulheres que percorrem os caminhos do mundo. Sentimo-nos, literalmente, peregrinos e forasteiros, na busca da plena realização de nossos dias. Sentimo-nos chamados a viver intensamente e não passar em brancas nuvens. Muitos de nós, no seio da família e da primeira infância, junto com o leite e o pão, o carinho e o afeto, viemos a encontrar a adorável figura de Jesus, o Cristo ressuscitado. Somos discípulos de Cristo e essa característica faz parte de nossa identidade. Não cansamos de dizer a nós mesmos que somos cristãos e que precisamos viver à altura. Hoje, a Igreja nos pede que vivamos intensamente o seguimento do Senhor, no sentido de sermos discípulos missionários. Tivemos ainda a graça de conhecer um caminho todo especial. Quisemos ser cristãos à maneira de Francisco e de Clara. Por uma graça toda particular, no seio da família franciscana, os seculares constituem a presença do carisma no meio do mundo, na organização de uma sociedade que seja prefiguração do reino. Somos franciscanos seculares e selamos esta decisão com a profissão solene que emitimos de viver a busca da santidade à maneira de Francisco em nosso estado secular. E vamos fazendo nossa caminhada. O Conselho Nacional acompanha esta caminhada em todo o país.
2. Estamos para realizar um capítulo de âmbito nacional, momento de bênção, de diálogo, de graça. Não se trata de uma reunião formal e fria. Mas um momento importante para o amanhã da vida dos franciscanos seculares. Éloi Leclerc, comentando a importância dos capítulos no tempo de São Francisco, assim se exprime: “Uma ou duas vezes por ano todos os frades se reúnem em capítulo. Esses encontros desempenham um papel importantíssimo na vida da fraternidade. Os capítulos não são somente um tempo forte durante o qual os irmãos, na alegria do reencontro, se reabastecem na oração e no louvor, mas também ocasião de tomada de consciência comum: todos e cada um se sentem solidários e responsáveis pela vida do grupo e por sua missão no mundo (…). Nessas assembleias democráticas, onde reina a grande liberdade dos filhos de Deus, os irmãos discutem seus problemas, comunicam suas experiências e escolhem seus responsáveis. Elaboram, redigem e promulgam leis, definem orientações e tomam grandes decisões que nortearão o futuro da comunidade” (em Francisco de Assis. O Retorno ao Evangelho, p. 60-61). Quais as luzes e as sombras que levaremos ao Capítulo? O tempo é de renovação e de reinvenção. O que propomos concretamente para o revigoramento de nossa Ordem no Brasil? Que análise fazemos de nossas regiões e áreas? O que acontece nas visitas fraterno-pastorais? Qual a qualidade de nossos capítulos em todos os níveis?
3. Vivemos no mundo, vivemos na Igreja, vivemos na Ordem, vivemos transformações. Não é aqui o lugar de elencar todos os desafios e preocupações que habitam em nós, franciscanos, na Igreja e no mundo. Nesse contexto é que a Regra é nossa vida. Nada está terminado. Temos que recomeçar, como dizia Francisco, porque até aqui pouco ou nada fizemos. Há questões que precisam ser respondidas. Há sombras: individualismo exacerbado, indiferença para com o próximo, exclusão, marginalização, drogas, esvaziamento de nossas paróquias, proliferação de seitas, ministros da Igreja nem sempre cheios de entusiasmo, envelhecimento dos membros de nossa Ordem, dificuldades em alimentar a fé das pessoas, falta de um atendimento sistemático aos jovens, desmotivação, leigos que não conseguem chegar a uma maturidade humana e cristã, um número razoável de irmãos e irmãs que pedem “afastamento”. Por vezes, uma pergunta nos trabalha: Até que ponto nossa Ordem consegue exprimir-se? Que significado têm nossas fraternidades franciscanas nas paróquias e dioceses?
