Clara, “Plantinha” do Seráfico Pai?
Frei Inácio Dellazari, OFM
Introdução
O título representa a palavra de Santa Clara. O ponto de interrogação é a nossa pergunta. Trata-se de verificar o significado desta autoproclamação de Santa Clara. Sabemos que tanto São Francisco como Santa Clara foram duas personalidades fortes que abriram, à luz do Evangelho, caminhos novos para a Igreja de seu tempo. O Evangelho é a mesma fonte e representa o elo de união entre estes dois santos. A criatividade do amor representa a diversidade que se visibiliza em duas Ordens. Esses dois santos cresceram juntos e espelham a mesma grandeza do Evangelho de duas formas diferentes.
Para este estudo servi-me, para os escritos de Clara, do texto crítico de Bocalli, I.M., Concordantiae Verbales Opusculorum Sancti Francisci et Clarae Assisiensium, Santa Mariae Angelorum, Assisii, 1976; e para os escritos de São Francisco, Esser K, Opuscula Sancti Patris Francisci Assisiensis, Grottaferrata, Roma, 1978. Usei também as versões CEFEPAL, Escritos de Santa Clara, Vozes, Petrópolis, 1984 e AA.VV., Fonti Francescane, Ed. Messaggero, Padova, 1977.
Para as siglas e abreviações: FF = Fonti Francescane; LegCla = Legenda de Santa Clara; ClaReg = Regra de Santa Clara; ClaTest = Testamento de Santa Clara, Test = Testamento de São Francisco.
1. Clara e Francisco de Assis
A história de Assis é marcada pela vida extraordinária dessas duas pessoas. São Francisco nasceu no ano de 1182/3. Clara nasceu em 1193/4. Clara tinha, portanto, onze anos a menos que Francisco. Quando aconteceu a cena de renúncia de São Francisco diante do pai Pedro de Bernardone e do bispo de Assis, na praça onde se localizava a casa de Santa Clara, ela devia ter mais ou menos uns 13 anos de idade. Já era suficientemente grande para admirar, estranhar, ouvir as opiniões e repercussões de um fato desses, numa pequena cidade como era o caso de Assis. Tudo deve ter sido comentado entre todos, inclusive na própria casa de Clara. Um jovem de Assis, com todas as chances de adquirir títulos de glória, abandona tudo e prefere a companhia de leprosos e mendigos de rua. Como isso tudo deve ter repercutido na vida de Clara!
Pouco tempo depois de Francisco retornar de Roma com o primitivo grupo, e com a aprovação do Papa Inocêncio III de seu projeto de vida (1209/10), entra Rufino no grupo de Francisco, um dos primos de Clara (1).
Com isso, a vida de Francisco repercute na própria família de Clara. O próprio Rufino poderia ter talvez confidenciado a Francisco algo sobre o que intencionava Clara.
Clara, como São Francisco, já antes de sua conversão, era uma pessoa dotada de uma sensibilidade muito grande para com as necessidades dos outros, principalmente dos pobres e necessitados. Segundo a Legenda de Clara, “às escondidas enviava alimentos aos órfãos”(2). Segundo Pacífica de Guelfuccio, Clara “amava muito os pobres” e “gostava de visitar os pobres” e era tida “com grande veneração pelos cidadãos”(3). Parece que a sua personalidade se identificava muito com a de São Francisco. Por isso talvez não seja nada estranho que essas duas pessoas tivessem uma afinidade e compreensão muito grande de uma para com a outra.
Clara, “ouvindo falar neste tempo de Francisco, cujo nome já era famoso e que como homem novo renovava com novas virtudes o caminho da perfeição esquecido no mundo, logo quis ouvir e ver”(4). São Francisco, por sua vez, “sabendo da ótima fama de tão agraciada jovem (talvez Rufino tenha falado), não é nele menor o anseio de encontrá-la e falar-lhe”(5). A legenda deixa claro que há um interesse de ambos em conversar e se encontrar. Começam então os encontros. Parece que a primeira vez, foi Francisco a visitar Clara. Clara, porém, visitou mais vezes Francisco. Desses encontros nasceu, aos poucos, uma profunda amizade entre os dois na comunhão do mesmo ideal de vida evangélica.
