Irmãos na diversidade e na diferença
Frei Almir Guimarães
| A presente reflexão foi feita a partir da leitura e de considerações do livro: O Sol nasce em Assis de Éloi Leclerc, Vozes, p. 59-63.
Francisco de Assis não cabe em nossas categorias. Escapa a tudo. Não deixa se prender a nada. Não cabe na Ordem que dele nasceu. Pode-se dizer em suas pegadas vem a luz de um movimento fraternal. Esse borbulhar de fraternidade já estava no ar. Havia simpatia pela ideias de associação. Francisco foi capaz de captar o que estava acontecendo. Urgia o surgimento de relações sociais novas. O movimento da comuna prometia relações mais igualitárias, mais democráticas, mais fraternas. Ao menos, parecia ser isto o que o povo esperava. Houve uma decepção. Nas comunas livres da tutela feudal, do domínio dos grandes o reino do dinheiro e dos ricos comerciantes veio ocupar o esquema dos senhores locais.
“Não é de admirar que as pequenas fraternidades de irmãs como de irmãos, se tivessem multiplicado através da Itália e logo depois através de toda a Europa. Só se pode compreende o sucesso do ideal evangélico de Francisco e seu impacto sobre os jovens de seu tempo, por aquele espírito de fraternidade que o animava e lhe dava asas” (p.60). Francisco percebeu o novo que estava sendo gestado.
Um bom número de jovens que procuraram Francisco já viviam pobremente. Francisco não lhes ensinava a pobreza mas dava à pobreza deles um espírito messiânico: fazia dela um caminho para uma nova Terra prometida. “Seja essa a vossa parte que vos conduza à terra dos vivos”(Regra bulada 6,5).
No fundo, a pobreza é caminho para uma nova Terra prometida: “E onde quer que estiverem e se encontrarem os irmãos, mostrem-se afáveis entre si” (Regra bulada 6,7).
“A pobreza evangélica era vivida menos como um exercício ascético do que como um mistério de comunhão. Renunciando a possuir, renunciava-se a elevar-se acima dos outros para estar com, para viver em comunhão com todas as pessoas, a exemplo do altíssimo filho de Deus que se despojou de sua sabedoria para estar com os mais humildes e os mais desprovidos” (p. 61).
Os irmãos viviam a fraternidade entre eles e também com os de fora, particularmente os mais pobres e fracos. Aos irmãos era vedado exercer posição ou cargo de mando, menos ainda entre os irmãos. “Nunca devemos aspirar a sobrepor-nos aos outros, mas antes sejamos por amor de Deus servos e súditos de toda criatura humana” (Carta aos Fiéis, 47).
Vindo de horizontes diferentes, os irmãos aprendiam a viver juntos respeitando a diferença de cada um. Uma tal fraternidade não era semelhante a um agrupamento sob a chefia de uma central de comando. Seu ideal não era a uniformidade. Cada irmão era para Francisco uma pessoa única. Diz-se de Francisco que a árvore lhe ocultava a floresta. Certamente foi esse o mais belo elogio que dele se podia fazer. Não via as pessoas em geral, o coletivo humano, mas o indivíduo, a pessoa viva, com sua história singular, sua vocação própria.
Francisco dava a entender que tinha um infinito respeito pelo caráter único de cada irmão. Em sua maneira de ver a fraternidade era, antes de tudo, um encontro e uma comunhão de pessoas. O bom frade menor seria aquele que reunisse em si a fé de frei Bernardo, a simplicidade de frei Leão, a cortesia de Frei Ângelo, a distinção e o bom senso natural, etc (cf. Espelho da Perfeição,85). As verdadeiras fraternidades franciscanas são um tesouro de irmãos diferentes.
O dom mais precioso das famílias franciscanas à Igreja, segundo P. Lippert é este: o sentido e predileção pela pessoa viva, pelo indivíduo e pelo singular, enfim pela qualidade.
“Não se imagina hoje o que esse ideal e esta prática podiam ter de revolucionário naquela época. É preciso lembrar que a Igreja, naquele começo do século XIII, era no seu conjunto uma Igreja senhorial, com um poder temporal que se estendia às vezes a regiões inteiras. Bispados e mosteiros eram domínios senhoriais da Igreja. Neste contexto as inúmeras fraternidades franciscanas que nasciam em toda a Europa traziam um espírito verdadeiramente novo. Era uma nova presença da Igreja no mundo: uma comunhão fraterna em que os mais humildes encontravam dignidade” (p. 63).
Francisco foi além da cristandade. O que ele queria era reunir os homens todos numa fraternidade universal. No seu tempo o mundo estava dividido em duas partes: a Cristandade e o Islã. Entre os dois a guerra santa. Conhecemos o episódio com fortes cores fraternas que a história registrou. Assim Éloi Leclerc o descreve: “Francisco decide encontrar-se com o sultão do Egito. Um sonho desvairado. Arriscava sua vida. Mas é inacreditável: ele foi recebido contra toda expectativa, com muita cortesia por Al-Malik Al-Kamil, o chefe muçulmano. Os dois homens demonstraram reciprocamente respeito e estima. Poder-se-ia esperar mais? Já era muito. Muito e pouco ao mesmo tempo. Na verdade, as coisas continuaram na mesma. A guerra continuou com a mesma obstinação. O desígnio de paz do Pobre de Assis encontrava aqui um limite” (p. 63).