Carisma - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

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Francisco de Assis, o fascinante

 

Dois textos  de autores franciscanos  franceses: um frade menor e uma terceira franciscana.  Para nossa interiorização.

  1. Cântico do Irmão  Sol

 A  experiência profunda que se exprime no  Cântico é, na verdade,  experiência de  reconciliação do homem  com sua  “arqueologia” íntima.  Para nos  convencermos,  basta prestar atenção na tonalidade da obra.  Do começo ao fim do Cântico reinam luz e serenidade.  Não há traços de angústia,  sombra,  matriz  alguma de agressividade e amargura.  Os elementos cósmicos são todos eles  desvestidos de seu caráter ameaçador ou destruidor.  As imagens ancestrais do “senhor  Sol”  ou da “nossa mãe a Terra”, da água e do fogo, perderam seu aspecto  temível.  No Cântico oferecem  uma face simplesmente fraterna. O homem  que assim fraterniza  com os elementos não se sente mais sob sua dominação.  Não é esmagado  pela força que eles representam ou simbolizam.

Uma tão grande  serenidade ,  não nos esqueçamos,  acontece  no final da vida do Poverello.  Tal serenidade  faz transparecer  tranquilidade interior,  aceitação de si em profundidade, reconciliação  entre o espírito e as forças  turbulentas da vida.  Francisco não tem mais nada a temer  com respeito  às forças selvagens.  Ele não as destruiu, mas  domesticou-as.  O lobo  não seria símbolo da agressividade que existe em cada um  e que Francisco  soube torná-la fraterna,  transformando-a em força de amor?  Esta energia íntima,  a partir de então, faz parte de seu elã para o Altíssimo. Também é porta para a luz.  Não é ela que  ele canta nas imagens  do “irmão fogo, belo, jucundo e vigoroso e  forte”?

Francisco não  celebra somente as criaturas que manifestam força e exuberância,  como o sol, o vento, o fogo.  Canta os elementos que fazem sonhar  em profundidade de acolhimento: a água e a terra mãe.  Seu Cântico  é feito de alternância  de imagens viris e de imagens femininas.  A um elemento imaginado no sentido de  força e de ação,  corresponde outro pensado como  intimidade e  comunhão.  Essa alternância revela uma alma aberta  a todas as suas potencialidades.  O Cântico das  Criaturas se revela  como  a linguagem simbólica   de um  homem  plenamente reconciliado com sua  totalidade afetiva,  nascida de uma personalidade nova e plena onde todas as forças obscuras da vida e do desejo que atuam na luz.

A  visão fraterna da natureza  que se exprime  no Cântico das  Criaturas só é possível a partir dessa experiência íntima de reconciliação.  A natureza,  liberta de todo aspecto ameaçador e temível e terrível, completamente  transparente e luminosa,  não é mais simples sonho de poetas;  ela é  testemunho e espelho de um ser  no qual as forças do desejo e da vida estão unificadas e iluminadas num único e grande amor.  Uma consciência  dilacerada só tem condições de projetar  sobre o mundo  seu rasgão interior.  Uma consciência unificada e feliz percebe,  ao contrário, a unidade profunda e última dos seres.  Vê, canta e dá sua cooperação.

Certamente, a personalidade de Francisco era, no começo, mais  tumultuada,  menos unificada que a de Clara,  por exemplo. A riqueza de um ser se mede pela diversidade de tendências que o trabalham  e sua capacidade de integrá-las.  Esta unificação,  em Francisco, não se fez  sem crises e conflitos. Nada, no entanto, se perdeu da riqueza anterior.  No final,  tudo se apresenta unificado:  o sentido do concreto e  a força do sonho, o dinamismo da ação e o lirismo do contemplativo, o amor da pessoa viva,  do indivíduo  e do singular e a necessidade da comunhão cósmica.  Tudo isso faz  de Francisco  não somente um ser transbordante de vida, mas um maravilhoso intérprete  do esplendor humano.  Seu canto é verdadeiramente o canto  do homem  unificado e universalizado.

Não se conclui,  não se encerra um canto.  Faz-se necessário que ele cante   dentro de  nós.  Talvez seja mesmo urgente fazer um longo silêncio dentro de nós para escutar  o crescimento íntimo do homem  abrindo-se à sua dimensão total.  A mesma voz salta de uma criatura a outra.

    O que ela diz? Escutem:

Se  meu canto tem o esplendor  da manhã
–  Estejam certos-.
É que ele se ergue no finalzinho  da noite.

Se meu canto tem o esplendor da luz nascente,
é que nele é que nele todas as lágrimas da noite
brilham de repente  ao orvalho da madrugada.

Se meu canto tem a serenidade do  azul
é que ele atravessou  tempestades e raios mais violentos.
Nele  arde um fogo  finalmente claro e puro.

Se meu canto é aquele de todas as criaturas
é que ele é o canto  de uma imensa solidão.
O canto do peregrino  em busca  de uma estrela  única.

Se meu canto é o canto dos homens
É que ele foi mais forte do que todas
as violências e silencio.