Conta também a legenda que esses encontros se realizavam às escondidas, sem que ninguém soubesse. Não eram mais freqüentes “para que essa amizade não fosse percebida pelas pessoas, nem fosse denegrida pela opinião pública”(6). Para evitar qualquer suspeita, Francisco se fazia acompanhar de Frei Filipe Longo, e Clara, de Bona de Guelfuccio (7). Clara “confia-se inteiramente à prudência de Francisco, escolhendo-o, após Deus, para mestre de sua direção”(8).
Nesses encontros foi amadurecendo em Clara o ideal de vida que buscava e foi também preparada a sua fuga da casa paterna. Na noite de Domingo de Ramos de 1212, juntamente com Pacífica de Guelfuccio, Clara foge de casa e se dirige à Porciúncula, onde Francisco e os frades a aguardavam para a celebração da consagração de sua vida ao “Altíssimo Pai Celestial”. Os frades a aguardaram em vigí1ia, com tochas acesas, ao pé do altar da bem-aventurada Virgem Maria. Segundo a legenda, foi o “lugar onde a nova milícia dos pobres, conduzida por Francisco, teve seu início feliz, para que ficasse patente que a Mãe de misericórdia, na sua habitação, desse à luz ambas as famílias religiosas” (9).
E de fato, não poderia ter sido outro, o lugar escolhido do que o lugar onde moram os pobres. Fora dos muros da cidade de Assis, em meio às inseguranças do mundo dos pobres, na igrejinha que São Francisco recebeu por ser a mais pobre, é somente aí que poderia nascer uma fraternidade universal, sem exclusão. Foi a partir do lugar do pobre que Santa Clara e São Francisco conheceram a possibilidade da fraternidade e onde eles mesmos puderam fazer a experiência de fraternidade. Foi ali que São Francisco deixou de ser filho de Pedro Bernardone e Clara de Favarone, e tornaram-se irmãos.
Despojados da ambição dos comerciantes e nobres, que disputavam a hegemonia em Assis, entre os menores sociais e a partir deles nasceram duas fraternidades de menores evangélicos.
Clara foi acolhida por Francisco e pelos frades no mesmo lugar que para Francisco e para a comunidade primitiva franciscana representa o centro de reunião e de irradiação da vida do Evangelho.
A legenda distingue bem quando fala de ambas as famílias religiosas, mas geradas pela mesma “Mãe de misericórdia”. Há algo em comum e algo que distingue. Giacomo da Vitry, na carta escrita em outubro de 1216, enxergava um mesmo movimento, de “ambos os sexos, que, despojando-se de qualquer propriedade, abandonam o mundo. Chamam-se frades menores e irmãs menores”. A distinção que é feita refere-se ao modo de vida. Os frades dedicam-se ao apostolado durante o dia e se recolhem à contemplação à noite; enquanto que as mulheres “convivem em alguns hospícios não distantes das cidades; não aceitam doações, mas vivem com o trabalho de suas mãos”(10). Segundo Vitry, há uma identificação nos “menores” e uma distinção no concretizar a mesma vocação.
A presença de São Francisco continuou na procura de um lugar para Clara até que por “vontade do Senhor e de São Francisco” foram morar junto à igreja de São Damião, onde, em pouco tempo, cresceram em número (11). Depois de se estabelecerem em São Damião, São Francisco continuou a acompanhá-las através de exortações escritas. Segundo Clara, São Francisco durante a sua vida deixou “vários escritos” (plura scripta) (12), além de auxiliá-las através da palavra e do exemplo.
Santa Clara, em seu Testamento, recomenda as irmãs aos cuidados do sucessor de São Francisco: “E como ele durante toda a sua vida mostrou tanto cuidado em palavras e obras para tratar e cuidar de nós, suas plantinhas, assim também recomendo agora as minhas irmãs, presentes e futuras, aos cuidados do sucessor de nosso Pai São Francisco e de toda a sua Ordem, para que eles nos ajudem a crescer sempre no serviço de Deus e especialmente na melhor observância da santa pobreza”(l3)
2. “Depois que o Altíssimo Pai Celestial, por sua misericórdia e graça, se dignou iluminar meu coração, comecei a viver em penitência … “(14)
Embora Clara se considere e insista em proclamar-se “plantinha de São Francisco”, ela reconhece na sua vocação a iniciativa de Deus. O começo, o início da mudança em sua vida deve-se à misericórdia do Altíssimo que se dignou iluminar o seu coração. A vocação, segundo Clara, não foi plantada por Francisco, mas pelo Pai Celestial. Clara, então, começa a viver em penitência por causa de uma semente semeada por Deus em sua vida.