4. Algumas convicções e luzes nos estimulam e nos fazem pessoas esperançosas. Vemos surgir aqui e ali movimentos de renovação evangélica. Há fraternidades franciscanas promissoras. Francisco de Assis continua atraindo. Nesse contexto nos lembramos da Regra que é nossa vida. Precisamos nos deter em seu texto que é alimento para nossa vocação e a vivência da Regra será nossa contribuição para o surgimento de um mundo renovado. Não podemos desvincular a Regra de Paulo VI à vivência profunda do Evangelho. Quando um Capítulo escolhe como tema Nossa Regra é nossa vida está apontando para um sério retorno ao Evangelho. Num mundo burocratizado, diante de expressões religiosas fixistas e imóveis, diante de um mundo que parece levar as pessoas a terem como sentido de sua vida o viver o presente, o usufruir das coisas, o esquecimento do leproso, nós temos a obrigação de viver a Regra do Evangelho. Não podemos deixar de dizer que a Regra ainda não foi assimilada pela Ordem. Precisamos sempre de novo mergulhar em suas riquezas para chegar a viver uma identidade franciscana secular.
5. Os franciscanos seculares são leigos que buscam a santidade. Não querem ser cristãos de repetição de gestos e ritos, orações e ações nem sempre nascidas no fundo do coração. Os que buscam nossas fileiras são pessoas (ou deveriam ser) apaixonadas pelo fogo do Evangelho. Esta paixão se traduz na vivência do duplo amor: amar o Senhor e os irmãos. Na vida de todos os dias, na família, na fraternidade franciscana, no trabalho dedicado à implantação, chamado Reino, os franciscanos seculares, “impulsionados pelo Espírito a atingir a perfeição da caridade no próprio estado secular, são empenhados pela Profissão a viver o Evangelho à maneira de Francisco e mediante esta Regra confirmada pela Igreja” (n.2). Sempre temos saudades do Evangelho. O Evangelho nos “picou” e deixou em nós seu “vírus”.
6. Querer refletir sobre o tema da Regra que é nossa vida forçosamente nos leva a reencontrar, redescobrir a força do Evangelho. O peso, o conservadorismo das instituições, uma tradição com t minúsculo, o espírito das aparências, o dogmatismo frio talvez tenham feito com que as pessoas se afastassem da força do Evangelho. Um autor franciscano afirma que a Palavra é dita a partir dos púlpitos e ambãos, em talkshows e reuniões religiosas com forte presença do povo. Não basta isso. Na verdade, Jesus é a boa nova, o Evangelho. Faz bem ler e reler os Atos dos Apóstolos, as epístolas de Paulo onde o tudo é perpassado pelo fogo do Evangelho. Nossa Igreja, depois de Constantino, sempre teve a tentação de se identificar com os grandes e com o poder. Francisco de Assis redescobriu o evangelho das grutas, da simplicidade, da pobreza, do amor que precisa ser amado, do leproso que necessita de cuidados.
7. Um documento antigo da Ordem Franciscana Secular na França se compraz em colocar em relevo o viver o Evangelho. Viver o Evangelho é viver a Regra. “Como São Francisco, queremos fazer do Evangelho a fonte de nossa vida. A ele nos referimos constantemente. Tal empenho não acontece apenas no começo, mas ao longo de toda a nossa vida, não ocasionalmente, mas o mais frequentemente possível, persuadidos de que nunca esgotaremos a riqueza do Evangelho. Frequentando o Evangelho é a Cristo que queremos acolher e encontrar: o Cristo vivo simplesmente presente no meio dos homens, presente no mundo, nos acontecimentos, na história, o Cristo, rosto humano de Deus, Filho único do Pai e testemunha de seu amor pelos homens; o Cristo tipo acabado do homem, em relação com seu Pai e com os homens; o Cristo, cumprindo e realizando através de tudo o que constitui sua vida a salvação do mundo e a glória do Pai”.
8. A Regra da OFS, feita de pedaços da Escritura e de orientações oficiais da Igreja, contém essencialmente o Evangelho. Por isso, no rosto dos franciscanos aparecerão traços evangélicos: uma vida pessoal e familiar de singeleza e simplicidade, vida de despojamento sem requintes competitivos e posturas que humilham; pessoas que vivem para servir e servem para viver; verdadeiros irmãos de seus irmãos de dentro e de fora, irmão não de discursos, mas de fato; gente laboriosa que trabalha sem perder o espírito da santa oração; pessoas que se alimentam cotidianamente da Palavra e da Eucaristia; pessoas que salpicam com a água do Evangelho tudo o que tocam e fazem, ou seja, seu trabalho pastoral, sua missão de pai e de mãe; pessoas que sabem acolher a cruz e que vivem no meio das provações o espirito da perfeita alegria; pessoas que se achegam dos mais simples e pobres; gente que não existe para si mas para que o amor seja amado. Essa é a nossa vida.
