Tu és o Bom, tu és o Bem!
Éloi Leclerc, frade franciscano francês que já terminou sua peregrinação pela terra dos homens, deixou-nos um precioso tesouro em seus livros que respiram o frescor do Evangelho e o perfume de Francisco de Assis. Transcrevemos umas páginas de um fictício diálogo entre Frei Francisco e Frei Leão.
Frei Almir Guimarães
Retomando a alegria do caminho, Francisco pôs-se a cantar. A doçura tinha se apoderado dele. A grande e forte doçura de Deus.
– Só tu és bom. Tu és o Bem, todo o Bem, todo o Bem. Tu és a nossa grande consolação. Tu és a nossa vida eterna, grande e admirável Senhor, repetiu ele.
Cantava isso em melodias improvisadas. Na sua alegria levantou do chão dois pedaços de pau, e pousando sobre o braço esquerdo, pôs-se percorrê-lo com o outro como se fizesse deslizar um arco sobre um violino. Leão mirava-o. A sua expressão era radiante. Caminhava, cantava e imitava o som do acompanhamento do seu canto. Leão dificilmente o seguia.
De súbito, Francisco afrouxou o passo. E Leão notou que o rosto de seu Pai tinha mudado. Tornara-se doloroso, atrozmente doloroso.
– Tu que dignaste morrer por amor do meu amor – gemeu ele – que a doce violência do Teu amor me faça morrer por Teu amor.
Leão teve, então, como que a certeza que Francisco via nesse momento o seu Senhor suspenso na ignomínia da cruz. Via-o, passadas longas horas de agonia, movendo-se ainda, lutando entre a vida e a morte, desprezível farrapo humano. A sua alegria tinha-o de um salto transportado até ali. Até a contemplação do Crucificado. Deixara cair os pobres objetos que segurava nas mãos, depois recomeçou a ladainha dos louvores, com uma voz mais forte que ressoava clara na noite a meio da floresta.
– Tu és o Bem, todo o Bem, grande e admirável Senhor, misericordioso Salvador.
Esta recaída na alegria surpreendeu Leão. A imagem do Crucificado não tinha destruído o júbilo de Francisco. Bem ao contrário. E Leão pensou que devia ser a verdadeira fonte de sua alegria, a fonte puríssima e inexaurível. Esta imagem de opróbrio e de dor era bem a luz que iluminava os seus passos. Era ela que lhe descobria a criação. Ela que lhe mostrava, para além de todas as vilanias e crimes do mundo, perfeitamente reconciliada e já plena dessa soberana bondade que está na origem de todas as coisas.
A face de Francisco tinha-se, de novo, maravilhosamente iluminado com uma expressão infantil. Como se a criação acabasse nesse momento de desabrochar a seus olhos, toda impregnada da inocência de Deus e como se o milagre da existência se lhe oferecesse no seu primeiro frescor.
Atravessou uma clareira. Na orla da floresta, levantou-se uma manada de cervos que ali dormitavam. Imóveis, de cabeça levantada, os animais viram passar esse homem livre que cantava. Não se mostravam nada assustados. Então, Leão compreendeu que vivia um momento extraordinário. Sim, era bem certo que nessa noite a floresta esperava por alguém. Todas estas árvores e todas as estrelas também esperavam a passagem do homem fraternal. Havia sem dúvida muito empo que a natureza esperava assim. Desde milênios, talvez. Mas esta noite, por um misterioso instinto, ela sabia que ele devia vir. E eis que estava ali no meio dela e a libertava com o seu canto.
Eloi Leclerc, Sabedoria dum pobre, Editorial Franciscana, Braga, p, 150-152