A chegada das irmãs é compreendida por Clara da mesma forma: “Se alguém, por inspiração divina, vier ter conosco, querendo abraçar esta vida” (15); “e juntamente com as poucas irmãs que o Senhor me tinha dado … “(l6). Não somente em si mesma Clara reconhece a iniciativa de Deus, mas também nas irmãs que “por inspiração divina” até ela chegam, dando início a uma nova fraternidade. Clara não atribui a si mesma a sua conversão, nem a das outras irmãs. Aí há uma perfeita sintonia com São Francisco que também não se apropriava daquilo que pertence ao Senhor. Vejamos isso em São Francisco.
São Francisco, no Testamento, no final de sua vida, descreve assim o início de sua vida de penitência: “Foi assim que o Senhor me concedeu a mim, Frei Francisco, iniciar uma vida de penitência: como estivesse em pecado, parecia-me amargo olhar para leprosos, mas o Senhor mesmo me conduziu entre eles e eu tive misericórdia para com eles. E ao afastar-me deles, o que antes me parecia amargo se me converteu em doçura da alma e do corpo. E depois de bem pouco tempo abandonei o mundo”(17).
São Francisco reconhece que foi o Senhor que lhe concedeu iniciar a vida de penitência. Tanto Francisco como Clara não atribuem a si próprios, nem um ao outro, o “início da vida de penitência”, mas ao Senhor, ao Altíssimo.
Uma diferença entre São Francisco e Santa Clara aparece no segundo momento. São Francisco, quando se trata de mostrar como o Senhor concedeu o início dessa vida, coloca a figura do irmão leproso. A sua conversão, a mudança em sua vida é mediada pela presença do leproso. São Francisco separa em si mesmo dois tempos: aquele em que era amargo olhar para a figura do leproso e aquele em que olhar para o leproso se tornou doçura da alma e do corpo. O critério para verificar a sua conversão é a capacidade de olhar para a figura do irmão leproso. Santa Clara escreve que começou a “viver em penitência conforme o ensinamento e o exemplo de nosso Pai São Francisco, pouco depois de sua conversão”. O Altíssimo Pai Celestial se dignou iluminar o coração de Clara mediante o ensinamento e exemplo de São Francisco. Pelos “ensinamentos e pela vida admirável (laudabilem)” de Francisco, Santa Clara experimentou a luz e a graça do Altíssimo Pai Celestial.
O Senhor concede a Francisco iniciar o processo de conversão mediante o encontro com o leproso; o Senhor concede a Santa Clara iniciar o processo de conversão mediante o encontro com o irmão Francisco. Tanto a conversão de Clara como a de Francisco passaram pela mediação do irmão. A graça do Senhor passa pela presença do irmão. Tanto Francisco como Clara fizeram esta profunda experiência de encontro com o Senhor. É a mesma inspiração, o mesmo Evangelho, o mesmo Senhor que concede. Fica mais claro ainda quando Clara escreve: “O Filho de Deus se fez para nós caminho. E foi este caminho que nosso Pai São Francisco, seu autêntico apaixonado e imitador (amator et imitator) nos mostrou e nos ensinou pela palavra e pelo exemplo” (18); como também: “Devemos, pois, queridas irmãs, contemplar os imensos benefícios que Deus nos concedeu, de modo especial aqueles que ele se dignou realizar em nós por seu dileto servo, nosso Pai São Francisco”(19). São Francisco é para Clara aquele que mostrou o caminho de Jesus Cristo, aquele, através do qual, Deus concedeu imensos benefícios.