9. Retomamos uma reflexão de Éloi Leclerc. Ele nos fala de um espírito evangélico capaz de fazer cair as barreiras entre os homens. “Qual é esse espírito capaz de destruir os muros da separação e reaproximar os homens? O ponto nevrálgico de toda ação evangélica, como também seu melhor critério de autenticidade será sempre o empenho de mostrar abertamente o que a Boa Nova encerra de mais admirável, talvez até mesmo de “escandaloso” para certos homens “religiosos”: Deus, em seu Filho, quis aproximar-se dos pecadores, dos excluídos, dos condenados. Veio buscar os que estavam perdidos, aproximar-se dos que estavam mais afastados, fazer-se amigo deles, sentar-se à mesa em sinal de reconciliação. Este é o cerne da Boa Nova. Tal mensagem não pode ser mero assunto de um discurso. Não pode ser apenas captada por uma pregação no alto de um púlpito ou de uma tribuna. É percebida através de modos de comportamento e no engajamento de uma existência. Exprime-se na cotidiana sensibilidade e atenção para com as angústias dos homens. Comunica-se através da amizade, qualquer coisa como uma cumplicidade fraterna. É precisamente isto que os contemporâneos descobrem em Francisco. Este homem de Deus nunca se colocava acima de ninguém” (Francisco de Assis. Retorno ao Evangelho, p 54-55).
10. Estamos sempre girando em torno do Evangelho. Nossa vida é nossa regra e nossa regra é o evangelho, de modo muito particular o evangelho dos excluídos, dos sofredores, dos mais abandonados. Não somos uma associação piedosa, mas leigos evangélicos que se aproximam do que é mais frágil. Jean-François Godet Calogeras fala da experiência franciscana fundadora: “Todas as aventuras humanas começam por uma experiência fundadora. A experiência fundadora do movimento franciscano está vinculada aos leprosos. Foi servindo aos leprosos e deles cuidando que Francisco fez a experiência de Deus e da felicidade, experiência que ele descreve no seu Testamento como uma passagem do amargo para o doce. Foi, então, que ele compreendeu que estava na trilha errada aderindo aos princípios da nova Comuna de Assis, cuja paz e felicidade estavam fundadas na apropriação e acumulação de bens materiais, sem levar em conta os que não eram contados, não pertencendo a uma minoria privilegiada. Foi aí que Francisco compreendeu que devia mudar e voltar ao Evangelho, a boa nova proclamada aos pobres. A experiência fundadora de Francisco foi a de que irmãos e irmãs humanos ali estavam e que não podiam ser deixados de lado. Não era justo. Isso era importante para Deus porque Deus estava ali. Para os primeiros franciscanos construir uma vida segundo o Evangelho não queria dizer fugir para longe, mas oferecer uma sociedade alternativa fundada sobre a economia evangélica do serviço e da partilha, nas portas de Assis, no país de Deus”. Sem privilegiar este ou aquele tópico da Regra, talvez se pudesse aqui chamar atenção para algumas orientações fundamentais da Regra que é nossa vida:
11. Como irmãos e irmãs da penitência, em virtude de sua vocação, impulsionados pela dinâmica do Evangelho, conformem seu modo de pensar e de agir ao de Cristo, mediante uma transformação interior que o Evangelho chama de conversão ( cf. Regra n. 7). Trata-se de viver em estado de conversão, acolhimento do perdão, transformar o doce em amargo, aproximar-se daquilo que faz o encanto do Cristo pobre e não querer servir ao próprio ego. Importância do sacramento da reconciliação na vida e no exame constante de nossa consciência.
- No espirito das bem-aventuranças se esforcem para purificar o coração de toda inclinação e avidez de posse e de dominação, como peregrinos e forasteirosa caminho da casa do Pai (cf. Regra 10). Franciscanos leves, caminhando, sempre a caminho, no mundo, com outros…sem peso, sem prosa, sem superioridade.