É o canto de   todos os perdões.
Cego não vejo mais o sol
nem a brilhante superfície das coisas.
Ouço, no entanto, a criação inteira despertar dentro de mim.

Não temo a morte.
Em minha alma desnudada,  exposta aos ventos do Espirito,
passa o sopro do Gênesis.
Meu canto é o murmúrio  de uma  água
profunda  na fonte do desejo.
É torrente  que salta para sua Fonte
No coração de toda vida.

Éloi Leclerc, La fraternité em héritage, Éd.  Franciscaines,  p.144-148


  1. Quem é  São  Francisco?

Como qualquer homem, ele é grande e  frágil.  Sua conversão e  caminho de santidade  foram acontecendo gradualmente:  jovem imaginando seu futuro mundano,  transbordando  de ambição e  “escapando” de todo apelo do Senhor.  Homem  à beira estrada, vagueando, a caminho,  vereda  na qual alegrias, sofrimentos, dúvidas, confrontações, decepções, desafios  permanentes se entrechocam e ele  toma como modelo supremo sem jamais separar dele  “a humildade de Deus”,  aquela “Palavra  de Deus tomando  carne em nossa  humanidade e de nossa  fragilidade  escolhendo a pobreza” (2Carta aos Fiéis  4-5). Francisco toma com  modelo a humildade do amor  que se  faz servo.  Deixa seu raciocínio  terreno e  se prende  à fé.

Frade menor, aglutinador de homens e mulheres  tocados pelo evangelismo franciscano:  “Viver o Evangelho no seguimento de  Cristo”  quer dizer  acolher e  implementar a Boa  Nova,  em espírito de fraternidade.  Francisco se dirige à humanidade do mundo inteiro  do presente e do  futuro e pede mudança de vida,  perseverança  na  verdadeira fé  (RNB  23,7-11).  Figura crística, única  por seus estigmas,  mas homem até  seu último suspiro, Francisco, esse louco de Deus,  expropriou-se de si mesmo, corpo, alma, espírito  para se deixar  habitar plenamente pelo  Senhor.  “E façamos sempre  habitação e morada, para ele que é o Senhor Deus todo poderoso,  Pai,  Filho e  Espírito Santo (RNB 22, 27).

Francisco de Assis é também um profeta, um místico, um  teólogo digno de nota,  um evangelizador,  um apóstolo, um testemunha, um missionário,  um santo.  Não esqueçamos, no entanto, que ele é um  homem simples,   falível como cada um de nós e cuja imensa lucidez e fé convidam-nos a oitocentos anos e nos referir ao Evangelho.  Ele e somente ele pode  nos ajudar a responder  com confiança e coragem  aos desafios deste mundo.   Para todo  franciscano, o Evangelho é um livro de  formação  incontornável.

E a autora cita o Papa  Francisco:

“Jesus é o primeiro  e o maior evangelizador.  Em qualquer forma de evangelização, o primado  é sempre de Deus, que quis chamar-nos para cooperar  com ele  e impelir-nos com toda a força de seu  Espírito.  A  verdadeira  novidade é aquela que o próprio Deus  misteriosamente quer produzir, aquela que  Ele inspira,  aquela que Ele provoca, aquela que  Ele orienta e acompanha de mil e uma maneira.  Em toda a vida da Igreja, deve-se sempre manifestar que a iniciativa  pertence a  Deus,  porque ele nos amou primeiro  (1Jo 4,15) e só Deus é que faz crescer (1Cor 3,7).  Esta convicção  permite-nos manter a alegria no meio de uma tarefa tão exigente e desafiadora  que ocupa inteiramente a nossa vida. Pede-nos tudo, mas ao mesmo tempo nos dá tudo (Evangelii Gaudium, n. 12)

Como Francisco de Assis encara sua realidade?  Sem mentira, sem transgredir com  sua consciência.  No amor. A  vida é uma questão de prioridade e a prioridade é o amor.  Ele se deixa mudar e se alimentar desse amor e o retribui  generosa e gratuitamente.  De onde ele tira esta força? Colocando no centro da sua vida a celebração eucarística. Para Francisco, Palavra, celebração e vida, estas  três dimensões constitutivas da vida cristã,  estão estreitamente ligadas  e transparecem de modo natural em sua ação.  Sua força está no fato de ter recolocado  o mistério de Cristo  no centro de sua fé.  Deus se voltou para o homem: ele deu,  dá e se dá.  Francisco de Assis reencontra  o “mistério” (mistagogia)  caro aos Padres da  Igreja. Sua existência e sua espiritualidade  conduziram-no  a uma progressiva assimilação  e configuração ao mistério de Cristo.  Todo mistagogo  encontra seu sentido  colocando-se a serviço de Cristo –  o grande mistagogo   – e de sua obra.  Esta vem  ser a razão do êxito de São  Francisco  no testemunho da caridade.

François d’Assise, Le prophète  de l’extrême, Suzanne Giuseppi Testut  Nouvelle  Cité,  Bélgica, p. 24-26


Seleção e tradução de Frei Almir Guimarães

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