3. “Escreveu para nós uma forma de vida”
Santa Clara inseriu a forma de vida que São Francisco escreveu no capítulo VI de sua Regra: “Desde que, por inspiração divina, vos fizestes filhas e servas do Altíssimo e Sumo Rei, o Pai Celestial, e desposastes o Espírito Santo, escolhendo uma vida conforme com a perfeição do santo Evangelho, quero eu, o que prometo por mim pessoalmente e por meus irmãos, nutrir sempre, a bem de vós, o mesmo e diligente cuidado e solicitude como por eles”(20). Nessa forma de vida, como é próprio de São Francisco, a inspiração divina está na origem da vocação de Clara. São Francisco promete por ele pessoalmente, e por seus irmãos, ter um igual cuidado e solicitude para com as irmãs como a tem para com seus irmãos. E a razão desse compromisso é: desde que vos fizestes filhas e servas do Altíssimo e Sumo Rei … , escolhendo uma vida conforme a perfeição do santo Evangelho. Francisco se sente responsável a partir do momento em que Clara e suas irmãs escolhem a mesma vida que ele e os frades escolheram: a perfeição do Evangelho. A fraternidade que nasceu ao redor de Francisco e de Clara tem o mesmo projeto de vida. E Clara acrescenta no final da forma de vida escrita por Francisco: “E ele cumpriu fielmente esta promessa todo o tempo de sua vida e quis também que seus irmãos a cumprissem”. Clara pede que o mesmo cuidado e solicitude de Francisco se perpetue com os seus seguidores para com elas. Através de Francisco lhe foi mostrado o caminho do Evangelho. Preocupada na perseverança deste ideal, quer que os irmãos de Francisco continuem auxiliando no seguimento do Evangelho. E o próprio Francisco, na Última vontade manifestada a Santa Clara, escreveu: “Eu, Frei Francisco, o menor de todos, quero seguir a vida e a pobreza do nosso Altíssimo Senhor Jesus Cristo e de sua Santíssima Mãe e nela perseverar até o fim. Rogo-vos, senhoras minhas, e dou-vos o conselho de viverdes sempre esta santíssima pobreza. Guardai-vos cuidadosamente de vos afastardes dela pelos ensinamentos ou conselhos de quem quer que seja”(21). Francisco está aqui se dirigindo às irmãs da mesma forma que se dirige aos irmãos. Ele se coloca como o menor de todos; ele mesmo promete primeiro cumprir aquilo que pede para ser cumprido; e com a terminologia característica: “rogo-vos”, “guardai-vos cuidadosamente”. São Francisco revela-se um pai espiritual para Santa Clara da mesma forma que o foi para os frades. Se Clara enxergava em Francisco um pai, Francisco, por sua vez, manifesta uma paternal afeição e zelo para com as damas de São Damião. Afinal, ele foi cúmplice na santa fuga de Clara, ele participou da preparação de todos os momentos até culminar naquela noite de Domingo de Ramos na Porciúncula. Não deveria ele se preocupar com a perseverança desse grupo reunido ao redor de Santa Clara? É isso que Santa Clara pede com insistência. A atitude de Santa Clara parece-me ser a mesma de Frei Leão que pede ajuda e recebe um bilhete de São Francisco; é a mesma atitude do ministro que escreve uma carta a São Francisco, pedindo para abandonar a fraternidade e ir para um eremitério. Aos dois, e a muitos outros, a presença de Francisco foi sempre uma ajuda no sentido de zelar pela fidelidade ao projeto do Evangelho. Para Frei Leão, São Francisco se revela como alguém que respeita profundamente a individualidade de cada irmão: “Do modo que melhor te parecer agradar ao Senhor Deus, e seguir seus passos e sua pobreza, assim farás com a bênção do Senhor Deus e a minha obediência”. E mais: “E se, por motivo de tua alma ou de outra tua consolação, precisares e quiseres vir ter comigo, ó Leão, vem”. É Frei Leão quem vai ter que descobrir o jeito de agradar ao Senhor Deus. São Francisco não tira a liberdade dos irmãos de serem criativos na resposta ao Evangelho. Com Santa Clara, me parece que acontece o mesmo. São Francisco não moldou Santa Clara, mas ao mesmo tempo demonstrou sempre uma preocupação muito grande em zelar pelo projeto do Senhor como escreve na Carta aos Fiéis II, 2-3: “Como o servo de todos, a todos tenho a obrigação de servir e ministrar as palavras de meu Senhor, cheias de suave perfume. E considerando comigo que, devido às enfermidades e fraquezas do meu corpo, me é impossível visitar pessoalmente a cada um de vós, resolvi comunicar-vos por meio desta carta e de mensageiros as palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo, que é o Verbo do Pai, e as palavras do Espírito Santo, que são espírito e vida”.
