Irmãs Clarissas – Elementos de Formação II
A SUBLIME ELOQUÊNCIA DO SILÊNCIO
Senhor, que sempre nos lembres que falas quando te calas.
Kierkegaard
Escreve-se bastante sobre o tema do silêncio. Mais ainda dever-se-ia escrever sobre o tema. Na verdade não adianta escrever sobre…. É fundamental penetrar em seus espaços, dentro e fora de nós. Não dá mais para viver no meio de toda espécie de frenesi, barulho, zoadas, ruídos pequenos e estridentes, pessoas entontecidas pelo barulho de dentro e de fora respirando uma preocupante euforia. O tempo de isolamento social que vivenciamos pode ser espaço para redescobrir a força e a eloquência dos silêncio.
Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM
Em torno da cruz, barulho, naquela sexta-feira. Gritos dos guardas. Conversas dos salteadores. Choro de uns. Lamentos de outros. Depois veio o sábado, o sábado santo, o silêncio.
Que está acontecendo hoje? Um grande silêncio reina sobre a terra. Um grande silêncio e uma grande solidão, porque o Rei está dormindo; a terra estremeceu e ficou silenciosa, porque o Deus feito homem adormeceu e acordou os que dormiam há séculos. Deus morreu na carne e despertou a mansão dos mortos ( Antiga Homilia no grande sábado, Lecionário Monástico).
No silêncio respiramos a presença de Deus
O recolhimento, o silêncio fazem parte das necessidades fundamentais de nossa época em vista da saúde física e espiritual do ser humano.
Todas grandes obras sempre foram obras do silêncio. Se não nos empenharmos em conseguir cada dia um momento de silêncio total, absoluto, se não dermos este lugar a Deus, que consiste em novo nascimento, se não atingirmos este nível central, onde todas as almas se unem e venhamos a nos perder em todas as correntes superficiais, jamais seremos homens nem cristãos. É no silêncio que podemos respirar a presença de Deus . (Maurice Zundel).
O silêncio de Jesus
Jesus foi precisamente aquele que usou a palavra na justa medida
O silêncio de Jesus começa com a chamada “vida oculta”, aquela que precede sua atividade messiânica; é claro na itinerância de Jesus por desertos e solidões; e concentra-se especialmente no teatro de sua paixão. Jesus atravessa em silêncio o complexo processo judiciário que o condena a ponto de os primeiros textos cristãos estabelecerem um paralelo com o personagem do Justo sofredor de Isaías: Foi maltratado, mas humilhou-se e não abriu a boca, como um cordeiro que é levado ao matadouro, ou como uma ovelha emudecida nas mãos do tosquiador” Is 53,7). Jesus cala-se diante do Sumo Sacerdote que o interroga, diante de Herodes e finalmente diante de Pilatos. Este é o silêncio da vítima. Mas é também o silêncio do abandono confiado, para lá de todas as evidências e contra toda a esperança. É assim que uma vida de Deus se tece em nós (José Tolentino Mendonça, Nenhum caminho será longo, Paulinas, p. 204).
Formação para o silêncio
Frei Giacomo Bini, pranteado Ministro Geral da OFM, conversa aqui com religiosas clarissas sobre o silêncio interior.
É preciso dizer que necessitamos de uma formação para o silêncio, para o silêncio interior; há um silêncio exterior que nos é necessário, pois se este falta, torna-se mais difícil o silêncio interior. O silêncio interior é o mais importante e o mais difícil. Se eu não estou pacificado, se eu tenho problemas sérios, no tema da caridade, na relação com as irmãs, é claro que quando vou à Igreja, continuo com as batalhas interiores. Se não estou pacificado, não posso rezar. Vocês entendem o problema do silêncio interior: é a condição mínima e absoluta para com a relação com Deus e para uma relação com os outros. O silêncio pode chegar a ser a palavra mais importante e mais profunda na vida contemplativa. Observem: estamos entendendo o silêncio como palavra, como mensagem, como presença. Há uma presença silenciosa que é uma maravilha. Vocês têm experiência disto. Há presenças que preferimos evitar. Porém há presenças silenciosas que são uma mensagem ( Frei Giacomo Bini, OFM, Ouvi, irmãs, p. 184).