- Estejam presentes pelo testemunho da própria vida humana, com iniciativas corajosas, pessoais ou comunitárias promovam a justiça com ações concretas (cf. Regra 15). Criarão condições dignas para os mais pequeninos (cf. Regra 13).
- Assim como o próprio Jesus foi o verdadeiro adorador do Pai, façam da oração e da contemplação a alma de seu ser e de seu agir (cf. Regra n.8). Não podemos negligenciar a vida de oração: missa, oficio diário, crescimento na contemplação, no meio do trabalho não perder o espirito da santa devoção e da oração.
12. Assim, os franciscanos sempre sentem saudades do Evangelho e a Regra de Paulo VI colocou em nossas mãos o Evangelho na ótica franciscana. Gostaria ainda de fazer alusão a uns poucos tópicos da vida da OFS que merecem ser avaliados neste Capítulo. Nas visitas fraterno pastorais, verificamos lacunas e brechas que precisam ser sanadas:
- Sempre de novo será preciso trabalhar na busca da identidade franciscana. O tema vem sendo tratado há anos: respirar espiritualidade evangélica, valorizar aquilo que nos torna cristãos discípulos de Francisco, não priorizar outras atividades e outras espiritualidades, vestir a camisa do carisma. Muitas deficiências nascem da falta de vocação e de identificação franciscanas.
- Palavra importante é fidelidade. Fidelidade à verdade de cada um. Fidelidade ao Cristo vivo. Fidelidade à profissão emitida. Sempre de novo a fidelidade. Fidelidade à sua fraternidade local. Fidelidade a tudo que diz respeito à Ordem. Não aceitar que as coisas corram e aconteçam.
- Difícil construir a maturidade humana, cristã e franciscana. Nosso tempo é feito de pessoas imaturas. Imaturidade no casamento, na paternidade, na administração dos bens. Há uma maturidade de comportamento, de respeito ao que é dos outros, na hora de assumir um encargo. Há pessoas imaturas que serão eternos adolescentes incapazes de fazer escolhas com seriedade e profundidade. Quantas vezes notamos certa sede de poder, vontade de aparecer, suscetibilidades infantis. Quanta imaturidade no caminho da espiritualidade quando as pessoas não são capazes de assumir a cruz em suas vidas.
- Estamos preocupados com o elevado número de irmãos e irmãs que pedem afastamento. As mais das vezes o afastamento é solicitado por causa de melindres e suscetibilidades. Os irmãos precisam ser corrigidos fraternalmente para que eles não joguem fora o tesouro da vocação, da profissão e assim tirem o brilho de nossa Ordem.
- Estamos fazendo um esforço de revitalização das reuniões gerais e de nossa fraternidade local. Será estamos convencidos da importância da qualidade de nossas reuniões do ponto de vista da oração, do estudo, de expressão de fraternidade, de estratégias para a missão?
- As visitas fraterno-pastorais regionais e locais não podem ser apenas o cumprimento de formalismos. Irmãos, mensageiros da paz e do bem, visitam irmãos, corrigem o que está torto, cobram carinhosamente. Nestas visitas haverá de se insistir no espírito de serviço e de corresponsabilidade em todos os âmbitos.
Conclusão
O Capítulo Avaliativo de março de 2011 deve colocar diante de nossos olhos uma vez mais a perspectiva de vivermos nosso dia-a-dia à luz do Evangelho e da força do Evangelho que é Cristo de tal sorte que, no final da caminhada pessoal e das fraternidades, possamos dizer que vivemos, como Francisco, a aventura do Evangelho. Deus abriu caminhos que seguimos com generosidade e o amargo se tornou doce.
Questões a serem discutidas em fraternidade
- O que mais chamou sua atenção neste texto preparatório para o Capítulo avaliativo de março de 2011?
- Quando se estuda a Regra o que, a seu ver, parece fundamental?
- Como a Regra pode responder a certas sombras de nossos tempos sobretudo as que se referem ao individualismo, indiferentismo,
- Que traços deveria ter um franciscano secular que vive a Regra?
- Como andam nossas reuniões gerais e a vida de nossas fraternidades locais?
- Como se pode chegar a uma maturidade humana, cristã, franciscana e missionária?
(*) Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM
Assistente Nacional da OFS pela OFM e Assistente Regional do Sudeste III