4. “A forma de vida da Ordem das pobres irmãs que o bem-aventurado Francisco fundou é esta … “
Santa Clara, no início de sua Regra, atribui a fundação da Ordem das pobres Irmãs a São Francisco: “A forma de vida da Ordem que o bem-aventurado Francisco fundou (instituit) …”(22). Logo em seguida promete “obediência e reverência ao senhor Papa Inocêncio” e declara que “no início de sua vida prometeu obediência, juntamente com suas irmãs, ao bem-aventurado Francisco, assim também promete obedecer firmemente aos seus sucessores”. São muitas as vezes em que Clara revela essa ligação com Francisco por uma promessa de obediência (23). São Francisco, por sua vez, promete zelar pela vida das irmãs que escolheram viver conforme a perfeição do Evangelho. Parece claro que não se trata daquela obediência à qual Francisco se refere na RNB XII, onde São Francisco proíbe que alguma mulher seja recebida por algum irmão à obediência. Santa Clara não foi admitida, naquela noite de Domingo de Ramos, à fraternidade de Francisco. São Francisco, inclusive, ajudou a providenciar um lugar onde Clara pudesse ficar. Mas o que chama a atenção é que Clara “promete obediência somente a Francisco, ignorando qualquer outra hierarquia de qualquer espécie”(24). Que tipo de relacionamento se estabelece entre São Francisco e Santa Clara? Como entender a insistência de Clara em prometer obediência a Francisco e a obrigação das irmãs em obedecerem ao sucessor de Francisco?
Que Santa Clara não se considera fundadora, não pensa o Papa Alexandre IV. Na bula de canonização de Santa Clara, Alexandre IV não proclama São Francisco o fundador, mas a própria Clara como o “primeiro estável fundamento dessa grande Ordem” e como a “pedra angular desse sublime edifício”. São Francisco, na mesma bula, é aquele que teve uma presença marcante no início da conversão de Clara: “Ouvindo da sua boa fama, começou logo a exortá-la, induzindo-a a servir a Cristo com toda a perfeição”. Santa Clara responde como aquela que “prontamente atendeu a seus santos conselhos”(25). Clara atende a Francisco, fazendo aquilo que também os frades deviam fazer: “Distribuiu os bens que possuía aos pobres”, para colocar-se no caminho de Jesus Cristo.
São Francisco, na bula de canonização de Santa Clara, é aquele que ajuda Santa Clara a chegar até São Damião, onde começou a “insigne e sagrada Ordem de São Damião”. A mesma bula deixa entender que Santa Clara não queria encarregar-se do governo do convento e das irmãs, mas por insistência de São Francisco ela o aceitou: “E passados alguns anos, a própria bem-aventurada Clara, cedendo aos insistentes apelos de São Francisco, se encarregou do governo do convento e das irmãs” (26).
Na sua continuação, a bula põe toda a atenção somente em Clara, revelando os seus méritos: “Ela foi a árvore … que, plantada no campo da Igreja, produziu o doce fruto do fervor”, proporcionando “nova fonte de água viva para saciar as pessoas”; essa fonte “regou as sementeiras da vida religiosa”; “ela foi porta-estandarte dos pobres, guia dos humildes, mestra dos mortificados e abadessa dos penitentes”; “sua vida era uma doutrina e ensino para os demais, que no livro de sua conduta aprenderam a regra de vida”.
A figura de Clara que emerge da Bula de canonização, que representa o reconhecimento da Igreja, é a de uma mulher que renova a vida evangélica na Igreja. Essa acontece mediante sua personalidade enérgica, corajosa e austera. Uma pessoa extremamente amável com as irmãs, mas muito austera consigo mesma.
5. A imagem de São Francisco para Santa Clara
Buscando olhar para Francisco com o olhar de Santa Clara, vamos tentar colher a imagem de Francisco segundo a visão de Clara. Isso nos ajudará a compreender o relacionamento humano-espiritual entre esses dois santos e, principalmente, o que São Francisco significava para aquela que se considerava sua “plantinha”.