No silêncio a Palavra pode penetrar existências
Esta é a lição de Henri Nouwen, grande pensador dos tempos atuais em torno do tema da oração, no presente caso oração-silêncio.
A Palavra de Deus não dá frutos sem o silêncio. Um dos aspectos mais depressivos da vida contemporânea é a ausência quase total de silêncio. Eu me pergunto se a Palavra de Deus pode ser recebida no centro de nosso coração porque nossas conversas, o barulho e as interações eletrônicas bloqueiam o caminho para o coração. Como Ambrósio de Milão disse: “Pelo silêncio eu vi muitos salvos, pelas palavras nenhum”. E como Serafim de Sarov, afirmou: “O silêncio é um mistério do mundo que há de vir; as palavras são instrumentos deste mundo”.
Todos os místicos concordam que o silêncio é o caminho mais importante para a formação espiritual. Nunca encontrei ninguém que estivesse seriamente interessado na vida espiritual e que não possuísse um desejo cada vez maior de silêncio (…). Enquanto nosso coração e nossa cabeça estiverem cheios de nossas próprias palavras, não haverá espaço para a Palavra entrar no fundo de nosso coração e dar frutos. Em silêncio e, através dele, a Palavra de Deus vai da cabeça para coração: aí nós podemos ruminá-la, mastigá-la, digeri-la e permitir que ela se torne carne e sangue em nós. Esta é a finalidade da meditação. Sem o silêncio, a Palavra não pode se tornar nosso guia interior; sem meditação ela não pode construir seu lar em nosso coração e conversar conosco de lá.
Esse caminho para o coração, pela Palavra em silêncio, não é dos mais fáceis. Muitas vezes nós nos distraímos ou ficamos confusos: não sabemos em que experiências internas podemos confiar, que movimentos devem ser seguidos ou não. Ir da cabeça para o coração, enveredar pelo caminho da formação espiritual, não é algo livre de armadilhas (Henri Nouwen, A Formação Espiritual, Vozes, p. 32-34).
Silêncio, sociedade de consumo, contemplação
Alguns poderão estranhar este texto filosófico, difícil de se entender, nesse pequeno buquê de reflexões sobre o silêncio. Leiam-no com atenção. Ele murmura a necessidade de refletir sobre as leis da sociedade de consumo. Seu autor é um grande filósofo sul-coreano que se deixou “ensopar” da filosofia alemã, chamado Byung-Chul Han. Um vida sem silêncio é uma vida sem contemplação.
Na sociedade de consumo, desaprende-se a arte de “demorar-se” nas coisas, de dar tempo ao tempo, perdeu-se o cuidado de observação. Os objetos de consumo não admitem perda de tempo com contemplação. Precisam ser consumidos e usados o mais rapidamente possível, para dar lugar a novos produtos e novas necessidades que estão na fila de espera. A existência da contemplação pressupõe algo que dure. A pressão pelo consumo abole a duração. Mesmo a desaceleração não cria duração. Levando em consideração certas atitudes de consumo, verifica-se, por exemplo, que o alimento qualificado de slow food (comer devagar) não se diferencia substancialmente do fast food (comer com pressa). Reduzir a velocidade não muda o Ser das coisas. O verdadeiro problema consiste no fato de que aquilo que dura, que se estende, que pede tempo vai desaparecendo completamente ou tomando distância da vida. As formas de vida contemplativa são modalidades de Ser como “hesitação”, “calma”, “timidez”, “espera”, “seleção” que o Heidegger tardio se opõe à desordem que não conhece outra coisa senão o trabalho. As formas de vida contemplativa têm sua base na duração. O tempo do trabalho, ou o tempo como trabalho, não tem duração. O trabalho consome o tempo da produção. A extensão e a lentidão escapam ao uso e ao consumo. Elas criam a duração. A vida contemplativa é uma prática da duração. Gera um outro tempo, interrompendo o tempo do trabalho (Byung-Chul Han, Le Parfum du temps. Essai philosophique sur l’art de s’attarder sur les choses, Circé, Paris, p. 122-123).