A imagem mais forte de Francisco para Clara me parece ser a de Exemplo. Em São Francisco é encontrado por Clara um exemplo de como seguir a Jesus Cristo. Através do seu jeito de viver o Evangelho, Clara encontrou uma resposta para sua aspiração de vida. Isso é confirmado de uma forma clara no Testamento: “O Filho de Deus se fez caminho. E foi esse caminho que nosso Pai São Francisco … nos mostrou e nos ensinou pela palavra e pelo exemplo”(27). Santa Clara começa a fazer penitência “conforme o ensinamento e o exemplo de São Francisco”(28). Esse exemplo foi dado pelo Senhor: “Pois o Senhor nos deu um exemplo, um modelo e um espelho, não apenas para os outros, mas também para nossas irmãs”(29). O Pai Celestial “gerou este rebanho em sua santa Igreja pela palavra e pelo exemplo do nosso Pai São Francisco …”(30).
São Francisco é a testemunha de profissão religiosa de Santa Clara. Foi diante dele e de uma pequena fraternidade que Clara, diante do altar da Virgem Maria, prometeu observar o Evangelho. A promessa de observar a santa pobreza ao Senhor e a Francisco foi mais tarde confirmada pela Igreja. Mas, no início, Francisco foi a testemunha: “E para maior certeza, a fim de que mais tarde não nos desviássemos dela, tive a preocupação de adquirir por meio de privilégios do Papa Inocêncio, sob cujo pontificado começamos, e dos seus sucessores, a confirmação desta santa pobreza que prometemos na nossa profissão ao nosso pai”(31). Essa promessa feita a Deus e ao nosso Pai Francisco é recordada por Santa Clara e repetida em seus escritos muitíssimas vezes, principalmente no seu Testamento.
Santa Clara vê em Francisco alguém dado pelo Senhor como “fundador, plantador e auxílio no serviço de Cristo” (fundatorem, plantatorem et adiutorem). A presença de Francisco na vida de Clara, principalmente no início de sua conversão, foi muito significativa, humana e espiritualmente. A experiência da ruptura com a família, o jogar-se na insegurança fora dos muros da cidade de Assis, a insegurança fora dos muros do castelo, na vida de pobreza e trabalho, essa experiência foi muito dura para Clara. O único apoio foi o de Francisco e seus irmãos que a acolheram. Clara encontrou alguém que já tinha passado por essa experiência e, por isso, com todas as condições de ajudá-la. Santa Clara vê em Francisco o “apoio depois de Deus, nossa única consolação e refúgio”. Durante a sua vida, Francisco acompanhou a comunidade de Clara com exortações escritas e orais. O que permaneceu desses escritos foram apenas a Forma de vida e a Última vontade. Como esse auxílio de Francisco no serviço a Cristo representou para Clara um auxílio na perseverança daquilo que prometeu ao Senhor, recomenda as irmãs “presentes e futuras aos cuidados do sucessor do Pai Francisco e de toda a Ordem”(32). Aqui Santa Clara olha para o futuro e quer que se perpetue, assim como ela experimentou, esse relacionamento de ajuda entre as duas Ordens. No capítulo VI da Regra, Santa Clara recorda a promessa feita por São Francisco de nutrir sempre o mesmo diligente cuidado para com elas como o teve para com seus irmãos e quis que seus irmãos fizessem o mesmo. Santa Clara entende que a sua fraternidade deve caminhar junto com a de Francisco e espera a continuidade de sua presença através da presença dos irmãos de Francisco.
Para Clara, Francisco é alguém que vibra e se alegra com a firmeza e decisão com que ela e as outras irmãs abraçaram o ideal evangélico de vida: “Francisco então ficou cheio de alegria no Senhor quando percebeu que nós, embora corporalmente fracas e sem força, não receávamos a pobreza, o trabalho, a tribulação … segundo o exemplo dos santos e dos irmãos de Francisco, como ele mesmo e os seus irmãos experimentaram”(33). Aqui, Clara está colocando a sua fraternidade em relação de igualdade com a fraternidade de Francisco. Clara revela que elas experimentam as mesmas exigências evangélicas que São Francisco e seus irmãos experimentam. Não é uma situação de inferioridade. E isso além de se colocarem numa situação de “corporalmente fracas e sem força”. Volta novamente a questão da identidade comum das duas fraternidades no Evangelho. E Clara continua depois dizendo: “Movido de amor para conosco, aceitou para si e para sua Ordem a obrigação de ter sempre de nós o mesmo cuidado e atenção especial como de seus próprios irmãos”. A preocupação de Clara é a de não se afastar do ideal do Evangelho. Por isso, insiste em não ser abandonada pela fraternidade daquele, através de quem as duas Ordens tiveram início.
Considerações finais
Um estudo sobre Santa Clara leva à percepção de que Clara não se compreende independentemente de Francisco. São Francisco foi para Santa Clara um instrumento de conversão. Nos seus escritos, o nome de São Francisco é citado 31 vezes. Enquanto que nos Escritos de São Francisco não aparece o nome de Clara uma só vez. O relacionamento de Clara com Francisco é muito mais conhecido através dos escritos de Clara. A Forma de vida escrita por São Francisco, a Última vontade de São Francisco foram inseridos por Clara em seus escritos. Todo o amor e dedicação de São Francisco pela fraternidade de São Damião, a sua atenção para com aquele pequeno rebanho nos é conhecido através de Clara. Chega, então, até nós a imagem de Francisco vista por Santa Clara. Seria, então, Clara alguém que nos ajuda apenas a conhecer melhor São Francisco? Creio que não se pode fazer essa afirmação. O silêncio de São Francisco em seus escritos sobre Santa Clara reflete aquele respeito à individualidade e à originalidade que ele também tinha para com cada irmão. Ao redor de São Francisco cada irmão podia ser ele mesmo. O Evangelho era a fonte comum. Todos bebiam da mesma água. Ligados à mesma fonte, todos respondiam criativamente segundo a própria originalidade. A fisionomia da fraternidade era dada por Deus através do Evangelho. Não era Francisco quem moldava os irmãos. Por isso, nasceu uma fraternidade original. O relacionamento de Francisco com Santa Clara se deu da mesma forma. Santa Clara pode ser ela mesma. A sua Fraternidade não foi uma cópia da Fraternidade de São Francisco. O que ela aprendeu de São Francisco foi a pedagogia evangélica. E, segundo a bula de canonização, São Francisco teria insistido para que ela assumisse o governo do convento e das irmãs de São Damião. Isso revela que São Francisco ajudou Santa Clara a ser ela mesma e assim enriquecer a família franciscana com a sua resposta individual de mulher.
Santa Clara, na sua humildade, não seria capaz de atribuir alguma coisa a si mesma. Ela reconhece que todos os dons têm sua origem na única fonte do Bem, aquele que é o Sumo Bem. Quando suas irmãs falam do processo de canonização, aí emerge todo o esplendor de alguém que plantou a semente da santidade no coração das companheiras. Quando a Igreja fala na figura do Papa Alexandre IV, na bula de canonização, há todo o reconhecimento de uma vida que “iluminou pelas suas obras luminosas”, “escondia-se num mosteiro apertado, mas espalhava-se amplamente pelo mundo afora”; “vivia oculta na cela, mas era conhecida nas cidades”.
Notas
1. Cf. R. Manselli, San Francesco, Bulzoni Ed., Roma, 1980.
2. Cf. ClaLeg 5.
3. FF 2927-2928.
4. ClaLeg 5.
5. ClaLeg 5.
6. ClaLeg5.
7. Cf. Processo di Canonizzazione, FF 3125-3126; sobre a “fama pública”, cf. R. Manselli, San Francesco,34-35.
8. ClaLeg6.
9. ClaLeg 8.
10. FF 2205-2207.
11. ClaTest 30-32.
12. ClaTest 34.
13. ClaTest 48-5l.
14. ClaTest 42.
15. ClaReg II,l.
16. ClaTest 25.
17 Test 1-3
18. ClaTest 5.
19. ClaTest 6-8.
20. ClaReg VI, 3-5.
21 ClaReg VI, 7-9
22. ClaReg 1,1.
23. Cf. ClaReg 1,5; VI, 5; VI, 10; ClaTest 25,47,40,52.
24. Cf. R. Manselli, San Francesco, 165.
25. FF 3290.
26. Cf. Processo di Canonizzazione, FF 2930.
27. ClaTest 5.
28. ClaTest 24.
29. ClaTest 19.
30. ClaTest 46.
31. ClaTest 42-43.
32. Cf. ClaTest 48-51.
33. ClaTest 27-29
Texto extraído do “Cadernos Franciscanos, nº 9 – 1995”, publicado pela Vozes e FFB