Trata-se de um silêncio que nos leva a diminuir a aceleração…a olhar, pensar, esperar…
Olhar para o futuro…no silêncio e na noite
Um tempo duro para o Povo de Deus foi o período do exílio na Babilônia. Éloi Leclerc, OFM escreveu uma pequena joia sobre esse período de solidão e de silêncio: “O Povo de Deus no meio da noite”. Transcrevo algumas de suas linhas que misturam silêncio e esperança. Eles aprenderam a ouvir com o coração. Será que esse tempo de isolamento não anda derrubando os poderosos de seus tronos? Será que anda nos ajudando a ouvir o silêncio?
Como podem estes homens renascer? Como podem as plantas desenraizadas mergulhar de novo as raízes na terra nutridora e encontrar a coragem de viver, quando lhes falta o próprio sol? Estes homens e mulheres sabem que deixaram de ser uma potência no mundo. Não se iludem sobre isso, sobretudo os que são mais humildes e mais pobres. Entretanto, eles não renunciam à Terra Prometida. Nem à grandeza. O seu coração recusa este abandono. E eles aprenderam a ouvir o coração. Obscura, mas irresistivelmente eles se sentem chamados a grandes coisas. No seu íntimo uma força repele a tentação do declínio e do desaparecimento. Esta força misteriosa, que nasce do fundo da sua história, obriga-os a olhar para o futuro.
À noite quando desaparecem todos os ruídos, esses homens e mulheres recolhem-se em religioso silêncio. À volta deles até o infinito, o império dorme. Mas no alto, no céu puro e sem véus, as estrelas acendem-se aos milhares. Quantas estrelas! Então, os homens e as mulheres de Judá recordam-se : “Conta-as, se podes. Assim será tua posteridade”. A Promessa imensa reanima-se neles; interpela-os e coloca-lhes perante nos olhos a verdadeira dimensão de seu destino. Foi lhes prometida a grandeza: “Farei de ti um grande povo.. Todas as nações da terra serão em ti abençoadas”. “Sereis pais de uma multidão de povos…”. Não eles os filhos da Promessa? Disso não duvidam. São os filhos e os herdeiros. Hoje pertence-lhes receber esta herança. Neles repousa o futuro da Promessa. Na sua fé e em nenhuma outra. Que grande responsabilidade! Que eles se furtem a ela e terminará para sempre a grandeza de Israel e a bênção das nações “(Éloi Leclerc, O Povo de Deus no meio da noite, Ed. Franciscana de Braga, p.57-58).
Ele, o Esposo, chega no silêncio…
Quando o silêncio tiver começado a trabalhar dentro de nós, a plasmar nossa verdadeira identidade, superando ilusões que rumores escondem nas profundezas do coração, este se abre para a acolhida daquele que desejamos amar sem reserva. Nesse momento sua Palavra vem morar em nós de uma maneira nova, num espaço que foi se tornando mais amplo e mais profundo, onde ele possa permanecer tranquilamente e ressoar com maior intensidade. Inicia-se assim um diálogo, que não é somente expressão de sentimentos profundos e vitais, esforço da mente e da vontade, mas é sobretudo escuta, atenção vigilante como a das virgens de que fala o Evangelho que, no silêncio da noite aguarda o grito que vai anunciar a chegada do Esposo. O silêncio está, então, em função de uma Presença, desejada, buscada e para a qual convergem todas as mais profundas aspirações interiores. Não é mais um vazio, mas está prenhe de uma nova plenitude, nascida do encontro, da intimidade com Aquele que está à porta bate(cf. Ap 3,2), depois de haver examinado os espaços do coração procurando um caminho de acesso. Nesse silêncio a alma se pacifica, o olhar se torna transparente, as aspirações se aplacam deixando aflorar a única, verdadeira sede; então tornamo-nos capazes de vislumbrar na Palavra, a Pessoa do Verbo e de acolher Seu convite para entrar, por meio do Espirito, na comunhão com Ele e o Pai.
Esta experiência a que todos somos chamados poderá estar muito distante de nossa pobre realidade, feita de tantos ruídos externos e mais ensurdecedores ainda os ruídos interiores. Nada temos a fazer senão desejar intensamente uma tal experiência e pedir com confiança e insistência, nas profundezas de nossa miséria o dom do silêncio Àquele que antes de ouvir nosso pedido, deseja atende-lo (Anna Bissi, Silenzio e relazione: castità, in Consecrazione e Servizio,,dec. 2007, p. 49).